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Guerra brutal e caótica - normas, convenções e leis de conduta estão a ser aniquiladas

“Um aspecto importante da conduta de Israel - e da aquiescência de Biden - é que Israel está empenhado num esforço deliberado e sistemático para destruir as leis e normas existentes em matéria de guerra”. Nem imunidade das instalações diplomáticas (que a NATO iniciara já na Jugoslávia); nem preservar hospitais e pessoal da saúde; nem entrega de ajuda humanitária; nem proteger civis da fome; nem não bombardear indiscriminadamente. Tudo isso o estado sionista faz, com o apoio e a cumplicidade efectiva dos EUA e seus vassalos. É a “imperialista ordem baseada em regras” aplicada ao genocídio.

por Alastair Crooke (PT) | Strategic Culture Foundation

ODiario.info - 10 de abril, 2024

https://www.odiario.info/guerra-brutal-e-caotica-normas-convencoes/

Estamos à beira do que se pode designar por Guerra Caótica. Não a fórmula utilizada frequentemente por Israel no passado para intimidar os adversários; esta é diferente.

O repórter israelita Eddie Cohen afirmou, na sequência do ataque ao consulado iraniano “Somos muito claros quando dizemos que queremos começar uma guerra com o Irão e o Hezbollah. Ainda não perceberam?”

“Israel quer arrastar o Irão para uma guerra em grande escala para poder atacar as instalações nucleares iranianas”, embora estas instalações estejam fora do alcance americano e israelita, enterradas sob montanhas.

Cohen e, claro, a liderança militar de Israel, saberão disso; mas, mesmo assim, Israel está a encerrar-se numa lógica que só pode conduzir à derrota. As instalações nucleares do Irão estão a salvo do ataque israelita. A destruição de infra-estruturas civis iranianas, que estão à vista de todos, pode matar muita gente, mas não vai, por si só, fazer colapsar o Estado iraniano.

Trita Parsi situa o objectivo de Israel ao atacar o consulado iraniano em Damasco num contexto diferente:

“Um aspecto importante da conduta de Israel - e da aquiescência de Biden - é que Israel está empenhado num esforço deliberado e sistemático para destruir as leis e normas existentes em matéria de guerra.

Mesmo em tempo de guerra, as embaixadas estão fora dos limites [no entanto] Israel acaba de bombardear um complexo diplomático iraniano em Damasco.

Bombardear hospitais é um crime de guerra, [no entanto] Israel bombardeou TODOS os hospitais de Gaza. Até assassinou médicos e doentes dentro de hospitais.
O TIJ obrigou Israel a permitir a entrega de ajuda humanitária a Gaza. Israel impede activamente a entrada de ajuda.

A fome de civis como método de guerra é proibida pelo direito humanitário internacional. Israel criou deliberadamente uma situação de fome em Gaza.

Os bombardeamentos indiscriminados são ilegais ao abrigo do direito humanitário internacional. O próprio Biden admite que Israel está a bombardear Gaza de forma indiscriminada”.

A lista continua…No entanto, a violação por Israel da imunidade concedida pela Convenção de Viena às instalações diplomáticas - para além do estatuto das pessoas mortas - é altamente significativa. É um sinal importante: Israel quer guerra - mas com o apoio dos EUA, claro.

O objectivo de Israel é, em primeiro lugar, destruir as normas, convenções e leis da guerra; criar uma anarquia geopolítica em que vale tudo, e através da qual, com a Casa Branca frustrada, mas aquiescendo a cada norma de conduta ostensivamente espezinhada, permite a Netanyahu agarrar o freio dos EUA e conduzir o cavalo da Casa Branca à trela - em direção à sua “Grande Vitória” regional do Fim dos Tempos; uma guerra necessariamente brutal - para além das linhas vermelhas existentes e desprovida de limites.

Tão simbolicamente significativo como o ataque a Damasco é o facto de os EUA, a França e a Grã-Bretanha - depois de uma breve referência à Convenção de Viena - se terem recusado a condenar o ataque ao consulado iraniano, colocando assim a sombra da dúvida sobre a imunidade definida na Convenção de Viena para instalações diplomáticas.

Implicitamente, esta recusa em condenar será amplamente entendida como uma branda condescendência para com o primeiro passo experimental de Israel em direção à guerra com o Hezbollah e o Irão.

Este niilismo “bíblico” caótico israelita não tem, no entanto, qualquer relação, em termos puramente racionais, com a aspiração de Netanyahu a uma “Grande Vitória”. A realidade é que Israel perdeu o seu poder de dissuasão. Não voltará; a profunda raiva que Israel gerou em todo o mundo islâmico através dos seus massacres em Gaza nos últimos seis meses impede-o.

