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Operação Condor, Parte II

O recuo latino-americano, conjugado com o que se passa na Europa, confirma que o neoliberalismo admite cada vez mais a incapacidade para sobreviver em democracia, mesmo que expurgada dos seus princípios essenciais.

Por José Goulão

AbrilAbril - 1 de Novembro, 2018

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Bolsonaro era a peça que faltava no puzzle do regresso do «neoliberalismo às origens, à ortodoxia económica garantida por uma política fascista»Créditos / osul.com.br

Os tempos são outros, os métodos diferentes, o objectivo o mesmo: subjugar as populações, neutralizar as oposições, garantir o poder absoluto do neoliberalismo em toda a América Latina. Nos anos 70 do século passado, sob o alto patrocínio do secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger e comando operacional da CIA, chamou-se «Operação Condor». Agora, com mais togas e menos botas cardadas, mais urnas do que pronunciamentos, com smartphones em vez de máquinas de escrever, mais golpes em palácios do que a partir dos quartéis, mas certamente sob o mesmo comando operacional, poderá chamar-se «Operação Condor, Parte II». Um após outro, em efeito de dominó, os países latino-americanos realinham-se em regimes aparentados com o fascismo.

A eleição de Jair Bolsonaro não é apenas o prenúncio de novos tempos negros para o Brasil; as repercussões que terá à escala continental e global traduzem um potencial recuo no combate ao neoliberalismo – por isso os Estados Unidos e seus aliados regionais apostaram tanto, e tão empenhadamente, no golpe e sua institucionalização.

O Brasil é a grande potência da América Latina; um previsível membro do Conselho de Segurança da ONU, se as nações determinantes nesta organização tiverem o bom senso de a reformar; e, não menos importante, um participante essencial no movimento dos BRICS – Brasil, Índia, Rússia, China e África do Sul – que tanto assusta os antros neoliberais por afrontá-los numa alternativa ao globalismo.

Para o império e suas adjacências era preciso dar a volta ao Brasil. E fazê-lo sem concessões a qualquer veleidade democrática. O Brasil de Bolsonaro tenderá replicar o Chile de Pinochet – o fascismo puro e duro.

O «sonho do capitalismo»

É no fascismo que o neoliberalismo se sente confortável: «regime de sonho do capitalismo», como sentenciou The Economist, a bíblia do sistema. Já Margaret Thatcher, a «mãe» da doutrina económica e política aplicada na Europa pela direita, a extrema-direita e também a social-democracia neoliberalizada estreada pelo inqualificável Tony Blair, escrevia em carta de Fevereiro de 1982 ao seu mestre Friedrich von Hayek, professor emérito dos Chicago Boys: O regime chileno de Pinochet «é um exemplo relevante de reforma económica com o qual poderemos aprender numerosas lições. (…) Estou segura de que concorda que no Reino Unido, com as nossas instituições democráticas e com a necessidade de elevado grau de consenso, algumas das medidas adoptadas no Chile são inaceitáveis. A nossa reforma deve estar em linha com a nossa Constituição. Por vezes o processo poderá parecer dolorosamente lento. Mas estou certa de que o concretizaremos à nossa maneira e no nosso tempo. Então, ficará para durar».

Como se percebe destas palavras, o tempo neoliberal nem sempre se compadece com as Constituições ou as instituições democráticas, sobretudo em períodos de crise longa e arrastada, que vai desnudando o sistema, a par do aparecimento de governos que entendem ressuscitar conceitos populares que, para ele, é imperioso continuarem soterrados.

Em lado algum, como na América Latina, se registou nas últimas décadas uma vaga de governos eleitos dispostos a porem em causa a ordem imposta de Norte. Também em lado algum, como na América Latina, se assiste a um reviralho organizado e sistemático para restaurar essa ordem através do fascismo.

Se, por circunstâncias várias, entre elas a estrondosa crise do globalismo, o neoliberalismo regressa às suas origens, à ortodoxia económica garantida por uma política fascista, então em nenhuma região do globo isso será tão perceptível como na América Latina.

E Bolsonaro era uma peça estratégica que estava a faltar no puzzle.

