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Mentira sobre mentira: Por que temos de revisitar o conceito de fake news?

por Ramzy Baroud (pt-BR)

Monitor do Oriente Médio - 2 de abril, 2023

https://www.monitordooriente.com/20230402-mentira-sobre-mentira-por-que-temos-de-revisitar-o-conceito-de-fake-news/

A frase “fake news” tem uso rotineiro na política dos Estados Unidos. Em um ambiente político polarizado, tanto republicanos quanto democratas desconfiam de organizações de mídia filiadas aos partidos opostos. Isso significa que a maior parte do que é dito ou escrito pela CNN é “fake news” para os republicanos, e grande parte do que aparece na imprensa ligada aos republicanos é “fake news” para os democratas.

A frase agora é tão prevalente e difusa que é impossível concordar com uma definição comum. Até mesmo news desks ou agências de “verificação de fatos” contribuem, inadvertidamente ou não, para o preocupante fenômeno das “fake news”, ao verificar seletivamente notícias e informações vinculadas a um lado específico do espectro político, enquanto ignoram o outro.

Alguns traçam as origens das “fake news” até uma pequena cidade no Leste Europeu chamada Veles, na Macedônia. Esta noção em particular está associada a Craig Silverman, editor de mídia do Buzzfeed. “Acabamos encontrando um pequeno grupo de sites de notícias, todos registrados na mesma cidade”, disse Silverman à rede BBC. O objetivo desses sites parecia ser sobretudo financeiro: “clickbait”, para atrair usuários incautos a manchetes pouco verossímeis.

Mais tarde, o termo se tornou essencialmente político. Foi o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, quem popularizou a expressão e o fenômeno, ao mesmo tempo que a tornava parte integrante da vida política contemporânea. Mike Wendling, da BBC, no entanto, observa que foi a adversária de Trump na disputada eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016, Hillary Clinton, quem usou o termo pela primeira vez em um discurso realizado em dezembro do mesmo ano.

Na realidade, o conceito de “fake news” antecede tanto Clinton quanto Trump. Quando me mudei para os Estados Unidos há mais de duas décadas, lembro-me de ter ficado chocado ao ver as manchetes dos tablóides impressos, sempre posicionados no centro dos principais mercados americanos: desde escândalos de celebridades impossíveis de checar a “notícias de última hora” sobre extraterrestres engravidando mulheres humanas antes de regressar ao seu planeta. Mesmo como recém-chegado, era óbvio para mim que tamanho lixo era também “fake news”. Lamentavelmente, esses tabloides eram frequentemente vendidos mais rápido do que jornais legítimos, sugerindo que o maior desafio apresentado pelas “fake news” não reside em sua novidade, mas em nossa credulidade e disposição para se envolver com elas.

Na definição moderna, “fake news” cresceu para abarcar pessoas com opiniões opostas, quer essas opiniões se alicercem em fatos, fatos seletivos ou pura ficção. Muitos de nós, jornalistas, estamos presos neste labirinto inextricável. Não importa o que façamos para demonstrar a autenticidade das fontes, ainda somos assombrados por alegações de “fake news”.

A luta geracional pela mídia independente representa o esforço constante para criar o máximo de espaço possível entre o fato e os caprichos da política e de seus representantes. Contudo, recentemente, essa distância encolheu significativamente a ponto de organizações de notícias antes respeitáveis se tornarem o equivalente a panfletos partidários.

Em 2018, Trump anunciou seu “Prêmio Fake News” a ser “laureado” a jornalistas da imprensa liberal que se opunham a seu governo. Em resposta, agências de checagem vinculadas a tais organizações passaram a concentrar-se precisamente em Trump. Suas declarações histriônicas o tornaram o alvo perfeito. Em contrapartida, o sucessor democrata Joe Biden raramente é visto sob a mesma lente, não apenas por supostamente se abster de declarações falsas, mas por usar uma versão do inglês considerada mais adequada ao perfil executivo. Embora memes e piadas sobre Biden e suas gafes sejam uma marca registrada nas redes sociais, pouco atraem a atenção dos meios de comunicação estabelecidos.

Não obstante, temos de nos perguntar: podemos confiar na mídia mainstream em sua aplicação do termo “fake news”?

Noam Chomsky – um dos críticos mais articulados da mídia ocidental, autor de Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media – definiu a grande imprensa da seguinte forma: “Corporações (que) são basicamente tiranias hierárquicas, controladas de cima. Se você não gosta do que estão fazendo, vá embora. A mídia hegemônica é parte deste sistema”.

A análise de Chomsky sugere que aqueles que tanto denunciam “fake news” podem também propagá-las, caso tais informações ou interpretações dos fatos sejam convenientes a executivos e anunciantes dessas organizações. “A maioria delas está ligada ou é diretamente propriedade de corporações muito maiores”, alerta Chomsky.

Para nós do Sul Global, a mentira não tem raízes na Macedônia, no discurso Clinton ou nos “prêmios” de Trump. “Fake news” é parte fundamental do colonialismo ocidental, desde o seu primórdio há séculos até o neocolonialismo dos tempos recentes.

Antigamente, as mentiras que levaram a guerras, invasões e ocupações não eram chamadas de “fake news”, mas “operações de falsa bandeira”. Muitos historiadores agora entendem que o casus belli por trás da guerra Hispano-Americana de 1898 – a explosão do navio de guerra USS Maine dos Estados Unidos – foi baseado em uma mentira: “fake news”. As inexistentes “armas de destruição em massa” do Iraque, que levaram à invasão do país árabe outrora poderoso, em 2003, também foram “fake news”, junto de histórias inventadas sobre urânio do Níger, o “dossiê confidencial britânico” e outras mentiras escabrosas.

A Palestina foi invadida por sionistas com base inteiramente em “fake news”. Colonos ocidentais construíram sua causa sobre a alegação de que a terra – a Palestina histórica – era desabitada: “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. A mentira referente à Palestina é, quem sabe, a mais poderosa dentre todas as falácias coloniais. Agências de checagem da CNN e outras mídias mal se preocupam em mostrar que Deus não “prometeu” a Palestina aos colonos sionistas e que os palestinos não são agressores, mas vítimas do colonialismo ocidental.

Cabe a nós expandir a definição de “fake news” para além das definições puramente políticas centradas nos Estados Unidos e no Ocidente, travadas no tiro cruzado entre republicanos e democratas. Mentiras, falácias, meias verdades, desinformação e “fake news” descarada têm sido a força motriz por trás da cobertura da imprensa corporativa há muitos anos. No entanto, torna-se cada vez mais óbvio as motivações por trás da construção do discurso; em particular, porque mesmo aqueles que controlam as cordas do alto perdem pouco a pouco controle sobre suas próprias narrativas.

Ramzy Baroud, nascido num campo de refugiados em Gaza e vivendo em Seattle (EUA), é jornalista, autor e editor de The Palestine Chronicle. Ele é o autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press, London). Seu livro mais recente é The Last Earth: A Palestinian Story [A última terra: uma história palestina] (Pluto Press, London) e está concluindo o próximo livro, These Chains Will Be Broken: Palestinian Stories of Struggle and Defiance in Israeli Prisons’ [Esses grilhões serão quebrados: histórias palestinas de luta e desafio em prisões israelenses] (Clarity Press, Atlanta). Baroud é Ph.D. em Estudos Palestinos, da University of Exeter.

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