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A Europa pode libertar-se da OTAN?

por Vijay Prashad (pt-BR)

Instituto Tricontinental de Pesquisa Social - 22 de junho, 2023

https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-politica-externa-europeia/

É difícil entender muitos eventos hoje em dia. O comportamento da França, por exemplo, é difícil de definir. Por um lado, o presidente francês Emmanuel Macron mudou de ideia em relação a seu apoio à entrada da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Por outro lado, disse que a França gostaria de participar da cúpula do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) na África do Sul em agosto. A Europa, é claro, não é um continente totalmente homogêneo, com problemas em andamento, já que a Hungria e a Turquia se recusaram a ratificar o desejo da Suécia de entrar na Otan em sua cúpula anual em Vilnius (Lituânia) em julho. No entanto, a burguesia européia olha para o Ocidente, para as empresas de investimento de Wall Street, para depositar sua riqueza, atrelando seu próprio futuro à regência dos Estados Unidos. A Europa está firmemente ligada à aliança atlântica com pouco espaço para uma voz europeia independente.

Na plataforma Basta de Guerra Fria, estudamos cuidadosamente esses elementos da política externa da Europa. O Briefing n. 8, que formará a maior parte desta carta semanal, foi elaborado em conjunto com o membro do Parlamento Europeu Marc Botenga, do Partido dos Trabalhadores da Bélgica, ou PTB-PVDA. Leia a seguir:

A Europa precisa de uma política externa independente

A guerra na Ucrânia foi acompanhada por um fortalecimento do controle e influência dos EUA na Europa. O importante suprimento de gás russo foi substituído pelo gás de xisto dos EUA. Os programas da União Européia (UE) originalmente concebidos para fortalecer a base industrial da Europa agora servem à aquisição de armas fabricadas nos EUA. Sob pressão dos EUA, muitos países europeus contribuíram para a escalada da guerra na Ucrânia, em vez de pressionar por uma solução política para trazer a paz..

Ao mesmo tempo, os EUA querem que a Europa se distancie da China, o que reduziria ainda mais o papel global da Europa e iria contra seus próprios interesses. Em vez de seguir a agenda conflituosa e prejudicial dos EUA da Nova Guerra Fria, é do interesse do povo europeu que seus países estabeleçam uma política externa independente que englobe a cooperação global e um conjunto diversificado de relações internacionais.

 

A crescente dependência da Europa dos EUA

A guerra na Ucrânia e a consequente espiral de sanções e contra sanções levaram a uma rápida desassociação das relações comerciais UE-Rússia. A perda de um parceiro comercial limitou as opções da UE e aumentou a dependência dos EUA, uma realidade que é mais visível na política energética da UE. Como resultado da guerra na Ucrânia, a Europa reduziu sua dependência do gás russo, apenas para aumentar sua dependência do gás natural liquefeito (GNL) estadunidense, mais caro. Os EUA tiraram partido dessa crise energética, vendendo o seu GNL para a Europa a preços muito acima do custo de produção. Em 2022, os EUA foram responsáveis por mais da metade do GNL importado para a Europa. Isso dá aos EUA poder adicional para pressionar os líderes da UE: se as remessas de GNL dos EUA fossem desviadas para outro lugar, a Europa enfrentaria imediatamente grandes dificuldades econômicas e sociais.

Washington começou a pressionar as empresas europeias a se mudarem para os Estados Unidos, usando preços mais baixos de energia como argumento. Como disse o ministro alemão de Assuntos Econômicos e Ação Climática, Robert Habeck, os EUA estão “drenando os investimentos da Europa” – ou seja, estão promovendo ativamente a desindustrialização da região.

A Lei de Redução da Inflação (2022) e a “Lei dos Chips” (2022) atendem diretamente a esse propósito, oferecendo 370 bilhões de dólares e 52 bilhões de dólares em subsídios, respectivamente, para atrair indústrias de energia limpa e semicondutores para os EUA. O impacto dessas medidas já está sendo sentido na Europa: a Tesla está discutindo a transferência de seu projeto de construção de baterias da Alemanha para os EUA, e a Volkswagen interrompeu uma fábrica de baterias planejada na Europa Oriental, em vez de avançar com sua primeira fábrica de baterias elétricas na América do Norte no Canadá, onde é possível receber subsídios dos EUA.

A dependência da UE em relação aos EUA também se aplica a outras áreas. Um relatório de 2013 do Senado francês perguntou diretamente: “A União Europeia é uma colônia do mundo digital?”. As leis estadunidenses de Clarificação do Uso Legal de Dados no Exterior (Cloud, na sigla em inglês), de 2018, e a de Vigilância de Inteligência Estrangeira (Fisa, na sigla em inglês), de 1978, permitem às empresas do país amplo acesso às telecomunicações da UE, incluindo dados e chamadas telefônicas, dando-lhes acesso a segredos de Estado. A UE está sendo continuamente espionada.

