Sempre que, ao longo das últimas décadas, somos confrontados com mais uma daquelas infindáveis decisões absurdas, quase sempre desumanas, que são próprias daquilo a chamam democracia liberal – outrora ocidental –, lembro-me amiúde das palavras do saudoso e inesquecível cantor-poeta antifascista José Mário Branco, quando ele, na sua desencantada mas ainda esperançosa «Chulinha», nos recorda: «Quando o mês de Novembro se vingou… Houve aqui alguém que se enganou».
Foi a vingança, o reviralho, como se diz na tradição política portuguesa; foram os enganos, mais propriamente as despudoradas mentiras, que trucidaram os ideais nobres do 25 de Abril de 1974 ao longo dos 50 anos que agora assinalamos.
Houve enganos nossos, é certo. Ou melhor, talvez ilusões desfeitas, uma confiança desmedida – compreensível depois dos anos de chumbo salazaristas – numa dinâmica avassaladora e imparável da democracia e do progresso social para recuperar tanto tempo perdido e sofrido.
Talvez não seja necessário chegar ao ponto de afirmar que o povo, correndo solto através dos caminhos abertos por Abril, foi vítima desse excesso de confiança, de uma euforia quantas vezes imprudente perante inimigos traiçoeiros, poderosos, com mil caras e séculos de experiência, total ausência de princípios e um assanhado desprezo pelas pessoas.
O povo, de facto, primeiro iludiu-se, enganou-se, não cuidou de se defender, ao mesmo tempo que avançava, expôs-se àquela espécie de inocência traiçoeira que lhe garantia um futuro melhor apenas por ter a razão, a justiça e a História ao seu lado.
O inimigo atacou forte por aí. A par da conspiração permanente nacional e internacional montou uma poderosíssima estratégia de engano, falsificação e mentira. Senhor de um poder sem fronteiras e suficientemente consolidado para o efeito, foi transformando a incompleta derrota de Abril em sucessivas vitórias, a primeira das quais em Novembro de 1975, o primeiro e decisivo passo da vingança contra a democracia.
Vingança contra uma democracia real que, para o ser, tem de ser antifascista. Ora, a democracia que temos não é antifascista, e não só por haver terroristas bombistas de 1975 reciclados em dignos deputados da República; mas, e sobretudo, porque o sistema a que chamam democracia liberal já nem se incomoda a disfarçar os instintos fascistas em gestos cada vez mais frequentes praticados por uma classe política concebida em Novembro desse ano para usurpar o poder do povo.
Houve realmente alguém que se enganou. Mas houve, principalmente, um povo deliberada e metodicamente enganado. A grande mentira que pesa sobre nós invoca o 25 de Abril contra o 25 de Abril, corrompe a democracia em nome da democracia e pode ufanar-se do seu maior feito: virar grande parte do povo contra o 25 de Abril original, aquele sistema social e político definido e posto em prática pelos militares revolucionários e logo então agarrado pelo povo como coisa sua. O 25 de Abril autêntico, que as gerações de hoje desconhecem.
O que resta de um país…
Avaliar a envergadura da mistificação nada tem de abstracto. Um olhar sobre o Portugal de hoje revela o pouco que resta de um país sonhado naqueles dias entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Um período vibrante, criativo, patriótico, solidário, difamado por narrativas obscenas transformadas em história oficial por uma classe política venal, estrangeirada – apátrida, mesmo – e sempre tendencialmente corrupta; e uma comunicação social assente na mentira, na manipulação dos factos, no controlo da opinião pública e mestre na arte de anestesiar os cidadãos. Convergindo ambas num regime de democracia adulterada que não admite alternativa, cada vez mais diaboliza o contraditório e que, com o afã de explicar às novas gerações um 25 de Abril que nega e calunia a realidade do 25 de Abril, encoraja a ascensão gradual e metódica do velho e novo fascismo; enquanto persegue sem pudor, e sem limites, as forças consequentemente antifascistas com uma sanha que o próprio Salazar não desdenharia.
Do longo combate ao espírito real do 25 de Abril e às transformações sociais alcançadas nos quase 600 dias de revolução resta hoje uma entidade nominalmente designada Portugal, um protectorado da União Europeia impedido de utilizar ferramentas de governação indispensáveis a um Estado independente; um apêndice da aterradora máquina de guerra expansionista do império; um minúsculo território a que a partilha de interesses da oligarquia transnacional que exerce o poder no chamado mundo ocidental atribuiu o papel de reserva turística – depois de destruído e vendido praticamente todo o património produtivo do país.
Houve aqui alguém que nos enganou, a mesma casta que hoje nos governa e que, nos idos de Novembro de 1975, logo se apressou a exigir o regresso dos militares aos quartéis uma vez consumado o golpe, tratando o MFA e o Conselho da Revolução como excrescências incompatíveis com o modelo de regime, dito democrático, que pretendia instaurar – e instaurou.
