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O Grande Cisma – Será ele discretamente ignorado?

Diz o autor: «Devemos reconfigurar o nosso pensamento – num plano de maior alcance – para tomar em conta a intrusão de dimensões mutáveis na consciência.» Do que se trata é de entender que conflitos como o da Palestina deixaram de poder ser acertadamente analisados recorrendo a esquemas “antigos”, que ignorem ou subestimem complexas dimensões – objectivas e subjectivas – das realidades em presença.

por Alastair Crooke (PT) | Strategic Culture Foundation

ODiario.info - 13 de novembro, 2023

https://www.odiario.info/o-grande-cisma-sera-ele-discretamente/

Dominique De Villepin, ex-primeiro-ministro da França, que se destacou na liderança da oposição da França à guerra do Iraque, descreveu recentemente o termo ‘Ocidentalismo’ (actualmente o sentimento predominante em grande parte da Europa) como sendo a noção de que “o Ocidente, que durante cinco séculos geriu os assuntos do mundo, poderá discretamente continuar a fazê-lo”. Continua: “Existe a ideia de que, confrontados com o que está a acontecer actualmente no Médio Oriente, devemos continuar ainda mais a luta, rumo ao que pode assemelhar-se a uma guerra religiosa ou civilizacional.”

“Ou seja, isolar-nos ainda mais no cenário internacional.”

“Eles apostaram tudo num determinado quadro moral e ético do mundo e, confrontados com uma situação em que o tecido moral do Ocidente foi abertamente exposto e refutado, acham extremamente difícil – e talvez fatalmente impossível – retirar-se.”

O mesmo se aplica a um Israel (que está umbilicalmente ligada ao Ocidente): se Israel imaginasse que os seus antigos aliados árabes poderiam olhar para o outro lado, enquanto o Estado judeu tenta aniquilar a resistência em Gaza, – e depois esperar que esses aliados ajudassem a policiar e a pagar para que um aparelho de segurança de Gaza governe o país, seriam culpados de tomarem os sonhos por realidade.

E, se quer Washington ou Israel assumirem que este plano “pós-Gaza” pode desenrolar-se no mesmo momento em que os colonos militantes do outro lado do terreno constroem o seu reino de colonatos com o objectivo expresso de fundar Israel na Terra de Israel (eliminando assim totalmente a Palestina), essa noção também constituiria uma ilusão, ao mesmo tempo do ponto de vista estratégico como da incoerência moral.

Não vai funcionar. Israel não será capaz de gerar nem os parceiros palestinianos, nem os aliados globais; precisa de cooperar para um tal esquema.

A situação no Médio Oriente transformou-se radicalmente. Enquanto a Palestina significava libertação nacional, hoje a Palestina é o símbolo de um redespertar civilizacional mais amplo – o “fim de séculos de humilhação regional”. Da mesma forma, embora o sionismo em Israel fosse em grande parte um projecto político secular (o Grande Israel), hoje tornou-se messiânico e profético.

A questão aqui é que continuamos a pensar sobre a questão de Gaza da “maneira antiga” – através do prisma do racionalismo material secular. Isto leva a conclusões como “O Hamas é objectivamente mais fraco do que as FDI de Israel” e, portanto, racionalmente, este último deve prevalecer sendo o participante mais forte.

Nesta forma de pensar existe porém apenas “uma única realidade”, sendo apenas diferentes as descrições e interpretações desta “realidade”. No entanto, existe comprovadamente mais do que “uma realidade”, pois colectivamente progredimos de uma consciência para outra. Numa consciência, por exemplo, “o Hamas está destinado ao fracasso”, e a discussão volta-se para os EUA e Israel e suas noções de “o que se segue em Gaza”.

Contudo, noutro estado de consciência – que se torna cada vez mais predominante na região – a “realidade” é que qualquer compromisso negociado “racionalmente” entre duas estruturas escatológicas em conflito é impossível. Ainda mais se o conflito escalar horizontalmente – transbordando as fronteiras de Gaza.

Outras “frentes” provavelmente poderão abrir-se, tendo em conta que Gaza é vista – independentemente de o Hamas ser esmagado ou não – como a faísca revolucionária que acende uma transformação no Médio Oriente e na consciência do Sul Global (observe a lista de Estados do Sul Global que agora cortam relações diplomáticas com Israel).

Contudo, o Ocidente optou por apoiar-se num silo que ele próprio criou – conforme definido pela sua exigência de uma mensagem singular de que toda a Europa “está ao lado de Israel”; recusando qualquer cessar-fogo; e dizendo “não há limites” para a acção israelita (sujeita à lei).