Venezuela e Honduras

Em 11 de Abril de 2002, e pela terceira vez, entidades venezuelanas reconhecidamente ligadas ao Departamento de Estado e outras instituições de Washington, tentaram derrubar o governo democraticamente eleito de Hugo Chávez, que enfrentava deliberadamente as pressões neoliberais. Uma organização não governamental e patronal, a Fedecámeras – «O orgulho de ser empresário» –, e a comunicação social privada, com apoio da hierarquia católica, convocaram uma greve geral – melhor dizendo, um lockout – por tempo indeterminado, enquanto o ministro da Defesa, Lucas Rincón, anunciava a renúncia do presidente Hugo Chávez. Este foi preso numa ilha relativamente próxima de Caracas e o presidente da Fedecámeras, Pedro Carmona, assumiu a presidência e dissolveu os aparelhos legislativo e policial. Cinco dias antes, uma mensagem da Embaixada norte-americana em Caracas para o Departamento de Estado profetizava: «Militares dissidentes e oficiais de baixa patente estão a aumentar os esforços para organizar um golpe de Estado contra o presidente Chávez, possivelmente nos próximos dias deste mês.»

A intentona prolongou-se por 47 horas, mas o levantamento popular de resposta acabou por inviabilizá-la e forçar a libertação do presidente – que não tinha assinado qualquer documento de renúncia.

Ficou dado o aviso e, até hoje, os Estados Unidos não deixaram de conspirar e de impor sanções e bloqueio contra a Venezuela democrática. Donald Trump já anunciou a possibilidade de uma agressão militar; a Organização dos Estados Americanos (OEA) também; o ex-presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, também, nos últimos dias do seu mandato.

Agora, pouco antes do fim da campanha eleitoral, Jair Bolsonaro revelou que irá propor uma coligação militar à Colômbia – país tornado «parceiro global» da NATO – para invadir a Venezuela.

Foi, porém, a partir de 2008, perante a multiplicação de governos democráticos e de índole popular, que começaram a avolumar-se os sinais de conspiração organizada contra a América Latina.

No fim do seu mandato, George W. Bush decidiu reactivar a IV Esquadra militar, inerte desde 1950, nos oceanos que banham o Cone Sul da América. O objectivo confessado é o de cumprir «missões de paz, humanitárias e de luta contra o narcotráfico», se bem que este continue a crescer em todo o lado onde impera a influência norte-americana, da Colômbia ao México, das Honduras ao Afeganistão.

Na altura, o presidente brasileiro, Lula da Silva, pediu explicações a Washington, perguntando mesmo se o renascimento da frota não teria a ver com a descoberta de importantes reservas de petróleo a 300 quilómetros da costa brasileira e também no offshore do arquipélago das Malvinas, ocupado pelo Reino Unido à Argentina.

Em Junho de 2009, o presidente democraticamente eleito das Honduras, Manuel Zelaya, foi deposto por militares e pelo presidente do Parlamento, Roberto Micheletti, que mantinha contactos frequentes com John Negroponte, antigo embaixador no país, de 1981 a 1985, assessor da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, ex-chefe dos serviços de espionagem do presidente George W. Bush.

Além de tímidas reformas sociais, como a instituição de um salário mínimo, o presidente Zelaya pretendia transformar a base militar de Palmerola ou Soto Cano, a maior da América Central ocupada por tropas dos Estados Unidos, num aeroporto civil. Além disso, no mandato de Zelaya, as Honduras aderiram à ALBA – Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América –, passando a integrar o mesmo bloco comercial da Venezuela, de Cuba e da Bolívia.

Depois de preso pelos militares, Zelaya foi deportado para a Costa Rica, com escala em Palmerola, na sequência de uma declaração de renúncia que afirma nunca ter assinado.

Negroponte desembarcou nas Honduras pouco depois do golpe, avistando-se com o novo presidente Micheletti, que significativamente tinha como chefe da estrutura de segurança Jesus Escoto, membro fundador da Brigada 3-16, um esquadrão da morte criado na altura em que Negroponte foi embaixador em Tegucigalpa, durante a ditadura de Gustavo Álvarez. Milhares de presos políticos foram assassinados e dados como «desaparecidos» por acção da Brigada 3-16.