Uma casta que se autodenominou classe política, que usa e abusa do espaço de liberdade de actuação que lhe foi aberto pela coragem antifascista dos militares revolucionários – e que nunca teria ousado dar o corpo ao manifesto para derrubar o salazarismo. Pelo contrário, na sua concepção, na actuação conspirativa e golpista foi mais um instrumento da CIA, com os indispensáveis colaboracionistas e agentes internos, naquela que terá sido uma das primeiras e mais bem conseguidas revoluções coloridas do império.
O êxito alcançado como que entranhou o espírito golpista no tecido da hoje chamada «democracia liberal» e do qual tivemos recentemente dois exemplos, apenas com dois anos de intervalo, através de uma mistela envenenada amalgamando o aparelho judicial e órgãos de poder, com destaque para o chefe de Estado. Manobras que culminaram na realização de duas eleições gerais, inquinadas desde a origem, que instalaram a direita ultramontana no governo e catapultaram mais de 60 fascistas retintos para o Parlamento – contando com os que ainda permanecem acoitados no PSD e no CDS. Não, não é possível detectar qualquer vislumbre de inocência nos autores destes procedimentos.
Um produto tóxico
Neste contexto de golpismo e viciação dos mecanismos democráticos ao longo de quase 49 anos podemos e devemos escalpelizar a comunicação social actual, a herdeira directa dos meios que conspiraram activamente contra a revolução, deram asas à propaganda perversa e às trapaças políticas que consolidaram o golpe de Novembro. Meios sempre e sempre mais eficazes e que hoje cultivam o ambiente de subserviência à NATO e à União Europeia, o militarismo, o branqueamento dos fascismos, como o nazismo ucraniano e o sionismo, o totalitarismo económico e financeiro neoliberal, a restrição dos espaços de opinião, de liberdade cultural e de escolha política.
Muitos competentes, corajosos e generosos jornalistas da imprensa, rádio e televisão lutaram heroicamente contra a censura salazarista, enfrentaram o regime e alguns passaram pelas câmaras de tortura e pelas celas da ditadura. Ora o que observamos no jornalismo dominante actualmente é a cumplicidade com novos métodos censórios, cada vez mais sofisticados; a promiscuidade com a classe política e os centros de poder; a subserviência provinciana perante a doutrinação da NATO e da União Europeia; a incapacidade – ou ausência total de vontade – para desmontar a hipocrisia comportamental da chamada civilização ocidental, sobretudo quando esta procede de maneira absolutamente contraditória em relação aos valores humanistas de que se apropriou unicamente para efeitos de propaganda.
O jornalismo dominante e os meios de comunicação frequentados pela esmagadora maioria da população portuguesa e do espaço ocidental trocaram a informação pela propaganda, a paz pela guerra e o militarismo, a democracia pelo totalitarismo neoliberal, o primado da lei pelas regras avulsas e arbitrárias emitidas de Washington, o pluralismo pela opinião única, o diálogo pela arrogância, o esclarecimento pelos comentários unanimistas, viciados e multiplicados por gente impreparada, culturalmente indigente, avençada por organizações conspirativas, serviços secretos e sistemas transnacionais de poder.
A resultante deste processo é um produto tóxico multifacetado que dilui as capacidades críticas dos cidadãos, mina o seu processo de reflexão sobre a sociedade em que se inserem, anestesia a sua vontade de contestar, induzindo-os a viver numa espécie de realidade paralela como seres hipnotizados e amorfos – em suma, um rebanho.
Ernest Bevin foi um chefe trabalhista britânico, ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro nos primeiros anos do pós-guerra.
Bevin, como trabalhista, era um feroz anticomunista, segundo os seus biógrafos; e ficou na História como um dos mais entusiastas e empenhados fundadores da NATO. Foi um dos 12 subscritores do Pacto do Atlântico em 1949.
Recordo a figura de Ernest Bevin porque, sendo um atlantista da mais rija cepa, tinha um pensamento político abrangente muito interessante e significativo que, explanado há mais de 75 anos, hoje é tão actual como então. Dizia este progenitor da NATO que «o preço da liberdade é a eterna vigilância». Note-se que ele fala da nossa «liberdade» actual e não podemos deixar de admirar a sua franqueza e, sobretudo, a sua premonição. Ou então, nesta espécie de democracia há coisas que nunca mudam.
«Divertir, entreter, enganar»
Bevin também conhecia a fundo o potencial e os objectivos reservados à comunicação nos ambientes e regimes políticos tutelados pela NATO e outras instâncias de concentração imperialista. Segundo ele, «um jornal tem três tarefas: "uma é divertir, outra é entreter, o resto é enganar"».
É justo que consideremos admirável a perspicácia deste dirigente britânico ao conseguir antever, a uma distância de três quartos de século, a realidade em que hoje vivemos.
Ao jornal podemos acrescentar a rádio, a televisão e a multiplicidade de canais da comunicação dominante, incluindo a internet; e depois submeter esta amálgama às mais apuradas doutrinas de propaganda (Goebbels parece hoje um prosaico amador) e às mais sofisticadas capacidades tecnológicas. Teremos então a visão de Ernest Bevin exponencialmente projectada para patamares estratosféricos de indigência, estupidificação e aldrabice através dos veículos da comunicação social corporativa globalista.