Um veterano comentarista israelita escreve que estamos a lidar com: “[…] uma instância (Israel), onde um país está tão devastado, chocado, humilhado e naturalmente consumido pela raiva que a retribuição se torna o seu único fim. O momento em que um país percebe que a sua dissuasão falhou; e as percepções do seu poder foram tão criticamente diminuídas – que é impulsionado apenas pela motivação de restaurar uma imagem de poder.”

“É um ponto perigoso onde os tomadores de decisão sentem que podem dispensar o axioma do teórico militar von Clausewitz: “A guerra não é apenas um acto político, mas um instrumento político real, uma continuação da interacção política, a realização do mesmo por outros meios.”

A Europa, seguindo o exemplo de Washington, está simplesmente a ignorar o axioma de Clausewitz, ao vincular-se sem reservas às operações militares de Israel, e correndo um risco real de conluio com tudo o que aí possa acontecer.

Dito de forma clara, a ordem absoluta de que deve haver uma distinção inequívoca entre a verdade e a falsidade e a unicidade do significado relativo à questão palestina, além de nenhuma “mensagem pró-palestina”, reflecte uma profunda insegurança no Ocidente – como se mensagens unilaterais pudessem ser o remédio para um choque civilizacional. No actual clima, até mesmo apelar a um cessar-fogo pode fazer com que se perca o emprego.

Pelo contrário, esta posição serve apenas para isolar a Europa de desempenhar um papel na cena internacional – salvo o de ameaçar de escalada contra o Irão, caso o Hezbollah abra uma frente norte contra Israel.

Aqui, também enfrentamos o problema do “velho pensamento” racionalista materialista – que vê a instalação de porta-aviões e a dispersão de defesas aéreas pela região como uma manifestação de uma força potencialmente esmagadora e opressiva que constitui uma dissuasão, enquanto Israel finaliza a tarefa de reprimir as irrupções palestinianas em Gaza e na Cisjordânia.

Mais uma vez, o mito da dissuasão foi substituído pelas tácticas assimétricas da nova guerra. Os conflitos tornaram-se geopoliticamente diversos, tecnologicamente mais complexos e multidimensionais – particularmente com a inclusão de intervenientes não estatais adoptando estratégias militares. É por isso que os EUA estão tão nervosos com a possibilidade de Israel entrar numa guerra em duas frentes.

A “outra realidade” é que o poder de fogo puro “não é tudo”. A gestão da escalada controlada é a nova dinâmica. Os EUA podem pensar (racionalidade material) que só eles possuem a predominância capaz de escalada. Mas será que isso ocorre realmente neste novo mundo multidimensional e assimétrico?

Além disso, o “outro” estado de consciência pode interpretar as coisas de forma diferente: o ataque de Israel a Gaza pode revelar-se mais prolongado do que os EUA poderiam esperar, e o seu resultado pode não produzir a restauração definitiva da dissuasão israelita pela qual a maioria dos israelitas anseia. Visto de forma dinâmica, o ataque de Israel a Gaza poderá antes produzir uma nova metamorfose na consciência regional no sentido da raiva e da mobilização, impondo uma nova dinâmica à “realidade” geoestratégica.

Apesar de a dissuasão ser apresentada como sendo um desses objectivos (permitir a Israel encontrar um novo paradigma de segurança para si próprio), a escalada militar não trará qualquer acordo sustentável através do qual a divisão do Mandato da Palestina em dois Estados possa ser alcançada. Isso irá afastá-lo ainda mais da realização.

Poderá então a actual turbulência na Palestina, simples e discretamente, ser resolvida sob gestão da Casa Branca?

Encarar a guerra Israel-Hamas como um acontecimento local seria outro erro do “velho pensamento”. Isto tornou-se uma guerra pela existência palestiniana – entre a visão hebraica de Israel e a visão islâmica do seu próprio Renascimento civilizacional. Nesta segunda visão, a ferida palestina constitui uma lacuna que infectou durante 75 anos, em resultado da má gestão ocidental.

Esta questão palestiniana não desaparecerá agora – nem será resolvida através da restauração da desacreditada Autoridade Palestiniana, nem de vagas “conversações” sobre algum Estado Palestiniano em “algum dia”. Devemos reconfigurar o nosso pensamento – num plano de maior alcance – para termos em conta a intrusão de dimensões mutáveis na consciência.

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

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