Entrevistado em 2011 pela Globo, Negroponte revelou que as alterações nas Honduras em 2009 corresponderam à «nova geopolítica latino-americana». «Não interessava quem tinha razão, se Zelaya se Micheletti, o que era importante era seguir em frente», explicou o assessor da senhora Clinton.

Desde então realizam-se regularmente eleições «democráticas» nas Honduras. Em 2013 e 2017, ganhou sempre Juan Orlando Hernández, o candidato patronal e fascista. Por coincidência, ambas as contagens de votos sofreram de vários apagões durante os quais se inverteram drasticamente as tendências registadas até então, com viragens milagrosas a favor do candidato declarado vencedor.

A fraude e a miséria do povo das Honduras andam de mãos dadas. E as vítimas desse martírio vão agora em caravana pedir asilo a quem o provocou. Arriscando-se as ser recebidas por um contingente de 15 mil soldados, conforme já prometeu o presidente Donald Trump.

Um padrão mais definido

A partir dos acontecimentos nas Honduras, onde as mudanças tiveram componentes militar e institucional, o padrão da «Operação Condor – Parte II» tornou-se mais definido, apostando em processos alegadamente institucionais.

O primeiro caso registou-se no Paraguai, em Junho 2012. O presidente popular e eleito pela Aliança Patriótica, o ex-bispo católico Fernando Lugo, foi destituído por impeachment através de votação no Congresso dos Senadores, que actuou como Supremo Tribunal, e substituído pelo vice-presidente, Federico Franco. Os senadores que ditaram a sentença condenaram o presidente por governação «imprópria, negligente e irresponsável», gerando «confrontação e luta de classes sociais».

Hoje, o Paraguai voltou às rotinas fascistas nos planos económico e social.

A embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai era Liliana Ayalde, uma veterana com mais de 20 anos ao serviço da USAID, uma das máscaras da CIA para as intentonas.

Cerca de um ano antes do golpe, a embaixadora recebeu jornalistas e proprietários de blogues para «conversar sobre paradigmas e directrizes». «Actores políticos de todos os quadrantes procuraram-me para ouvir conselhos; e a nossa influência é muito maior que as nossas pegadas», confessou Liliana Ayalde em entrevista dada na época.


Os EUA são acusados de dar formação aos «esquadrões da morte» nas Honduras, que integram polícias e paramilitares colombianos

Disse também que «o controlo político do Supremo Tribunal é crucial para garantir a impunidade dos crimes cometidos por políticos hábeis. Ter amigos no Supremo Tribunal é ouro puro».

Do Paraguai, Liliana Ayalde foi transferida precisamente para Brasília, de onde saiu pouco antes do golpe de 2016 dado através do impeachment da presidente Dilma Rousseff, recorrendo à manipulação do aparelho judiciário, e sua substituição pelo vice-presidente, Michel Temer.

Em 2013, segundo o ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), Edward Snowden, «o Brasil foi o país mais espiado do mundo». Enquanto isso, eram aplicadas as orientações defendidas por Liliana Ayalde através da USAID nos países onde esta «ONG» actua: desestabilização provocada por organizações não governamentais, acompanhada pela organização de campanhas na comunicação social, influência sobre o aparelho judicial e aproveitamento de eventuais lacunas constitucionais que permitam desencadear processos de impeachment.

«A prosperidade nasce da dor»

O golpe de Temer foi o primeiro passo para a ascensão de Bolsonaro e, com ele, o risco de instauração de uma ditadura fascista no Brasil.

O segundo passo foi a prisão do ex-presidente Lula da Silva, com base em simples «convicções» de um juiz e através da montagem de um circo mediático ao estilo da «Operação Mãos Limpas» em Itália, mediante «fuga» diária de documentos do processo para as mãos dos jornalistas, como já explicou a secretária do juiz instrutor Sérgio Moro, já ministro da Justiça de Bolsonaro.

A utilização do aparelho judicial para impedir ex-presidentes de prestígio e muito bem cotados em sondagens de se recandidatarem é outra das componentes fulcrais da «Operação Condor» em andamento.