No entanto, há uma segunda razão, secundária, pela qual Israel está decidido a desrespeitar deliberadamente o direito e as normas humanitárias: O jornalista israelita Yuval Abraham relata com grande profundidade na revista +972 a forma como Israel desenvolveu uma máquina de IA (chamada “Lavender”) para gerar listas de morte em Gaza - sem quase nenhuma verificação humana; apenas uma verificação de “carimbo” de cerca de “20 segundos” para se certificar de que o alvo da IA é do sexo masculino (uma vez que não se sabe se há mulheres nas forças armadas da Resistência).

A extra-legalidade flagrante por detrás da metodologia da “lista de alvos a abater” em Gaza, tal como relatada pelas várias fontes de Abraham, só pode ser imunizada e protegida através da sua normalização como sendo apenas uma entre um padrão geral de ilegalidades - e, de facto, reivindicando um excepcionalismo soberano:

“O exército israelita ataca sistematicamente o indivíduo visado quando este se encontra em casa - normalmente à noite, com toda a família presente - em vez de o fazer durante a actividade militar… Foram utilizados sistemas automatizados adicionais, incluindo um, chamado [com grotesca insensibilidade] “Onde está o papá?” - especificamente para localizar os alvos quando estes entravam na residência das suas famílias… No entanto, quando uma casa era atacada, normalmente à noite, o indivíduo visado por vezes nem sequer se encontrava no seu interior”.

“O resultado é que milhares de palestinianos - na sua maioria mulheres e crianças ou pessoas que não estavam envolvidas nos combates - foram eliminados pelos ataques aéreos israelitas, especialmente durante as primeiras semanas da guerra, devido às decisões do programa de IA”.

“Não estávamos interessados em matar os operacionais [do Hamas] quando estavam num edifício militar (…) ou envolvidos numa actividade militar”, disse A., um oficial dos serviços secretos, ao +972 e ao Local Call. “Pelo contrário, as IDF bombardearam-nos em casa sem hesitar - como primeira opção. É muito mais fácil bombardear a casa de uma família. O sistema foi concebido para os procurar nestas situações”.

“Além disso… quando se tratava de atingir alegados militantes juniores marcados pelo Lavender, o exército preferia utilizar apenas mísseis não guiados, vulgarmente conhecidos como bombas “burras” (em contraste com as bombas de precisão “inteligentes”) que podem destruir edifícios inteiros em cima dos seus ocupantes e causar baixas significativas. “Não se quer desperdiçar bombas caras em pessoas sem importância - é muito caro para o país e há uma escassez [dessas bombas]”.

“O exército também decidiu, durante as primeiras semanas da guerra que, por cada operacional júnior do Hamas que o Lavender marcasse, era permissível matar até 15 ou 20 civis… no caso de o alvo ser um alto funcionário do Hamas com a patente de comandante de batalhão ou brigada - o exército autorizou, em várias ocasiões, a morte de mais de 100 civis no assassínio de um único comandante”.

“O Lavender - que foi desenvolvido para criar alvos humanos na guerra em curso - marcou cerca de 37.000 palestinianos como suspeitos de serem “militantes do Hamas”, a maioria dos quais juniores, para serem assassinados (o porta-voz das IDF negou a existência de tal lista de mortes numa declaração ao +972 e ao Local Call)”.

Portanto, aí está - não é de admirar que Israel procure camuflar os pormenores num conjunto geral normalizado de transgressões ao direito humanitário: “Queriam permitir-nos atacar [os operacionais subalternos] automaticamente. Esse é o Santo Graal. Quando se passa a ser automático, a geração de alvos endoidece”.

Não é difícil especular sobre o que o TIJ poderá determinar…

Alguém imagina que não se pediria a esta defeituosa máquina de IA Lavender que elaborasse as suas listas de alvos a abater, caso Israel decidisse entrar no Líbano? (Mais uma razão para normalizar os procedimentos primeiro em Gaza).

O ponto-chave do relatório da revista +972 (com múltiplas fontes) é que as FDI não estavam concentradas na eliminação pontual das Brigadas Qassam do Hamas (como alegado):

Foi muito surpreendente para mim que nos pedissem para bombardear uma casa para matar um soldado razo, cuja importância nos combates era tão reduzida”, disse uma fonte sobre a utilização da IA para marcar alegados militantes de baixa patente:

“Apelidei esses alvos de ‘alvos de lixo’. Mesmo assim, achei-os mais éticos do que os alvos que bombardeámos apenas por “dissuasão” ’- grandes edifícios que são evacuados e derrubados só para causar destruição”.