 

A crescente militarização é contra os interesses da Europa

As discussões da UE sobre vulnerabilidades estratégicas concentram-se principalmente na China e na Rússia, enquanto a influência dos EUA é praticamente ignorada. Os EUA operam uma enorme rede de mais de 200 bases militares e 60 mil soldados na Europa e, por meio da Otan, impõem “complementaridade” às ações de defesa europeias, o que significa que os membros europeus da aliança podem agir em conjunto com os EUA, mas não independentemente. A ex-secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, resumiu isso como “os três Ds”: não “desvincular” a tomada de decisão europeia da Otan, não “duplicar” os esforços da Otan, não “discriminar”  membros da Otan não pertencentes à UE. Além disso, para garantir a dependência, os EUA se abstêm de compartilhar as tecnologias militares mais importantes com os países europeus, incluindo grande parte dos dados e softwares conectados aos caças F-35 que adquiriram.

Por muitos anos, os EUA vêm pedindo aos governos europeus que aumentem seus gastos militares. Em 2022, os gastos militares na Europa Ocidental e Central subiram para 316 bilhões de euros, voltando a níveis não vistos desde o fim da Primeira Guerra Fria. Além disso, os Estados europeus e suas instituições enviaram mais de 25 bilhões de euros em ajuda militar à Ucrânia. Antes da guerra, Alemanha, Grã-Bretanha e França já estavam entre os dez maiores gastadores militares do mundo. Agora, a Alemanha aprovou 100 bilhões de euros para um fundo especial de atualização militar e se comprometeu a gastar 2% de seu PIB em defesa. Enquanto isso, a Grã-Bretanha anunciou sua ambição de aumentar seus gastos militares de 2,2% para 2,5% de seu PIB e a França anunciou que aumentará seus gastos militares para cerca de 60 bilhões de euros até 2030 – aproximadamente o dobro de sua alocação de 2017.

Esse aumento nos gastos militares está ocorrendo enquanto a Europa enfrenta sua pior crise de custo de vida em décadas e a crise climática se aprofunda. Em toda a Europa, milhões de pessoas foram às ruas em protesto. As centenas de bilhões de euros gastos com os militares deveriam ser redirecionados para resolver esses problemas urgentes.

 

A separação da China seria desastrosa

A UE sofreria com um conflito EUA-China. Uma parte significativa das exportações da UE para os EUA contém insumos chineses e, inversamente, as exportações de bens da UE para a China geralmente contêm insumos dos EUA. Controles de exportação mais rígidos impostos pelos EUA sobre as exportações para a China ou vice-versa atingiriam as empresas da UE, mas o impacto iria além.

Os EUA aumentaram a pressão sobre vários países, empresas e instituições da UE para reduzir ou interromper a cooperação com projetos chineses, em particular fazendo lobby para que a Europa se junte à sua guerra tecnológica contra a China. Essa pressão deu frutos, com dez estados da UE restringindo ou banindo a empresa de tecnologia chinesa Huawei de suas redes 5G, enquanto a Alemanha considera uma medida semelhante. Enquanto isso, a Holanda bloqueou as exportações de máquinas de fabricação de chips para a China, da importante empresa holandesa de semicondutores ASML.

Em 2020, a China ultrapassou a posição dos EUA como principal parceiro comercial da UE e, em 2022, a China foi a maior fonte de bens importados da UE e seu terceiro maior mercado de bens exportados. A pressão dos EUA para que as empresas europeias restrinjam ou cessem as relações com a China significaria limitar as opções comerciais da Europa e, incidentalmente, aumentar sua dependência de Washington. Isso seria prejudicial não apenas para a autonomia da UE, mas também para as condições sociais e econômicas regionais.

 

A Europa deve abraçar a cooperação global, não o confronto

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, nenhuma potência estrangeira exerceu mais poder sobre a política europeia do que os Estados Unidos. Se a Europa se permitir ficar presa a um bloco liderado pelos EUA, isso não apenas reforçará sua dependência tecnológica dos EUA, mas a região poderá se desindustrializar. Além disso, isso colocará o continente europeu em desacordo não apenas com a China, mas também com outros grandes países em desenvolvimento, incluindo Índia, Brasil e África do Sul, que se recusam a se alinhar com um ou outro país.

Em vez de seguir os EUA em conflitos ao redor do mundo, uma Europa independente precisa redirecionar sua estratégia de segurança para a defesa territorial, segurança coletiva e construir vínculos internacionais construtivos, rompendo decisivamente com relações comerciais paternalistas e exploradoras com os países em desenvolvimento. Em vez disso, relações justas, respeitosas e igualitárias com o Sul Global podem oferecer à Europa a diversificação necessária e valiosa de parceiros políticos e econômicos de que ela precisa urgentemente.

Uma Europa independente e interconctada é do interesse do povo europeu. Isso permitiria que vastos recursos fossem desviados dos gastos militares para enfrentar as crises climáticas e de custo de vida, como a construção de uma base industrial verde. O povo europeu tem todos os motivos para apoiar o desenvolvimento de uma política externa independente que rejeite o domínio e a militarização dos EUA em prol de abraçar a cooperação internacional e uma ordem mundial mais democrática.

O briefing do Basta de Guerra Fria acima faz uma pergunta importante: é possível uma política externa europeia independente? A conclusão geral, dada a correlação de forças que hoje prevalece na Europa, é não. Nem mesmo o governo de extrema direita da Itália, que fez campanha contra a Otan, resistiu à pressão de Washington. Mas, como sugere o briefing, o impacto negativo da política ocidental de impedir a paz na Ucrânia está sendo sentido diariamente pelo público europeu. O povo europeu defenderá sua soberania ou continuará a ser a linha de frente das ambições de Washington?

Cordialmente,

Vijay.

Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

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