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Mentiram sobre o Afeganistão, mentiram sobre o Iraque e estão mentindo sobre a Ucrânia

O público estadunidense foi enganado, mais uma vez, sobre o despejo de bilhões em mais uma guerra sem fim

por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report

Brasil 247 - 3 de julho, 2023

https://www.brasil247.com/blog/mentiram-sobre-o-afeganistao-mentiram-sobre-o-iraque-e-estao-mentindo-sobre-a-ucrania


Predando pela paz - Preying for Peace – arte de Mr. Fish (Foto: Mr.Fish)

O manual dos cafetões da guerra costumavam nos seduzir para um fiasco militar após o outro – incluindo o Vietname, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria e, agora, a Ucrânia – e isto não muda. A liberdade e a democracia estão ameaçadas. O mal deve ser vencido. Os direitos humanos devem ser protegidos. O destino da Europa e da OTAN, juntamente com uma “ordem internacional baseada em regras” está em perigo. A vitória é garantida.

Os resultados também são os mesmos. As justificativas e narrativas são expostas como mentiras. O prognóstico alegre é falso. Aqueles por quem nós estamos supostamente lutando são tão venais quanto aqueles contra quem nós lutamos.

A invasão russa na Ucrânia foi um crime de guerra, apesar de ter sido provocado pela expansão da OTAN e pelo apoio dos EUA ao golpe de “Maidan” em 2014, o qual derrubou o presidente ucraniano democraticamente eleito Viktor Yanukovych. Yanukovych queria a integração econômica com a União Europeia, porém não às custas dos laços econômicos e políticos com a Rússia. A guerra só será resolvida através de negociações que permitam que os russos étnicos na Ucrânia tenham autonomia e a proteção de Moscou, bem como a neutralidade ucraniana – o que significa que o país não pode entrar na OTAN. Quanto mais tempo as negociações forem postergadas, mais ucranianos sofrerão e morrerão. As suas cidades e a infraestrutura serão reduzidas a destroços.

Mas esta guerra por procuração na Ucrânia é planejada para servir aos interesses dos EUA. Ele enriquece os fabricantes de armamentos, enfraquece as forças militares russas e isola a Rússia da Europa. O que ocorre com a Ucrânia é irrelevante.

“Em primeiro lugar, equipar os nossos amigos nas linhas do front para se defenderem é uma maneira muito mais barata – tanto em dólares quanto em vidas estadunidenses – para degradar a capacidade da Rússia de ameaçar os EUA, admitiu o líder republicano no Senado, Mitch McConnell.

“Em segundo lugar, a defesa eficaz da Ucrânia do seu território está nos dando lições sobre como melhorar a defesa dos nossos parceiros ameaçados pela China. Não é surpresa alguma que os altos funcionários de Taiwan apoiam tanto os nossos esforços para ajudar a Ucrânia e derrotar a Rússia. Em terceiro lugar, o dinheiro alocado para a assistência de segurança da Ucrânia, na verdade, não vai para a Ucrânia. Ele é investido na manufatura de defesa estadunidense. Ele financia novas armas e munições para que as forças armadas dos EUA reponham o material velho que fornecemos à Ucrânia. Deixem-me ser claro: esta assistência significa mais empregos para os trabalhadores dos EUA e novas armas para os membros das forças armadas estadunidenses.”

Uma vez que a verdade sobre estas guerras sem fim infiltre-se na consciência pública estadunidense, as mídias – que promove servilmente estes conflitos – reduz drasticamente a sua cobertura. Os conflitos militares – como no Iraque e no Afeganistão – continuam na sua maior parte fora de vista. Até que os EUA reconheçam a derrota, a maioria mal se lembra que estas guerras estão sendo combatidas. Estes cafetões da guerra nos enganam em um conflito após o outro com narrativas lisonjeiras que nos retratam como os salvadores do mundo. Eles sequer têm que ser inovadores. A retórica é tirada do manual antigo. Nós, inocentemente, engolimos a isca e abraçamos a bandeira – desta vez azul e amarela – para nos tornarmos agentes da nossa própria autoimolação.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o governo dos EUA gastou entre 45% a 90% do orçamento federal em operações militares passadas, atuais e futuras operações militares. Esta é a maior atividade contínua do governo dos EUA. Deixou de importar – pelo menos para os cafetões da guerra – se estas guerras são racionais ou prudentes. A indústria da guerra entra em metástase nos intestinos do império estadunidense, para torná-lo oco a partir de dentro. Os EUA são insultados no exterior, estão se afogando em dívidas, têm uma classe trabalhadora empobrecida e estão sobrecarregados com uma infraestrutura decadente, bem como serviços sociais de baixa qualidade.