Se todos recordarmos aqui – e basta fazê-lo superficialmente – o comportamento dos canais privados de televisão, ficaremos mais impressionados ainda com o talento visionário de um dos pais fundadores da NATO. «Divertir» é estupidificar, alienar, esvaziar qualquer conteúdo de referências culturais formativas e esclarecedoras; «entreter», da maneira como esses meios o fazem, é o método para formatar cidadãos alheados, passivos, agarrados ao acessório de vidas que não são as suas enquanto se conformam com as próprias existências, mergulhados numa inércia que os impede de combater por melhores condições e pela afirmação de direitos; «enganar», enfim, é o objectivo primeiro e último: os espaços ditos de informação são os cenários privilegiados de mentira, convenientes omissões, comentários à la carte e mistificações para aperfeiçoar uma opinião única, apurá-la o mais possível de acordo com a cartilha do fascismo económico neoliberal, antecâmara de uma qualquer das mil e uma caras do fascismo político – snobe, trauliteiro ou sonso e de falinhas mansas.
A existência de televisões privadas e a adaptação da televisão pública ao espírito «privado», ou seja, a sua transformação num instrumento de poder do bloco que teóricos fascistas da nossa praça designam como «arco da governação», foi, desde sempre, uma arma de guerra da dinastia novembrista lusitana.
O processo desenvolveu-se paralelamente ao assalto aos meios de comunicação públicos pelas clientelas dos partidos governantes, seguido da privatização, em saldos de feira da ladra, à maneira cavaquista, de todos os jornais então em mãos estatais. Esta metodologia assente em benevolentes e viciadas quermesses paroquiais funcionou como forno crematório da quase totalidade dos títulos históricos da imprensa portuguesa, incluindo vários que se tinham mantido privados: O Século, República, A Capital, Diário Popular, Diário de Lisboa. Diário de Notícias e Jornal de Notícias sobreviveram, se bem que, no caso do matutino lisboeta, seja difícil chamar sobrevivência àquele estado vegetativo.
o diário: um acto brutal e um exemplo
Não posso deixar de abordar aqui o assassínio premeditado do jornal o diário, o único órgão dissonante da doutrina do regime, a voz isolada que reflectia os interesses e direitos das camadas mais desfavorecidas da população. Tal como no caso do jornal República, gerido com um alarido que chegou até à agenda de uma cimeira da NATO, o diário foi vítima de uma conspiração com ramificações internas associadas ao soarismo, um takeover não consumado mas que teve como consequência a inviabilização e extinção do jornal. Um acto brutal de censura, um atentado sem quaisquer escrúpulos contra as liberdades por parte de um poder que, decididamente, se dá mal com a diversidade, o pluralismo de opinião e as práticas antifascistas. Sem me alongar nos pormenores de uma história escabrosa que ainda está por contar, recordo apenas que duas das personagens mais envolvidas no processo, uma como colaborador influente e outra como administrador principal da empresa proprietária de o diário, foram pouco depois promovidas a ministros com pastas muito relevantes, respectivamente, nos governos socialistas de António Guterres e José Sócrates: Joaquim Pina Moura, ministro das Finanças e da Economia; Mário Lino, ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
No panorama da imprensa nasceram entretanto, e sobrevivem, ainda que com dinâmicas opostas, o tablóide Correio da Manhã e o presunçoso diário snobe da classe média Público, variantes da mesma propaganda doutrinária neoliberal e que assentam naquela ficção oriunda do reino do fantástico segundo a qual os jornais que são propriedade de oligarquias podem ser independentes e reflectir interesses contrários aos dos proprietários.
Quanto aos grupos proprietários de canais privados de televisão é relevante notar que são controlados por interesses associados a mecanismos de poder imperiais, entre eles a mais conhecida seita do poder conspirativo globalista, o Grupo de Bilderberg.
A perda de influência dos jornalistas
Nestes ambientes, a influência e as qualidades profissionais dos jornalistas tornaram-se quase irrelevantes, ainda que com incidências muitas vezes perversas ao nível das hierarquias e das chefias, que aceitam executar tarefas censórias contra as quais tantos colegas de há meio século lutaram e se sacrificaram.
Ao mesmo tempo, os profissionais da informação permitiram que as suas associações de classe perdessem poder e que os mecanismos constitucionais de intervenção postos ao seu dispor pela Revolução de 25 de Abril, nomeadamente as Comissões de Trabalhadores e os Conselhos de Redacção, quase morressem de inanição.
Hoje, quando a comunicação social corporativa e afim, mesmo que em mãos públicas, aborda o 25 de Abril que a libertou, normalmente fá-lo segundo uma versão da revolução infectada pelo vírus de Novembro, o mesmo que contribuiu para a transformar num instrumento degenerado ao serviço de um sistema de poder autoritário absolutamente incompatibilizado com o antifascismo e as liberdades de informação e de opinião.
As gerações dos portugueses que não eram nascidos em 1974 só perceberão verdadeiramente o que é a liberdade de opinião, de informar e ser informado quando puderem conhecer – e viver – o que na realidade foi a Revolução de 25 de Abril desse ano glorioso.