Lula da Silva tinha uma vantagem esmagadora nas intenções de voto e, além de detido, foi impedido de concorrer a eleições.

A ex-presidente argentina, Cristina Kirchner, está a ser vítima de um processo judicial caracterizado por uma total falta de credibilidade, produzido por uma justiça já corrompida. O objectivo é óbvio: travar a sua candidatura nas eleições do próximo ano contra Macri, presidente que leva a Argentina para o abismo.

Mauricio Macri é um político fascista na verdadeira acepção da palavra, expoente neoliberal que deixou a Câmara de Buenos Aires em situação financeira deplorável, mas que beneficiou de uma campanha milionária e sustentada por um aparelho de mentira e mistificação montado contra Kirchner e o candidato da Frente Ampla na comunicação social e nas redes sociais.

Uma campanha de acusações e processos judiciais atinge também o ex-presidente do Equador, Rafael Correa, que lançou a «Revolução Cidadã» em 2007 e cujos avanços nos domínios popular e social estão a ser traídos por Lenín Moreno, o seu sucessor e ex-vice presidente.

Moreno retirou o Equador da ALBA, fez regressar os militares e espiões norte-americanos para «compensar» Washington pelo encerramento da base militar de Manta, decidida por Correa; e, depois de lhe cortar o acesso à internet, prepara-se para deixar Julian Assange, responsável pelos WikiLeaks, à mercê dos Estados Unidos. «Não passa de um hacker a bisbilhotar e-mails privados», comentou Moreno a propósito de Assange.

Veio a saber-se, entretanto, que o Departamento de Estado norte-americano manifestara preocupações com a eventual hipótese de o estado de saúde de Moreno – então vice-presidente de Rafael Correa – impedir a sua candidatura às eleições de 2013. E que, ainda nessa altura, o mesmo Departamento de Estado tinha acesso privilegiado a informações de Quito sobre o panorama para as eleições presidenciais e também sobre os movimentos de Julian Assange no consulado do Equador em Londres.

A viver na Bélgica desde que deixou a presidência do Equador, Rafael Correa enfrenta um cerco policial e uma acumulação de processos no seu país, tudo no sentido de impedir uma próxima recandidatura.

Na Bolívia todos os dias chovem acusações e ameaças contra o presidente Evo Morales, à frente de um processo popular que continua a resistir à conspiração, juntamente com o da Venezuela.

Na Nicarágua, o presidente sandinista, Daniel Ortega, enfrenta uma desestabilização permanente orientada pelas associações patronais, que, além dos tradicionais lockouts, incitam à violência nas ruas que a comunicação social global transforma em revolta popular.

No caso da Nicarágua, a conspiração contra Ortega tornou-se mais evidente a partir do momento em que ganhou viabilidade a abertura de um segundo canal interoceânico, negociado com a China e que será uma alternativa ao Canal do Panamá.

Honduras, Paraguai, Argentina, Equador, Brasil já caíram nas garras fascistas da nova «Operação Condor». Na Bolívia, na Nicarágua e, sobretudo na Venezuela, as ameaças sobem de tom. E também já no Uruguai – onde vozes militares negam a anterior existência de uma ditadura e consideram que investigar o que aconteceu com os «desaparecidos é um desperdício de dinheiro».

Enquanto isso, um discípulo de Augusto Pinochet, Sergio Piñera, mantém o Chile sob controlo, tal como o fascista Rafael Duque na Colômbia.

A situação no Brasil marca a consolidação do processo sistemático de conspiração e estabelece uma viragem. O recuo latino-americano, conjugado com o que se passa na Europa, confirma que o neoliberalismo admite cada vez mais ostensivamente a sua incapacidade para sobreviver em democracia, mesmo onde esta já foi expurgada de muitos dos seus princípios essenciais, como na União Europeia.

Como rezava a propaganda saudando o «milagre económico» no tempo do Chile de Pinochet: «a prosperidade nasce da dor».

Ou, como declarou Friedrich van Hayek, o mestre da senhora Thatcher, ao jornal El Mercurio, órgão oficioso da ditadura chilena: «se a opção totalitária é a única oportunidade que existe num determinado momento, então pode ser a melhor solução».

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José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP

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