Não se supunha que as forças militares russas entrariam em colapso há meses – devido ao baixo moral, maus generais, armas desatualizadas, deserções, uma falta de munições que supostamente forçou os soldados a combaterem com pás e com uma severa escassez de suprimentos? Não se supunha que Putin seria tirado do poder? Não se supunha que as sanções jogariam o rublo numa espiral de morte? Não se supunha que retirada do sistema bancário russo do SWIFT, o sistema internacional de transferência de dinheiro, aleijaria a economia russa? Como é que as taxas de inflação na Europa e nos EUA são mais altas do que na Rússia, apesar destes ataques à economia russa?

Será que os quase US$ 150 bilhões de sofisticados equipamentos militares, a assistência financeira e humanitária prometidos pelos EUA, pela União Europeia e por outros 11 países supostamente inverteriam a maré da guerra? Como é que talvez um terço dos tanques que a Alemanha e os EUA forneceram foram rapidamente transformados em destroços carbonizados de metal por minas, artilharia, armas anti-tanque, ataques aéreos e mísseis russos no início da vangloriada contra-ofensiva? Não se supunha que esta mais recente contra-ofensiva ucraniana, que foi originalmente conhecida como a “ofensiva da primavera”, golpearia através das pesadamente fortificadas linhas do front russas e retomariam enormes faixas de território? Como podemos explicar as dezenas de milhares de baixas de soldados ucranianos e o recrutamento forçado pelas forças militares ucranianas? Até mesmo os nossos generais aposentados e antigos oficiais da CIA, do FBI, da NSA e da Segurança da Pátria, os quais servem como analistas nas redes como a CNN e a MSNBC, não conseguem dizer que a ofensiva teve sucesso.

E o que dizer sobre a democracia ucraniana que nós estamos lutando para proteger? Por que o parlamento ucraniano revogou o uso oficial de línguas minoritárias, incluindo o russo, três dias após o golpe de 2014? Como podemos racionalizar os oito anos de guerra contra os russos étnicos na região do Donbass, antes da invasão russa de fevereiro de 2022? Como podemos explicar a matança de mais de 14.200 pessoas e do 1,5 milhão de pessoas desalojadas das suas casas antes da invasão russa que ocorreu no ano passado?

Como defendemos a decisão do presidente Volodymyr Zelensky de banir onze partidos de oposição, incluindo a Plataforma de Oposição pela Vida, que tinha 10% dos assentos no Conselho Supremo, o parlamento unicameral da Ucrânia, juntamente com os partidos Shariy, Nashi, Bloco de Oposição, Oposição de Esquerda, União de Forças de Esquerda, o Estado, o Partido Progressista Socialista da Ucrânia, o Partido Socialista da Ucrânia, o Partido dos Socialistas e o Bloco Volodymyr Saldo? Como podemos aceitar o banimento destes partidos de oposição – muitos dos quais são de esquerda – enquanto Zelensky permite que floresçam os fascistas do Svoboda e do Setor de Direita, bem como o Batalhão Azov Bandeirista e outras milícias extremistas?

Como lidamos com as purgas e prisões anti-russas de supostos “quinta colunas” que se espraiam por toda a Ucrânia, dado que 30% dos habitantes ucranianos são falantes da língua russa? Como respondemos aos grupos neonazistas apoiados pelo governo de Zelensky, que assediam e atacam a comunidade LGBT, a população Roma (ciganos), os protestos anti-fascistas e ameaçam vereadores, veículos de mídias, artistas e estudantes estrangeiros? Como podemos apoiar a decisão dos EUA e dos seus aliados ocidentais de bloquear as negociações com a Rússia para terminar a guerra, apesar de Kiev e Moscou aparentemente estivessem prestes a negociar um tratado de paz?