Este relatório torna claramente absurdas as afirmações de Israel de ter desmantelado 19 dos 24 batalhões do Hamas: Uma fonte, crítica da inexactidão de Lavender, aponta a falha óbvia: “É um limite vago”; como distinguir um combatente do Hamas de qualquer outro homem civil de Gaza?

“No seu auge, o sistema conseguiu gerar 37.000 pessoas como potenciais alvos humanos”, disse B. “Mas os números mudavam constantemente, porque depende de onde se coloca a fasquia do que é um operacional do Hamas. Houve alturas em que um operacional do Hamas foi definido de forma mais abrangente, e depois a máquina começou a trazer-nos todo o tipo de pessoal da defesa civil, agentes da polícia, em quem seria uma pena desperdiçar bombas”.

Ainda na semana passada, o Ministro Ron Dermer, membro do Gabinete de Guerra, foi incumbido de se deslocar a Washington para alegar que o êxito das FDI no desmantelamento de 19 batalhões do Hamas justificava uma incursão em Rafah para desmantelar os 4 a 5 batalhões que Israel afirma ainda permanecerem.

O que é claro é que a IA foi um instrumento israelita fundamental para a sua “vitória” em Gaza. Israel ia vender um “enredo de fumo e fantasia” baseada em “Lavender”.

Em contrapartida, os palestinianos, que estão conscientes da sua inferioridade quantitativa, têm uma perspectiva muito diferente: mudaram para uma nova forma de pensar que dá ao simples acto de resistir um significado civilizacional - um caminho para a vitória metafísica (e muito possivelmente uma espécie de vitória militar), se não durante as suas vidas, então para o povo palestiniano, depois. Isto constitui o carácter assimétrico do conflito que Israel nunca conseguiu compreender.

Israel quer ser temido, acreditando que isso lhe devolverá o poder de dissuasão. Amira Hass escreve que, independentemente de qualquer repulsa por este governo e pelos seus membros: “A grande maioria [dos israelitas] continua a acreditar que a guerra é a solução”. E Mairav Zonszein, escrevendo na Foreign Policy, observa que “o problema não é apenas Netanyahu, é a sociedade israelita”:

“O enfoque em Netanyahu é uma distração conveniente do facto de que a guerra em Gaza não é a guerra de Netanyahu, é a guerra de Israel - e o problema não é apenas Netanyahu; é o eleitorado israelita… Uma grande maioria - 88% - dos judeus israelitas inquiridos em Janeiro acredita que o número espantoso de mortes de palestinianos, que ultrapassara as 25.000 na altura, é justificado. Uma grande maioria do público judeu também pensa que as [FDI] estão a usar uma força adequada ou mesmo insuficiente em Gaza… Colocar todas as culpas no primeiro-ministro não é o mais importante. Ignora o facto de os israelitas há muito terem avançado, permitido ou aceitado o sistema de ocupação militar do seu país e a desumanização dos palestinianos”.

No entanto, nem Israel, nem os EUA, têm uma estratégia abrangente para esta guerra. A abordagem de Israel é toda táctica - alegando ter degradado o Hamas; transformando Gaza num inferno humanitário e preparando o cenário para o “plano decisivo” concebido por Bezalel Smotrich para os palestinianos. Amira Hass de novo:

“Ou aceitam um estatuto inferior, emigram e são desenraizados de forma ostensivamente voluntária, ou enfrentam a derrota e a morte numa guerra. É este o plano que está agora a ser levado a cabo em Gaza e na Cisjordânia - com a maioria dos israelitas a servir de cúmplices activos e entusiastas, ou a aquiescer passivamente na sua realização”.

A “visão” dos EUA é também táctica (e muito distante da realidade) - imaginando a transformação de Gaza num Estadinho do tipo “colaboracionista Vichy”; imaginando que a pressão política dos franceses no Líbano forçará a retirada do Hezbollah das suas terras ancestrais no sul do Líbano; e imaginando que a Casa Branca de Biden é capaz de conseguir politicamente, através da pressão, o que Israel não pode fazer militarmente.

O paradoxo é que, estando Israel e os EUA dependentes de uma “imagem” que foi confundida com a realidade, isso também funciona em benefício do Irão e da Frente de Resistência. (Como diz o velho adágio, “não incomodar um adversário que está a cometer erros”).

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

https://www.odiario.info/guerra-brutal-e-caotica-normas-convencoes/


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