Moscou on the Rocks
A Rússia não dará início a um diálogo diplomático. Um sentimento de ameaça é muito real na Rússia. Canais diplomáticos passaram essa mensagem aos americanos.
por Pepe Escobar (pt-BR) | Strategic Culture Foundation
Brasil 247 - 12 de dezembro, 2023
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E então, em tom casual e despreocupado, durante um encontro com os heróis de Donbass, Putin anuncia que irá novamente concorrer à presidência nas próximas eleições, em março. Com base em sua maciça popularidade de no mínimo 80 por cento em termos nacionais, é certo que ele permaneça no poder até 2030.
Benvindos ao VVP-2024. Haverá muito tempo para uma longa série de reuniões com seu querido amigo Xi Jinping. A parceria estratégica Rússia-China – incumbida de abrir caminho para a multipolaridade – está programada para um rock ainda mais progressivo que o de Emerson, Lake and Palmer em Tarkus ("Você andou sobre as pedras dos anos?)
Estes últimos dias na deslumbrante e nevada Moscou vêm sendo inebriantes. Para começar, vamos à lista de chamada de todos os indicadores que até mesmo a hidrófoba mídia do OTANistão está tendo que relutantemente admitir.
O turismo só faz crescer – incluindo legiões de excursões de chineses e de muitas outras nacionalidades do Oeste Asiático e da Ásia Central e do Sul. Há um boom de exportações de petróleo e gás – já que clientes da União Europeia continuam comprando gás via Turquia ou, para a delícia de Nova Delhi, de petróleo reembalado na Índia.
O yuan toma o lugar do dólar americano e o euro.
Um boom industrial está acontecendo em uma economia de semi-guerra. Os investimentos vêm aumentando exponencialmente – inclusive os feitos por astuciosos oligarcas russos que não podem mais guardar seu dinheiro no Ocidente.
A substituição de importações impera – à medida que, paralelamente, produtos Made in Turkey ou Made in China substituem os europeus.
Em janeiro último, o FMI apostava que a economia russa encolheria em 2,3 porcento. Agora, esse posto avançado do Departamento do Tesouro admite que a economia russa crescerá em 2,2 por cento. Na verdade, crescerá em 3 por cento, segundo o próprio Putin, com base em cifras fornecidas pela "Demolidora" (segundo um pasquim ocidental) Madame Elvira Nabiullina.
Por trás das cortinas da Festa Móvel - Tive o privilégio de tomar parte em reuniões importantes tratando de tudo, desde as últimas notícias do front Ucrânia-Belarus até estudos de altíssimo nível e ainda secretos sobre como abandonar o dólar americano em pagamentos internacionais.
Um pequeno grupo no qual eu me incluía, convidado pelo Movimento Internacional Russófilo (MIR), foi agraciado com uma visita detalhada ao assombroso complexo do monastério Sretensky , definido por um cara superbacana chamado Larry Johnson como uma joia arquitetônica sem paralelo, onde se pode ter a experiência da "presença palpável de Deus".
Houve então o inevitável ritual de um longo e lânguido jantar com uma deslumbrante princesa no inigualável Lagoas do Patriarca - o Soho de Moscou; conversas com a jovem geração futura planejando um novo e revolucionário think tank em São Petersburgo; a estarrecedora Exposição Russa no VDNKh – que inclui um bunker subterrâneo de quatro andares construído pela Rosatom, destinado a ressaltar a história do programa nuclear russo.
Sim, há réplicas doTU-144 supersônico, do submarino K3 Leninsky Komsomol e até mesmo da Tsar Bomba. Para não falar do foguete de Gagarin, iluminado como se estivesse em uma viagem psicodélica.
O espírito do Natal está por toda a Praça Vermelha – com pistas de patinação no gelo e incontáveis árvores de Natal de todas as regiões russas exibidas no GUM.
Bem-vindos à verdadeira Festa Móvel, e em uma era de genocídio transmitido por smartphones que, diferentemente da de Hemingway de um século atrás, não está exatamente tendo lugar em uma Paris sombria e amedrontada.
O diálogo no mais alto nível diplomático, coordenado pelo MIR, seguiu as regras Chatham House: pode-se falar sobre a – valiosíssima – informação debatida e divulgada, mas as identidades e filiações não devem ser reveladas.
O que nos permite ressaltar alguns pontos cruciais.
A diplomacia russa de alto nível ficou estarrecida ao descobrir que a Europa era muito mais dogmática do que muitos acreditavam. Uma "nova geração" é necessária para que o diálogo seja retomado – mas isso não parece estar na agenda em um futuro previsível.
As embaixadas deveriam atuar como mediadoras. Mas não é o que acontece – principalmente quando se trata da Embaixada Americana em Moscou.
A Rússia não (itálicos meus) dará início a um diálogo diplomático. Um sentimento de ameaça é muito real na Rússia. Canais diplomáticos passaram essa mensagem aos americanos, por trás de portas fechadas.
Sobre as fantasias desejosas de cartas-fora-do-baralho como o antigo secretário-geral da OTAN Anders "Nevoeiro da Guerra" Rasmussen se gabando de bloquear o acesso de São Petersburgo ao Mar Báltico: "Isso é algo que pode terminar muito mal".
O abismo da humilhação da OTAN - Em meio ao que vem sendo corretamente descrito como "hipocrisia organizada por países soberanos", houve vislumbres de uma possível iniciativa intelectual unida entre a Rússia, o Sul Global e alguns dissidentes americanos e europeus, visando a levar o Ocidente Coletivo a aceitar a multipolaridade. Mas o que impera até o momento é o que foi definido como "padrões sombrios" – incluindo uma pergunta ainda sem resposta colocada pelo padrão analítico ouro-platina-terras raras que é Alastair Crooke: como aconteceu de o Ocidente ter sido tão vulnerável ao wokeísmo politicamente correto?
Muito foi aprendido sobre a adaptabilidade russa às sanções e o fortalecimento do caráter nacional paralelo à economia? Então, Nabiullina, afinal de contas, tinha razão: não é de admirar que os russos se sintam mais autoconfiantes do que antes.
Mas ninguém se ilude quando se trata da Guerra Híbrida de múltiplas camadas liderada pelo Hegêmona": "A Rússia tem que ser punida – e por muitas gerações. Os russos têm que conhecer seu lugar". Essa mentalidade não vai acabar. É necessária, portanto, uma Rússia unificada sob Putin e a Igreja Ortodoxa para lutar contra algo de tamanha "gravidade existencial".
E então há a dimensão profunda da Operação Militar Especial. O que é visto nas estepes de Donbass é visto também como um desafio espiritual. O espírito hegeliano, então, tem que ser invocado: um povo como um todo comprometido com a vitória – ainda mais agora que o Hegêmona está pirando de todo ao contemplar o abismo da humilhação cósmica da OTAN.
Levando em conta todo o colocado acima, não é de admirar que em todas as minhas longas caminhadas pela noite moscovita havia sempre uma Via Láctea de pensamentos rodopiando por ali. Eu, então, parava em um de meus botecos favoritos, tomava uma vodca gelada e brindava à multipolaridade galáctica. Ainda distante, mas alcançável.
Tradução de Patricia Zimbres
Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan.
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