Eu reportei da Europa Oriental e Central em 1989, durante a dissolução da União Soviética. Nós presumimos que a OTAN tivesse se tornado obsoleta. O Presidente Gorbachev propôs acordos de segurança e econômicos a Washington e à Europa. O Secretário de Estado James Baker, no governo de Ronald Reagan, juntamente com o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha Occidental Hans-Dietrich Genscher, asseguraram a Gorbachev que a OTAN não seria expandida para além das fronteiras da Alemanha unificada. Inocentemente, nós pensamos que o fim da Guerra Fria significaria que a Rússia, a Europa e os EUA não teriam mais que desviar recursos massivos para as suas forças militares.

O chamado “dividendo da paz”, no entanto, era uma quimera.

Se a Rússia não quisesse ser o inimigo, a Rússia seria forçada a tornar-se o inimigo. Os cafetões da guerra recrutaram as antigas repúblicas soviéticas para entrarem na OTAN ao pintarem a Rússia como uma ameaça. Os países que entraram na OTAN, que então incluíam a Polônia, a Hungria, A República Checa, a Bulgária, a Estónia, a Látvia, a Lituânia, a Romênia, a Eslováquia, a Eslovénia, a Croácia, Montenegro e a Macedônia do Norte, reconfiguraram as suas forças militares, muitas vezes através de dezenas de milhões em empréstimos ocidentais, para tornarem-se compatíveis com os equipamentos militares da OTAN. Isso reverteu em bilhões de lucros para os fabricantes de armamentos.

Após o colapso da União Soviética, era universalmente entendido na Europa Oriental e Central que a expansão da OTAN era desnecessária e seria uma provocação perigosa. Isso não fazia sentido geopolítico. Mas fazia sentido comercialmente. A guerra é um negócio.

Num telegrama diplomático classificado – obtido e publicado pelo Wikileaks – datado de 1º de fevereiro de 2008, escrito em Moscou e endereçado aos Chefes Conjuntos de Estados Maiores dos EUA, à Cooperativa da OTAN e União Europeia, ao Conselho de Segurança Nacional dos EUA, ao Coletivo Político Moscou-Rússia, ao Secretário de Defesa dos EUA e ao Secretário de Estado dos EUA, havia um entendimento inequívoco que a expansão da OTAN arriscaria um conflito com a Rússia, especialmente sobre a Ucrânia.

“Não só a Rússia percebe o cerco [da OTAN] e os esforços para minar a influência da Rússia na região, mas ela também teme as consequências imprevisíveis de descontroladas que afetariam seriamente os interesses de segurança da Rússia”, diz o telegrama. “Os especialistas nos dizem que a Rússia está particularmente preocupada com as fortes divisões na Ucrânia tornar-se membro da OTAN – sendo que a maioria da comunidade étnica russa era contra, poderia levar a uma cisão importante, envolvendo violência ou, no pior dos casos, a uma guerra civil. Naquele caso, a Rússia deveria decidir se interviria; uma decisão que a Rússia não queria ter que tomar...”

“Dmitri Trenin, vice-diretor do Centro Carnegie de Moscou, expressou a preocupação de que, no longo prazo, a Ucrânia seria o fator mais desestabilizante nas relações russas-EUA, dado o nível de emoção e neuralgia detonados por esta busca por ser membro da OTAN…”, dizia o telegrama. “Porque tornar-se membro da OTAN permanecia sendo uma questão divisiva na política doméstica ucraniana; isso criaria uma abertura para a intervenção russa. Trenin expressou a preocupação de que elementos dentro do establishment usso se veriam encorajados a intervir, estimulando o encorajamento aberto dos EUA sobre forças políticas de oposição e deixando os EUA e a Rússia numa postura clássica de confrontação.

A invasão russa na Ucrânia não teria ocorrido se a aliança ocidental tivesse cumprido as suas promessas de não expandir a OTAN para além das fronteiras da Alemanha e Ucrânia tivesse permanecido neutra. Os cafetões da guerra sabiam quais seriam as consequências potenciais de uma expansão da OTAN. No entanto, a guerra é a sua única vocação, mesmo que leve a um holocausto nuclear com a Rússia ou a China.

É a indústria da guerra, e não Putin, que é o nosso inimigo mais perigoso.

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para Brasil 247

Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR

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