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Quem tramou os ucranianos

Naturalmente, o tema é a Ucrânia, a guerra que dizem ter começado há um ano, mas já faz correr sangue inocente há nove – e não, não se iniciou com a «invasão russa» da Crimeia.

por José Goulão (PT)

Abril Abril - 23 de março, 2023

https://www.abrilabril.pt/internacional/quem-tramou-os-ucranianos

Nesta cacofonia turbulenta em que continuamos mergulhados, na qual os comentários esmagam a informação, a especulação trucida os factos e a mentira se transformou em verdade absoluta e única, é sempre aconselhável parar um pouco, sacudir a poeira dos delírios mediáticos e cuidar da memória futura.

Naturalmente, o tema é a Ucrânia, a guerra que dizem ter começado há um ano, mas já faz correr sangue inocente há nove – e não, não se iniciou com a «invasão russa» da Crimeia; é essencial, acima de tudo, apurar quem tramou os ucranianos, todos eles, de Leste a Oeste, de Norte a Sul, falem ucraniano, russo, húngaro, romeno, polaco ou outra língua pátria, vivam em Lvov, Kiev, Donetsk, Lugansk ou Odessa. É fulcral apurar quem transformou os ucranianos num povo mártir como os da Jugoslávia, do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria, da Palestina, do Saara Ocidental, da Somália e fiquemos por aqui para não transformar estas linhas num planisfério.

O começo dos começos

Não é difícil deduzir, mas para as vítimas da intoxicação mediática isso será um absurdo, que os rios de sangue na Ucrânia têm as nascentes na implosão ou auto-destruição gorbatchoviana da União Soviética, antecedida pelo desmoronamento do muro de Berlim. Um episódio decisivo para a construção da uma nova ordem mundial, de cariz imperial e unipolar, conhecida agora como «ordem internacional baseada em regras». Sendo esta tão arbitrária e volátil como seria um jogo de futebol em que as normas seguidas pelos árbitros fossem alteradas de cinco em cinco minutos.

A Ucrânia chegou assim à independência, herdando o território da anterior República Socialista Soviética da Ucrânia e com as características de uma sociedade multinacional reflectindo a miscigenação própria da multiplicidade de povos convivendo durante sete décadas sob uma bandeira comum.

Este riquíssimo panorama multicultural esbarrou desde o primeiro momento numa clique dirigente do novo Estado dominada pelos sectores chamados «dissidentes» em relação à União Soviética que foram sustentados durante dezenas de anos pelos Estados e serviços secretos de países europeus ocidentais e da América do Norte como instrumentos da guerra fria.

Sectores estes inspirados pelo vetusto, mas enraizado, nacionalismo integral ucraniano e a respectiva modulação nazi nascida da combinação oportunista entre a perspectiva independentista anti-soviética e a invasão da URSS pelas tropas hitlerianas – e que, de facto, gerou em 1941 um efémero Estado nazi na Ucrânia sob a protecção ainda mais efémera do Reich.

Posteriormente, nas suas estratégias de guerra fria, os Estados Unidos e seus satélites apostaram sempre prioritariamente nas correntes conspirativas ucranianas vinculadas ao nacionalismo integral e ao culto dos dirigentes históricos que serviram Hitler. Os quais moldaram e monopolizaram o independentismo ucraniano e a sua expressão como «dissidência» anti-soviética ao longo do período do pós-guerra, sobretudo a partir de Munique e do Canadá, sem serem perturbados pela «desnazificação» alemã, antes pelo contrário; e muito menos pelos seus protectores ocidentais que usurparam os preceitos democráticos como monopólio próprio, até mesmo para atestar, quando isso serve os seus «interesses», a democraticidade da herança e das práticas nazi-fascistas, como acontece na actualidade.

Em consequência deste processo patrocinado pelos poderes ocidentais, a classe política ucraniana que se instalou com a independência, ostentando a fachada de democracia liberal, surgiu contaminada por conceitos como xenofobia e «raça pura ucraniana» servindo de cimento da nação, a par de um desbragado neoliberalismo económico que, a partir das riquezas naturais do território e do saque do aparelho produtivo tornado disponível pelo fim da URSS – que afinal não era tão «obsoleto» como apregoavam – arrasaram em pouco tempo o tecido produtivo e social do país.

O Estado nasceu desde logo marcado pela corrupção, pela instalação de poderosas oligarquias, pelo empobrecimento e subjugação da maioria da população – à qual foram retirados e negados, em termos reais, os direitos mais elementares a uma vida decente e segura. Uma situação em tudo idêntica à que brotou na Rússia sob a presidência de Boris Ieltsin, que transitou sob inebriantes vapores de álcool de presidente do Partido Comunista da União Soviética em Moscovo para mordomo ao serviço de Washington e da voracidade cleptómana dos poderes ocidentais.

A Ucrânia e a Rússia percorreram céleres o caminho para se transformar em novas colónias, um desfecho que só foi travado, no caso russo, pelo aparecimento da figura de Vladimir Putin, aliás receitada a Washington pelo próprio Ieltsin, uma das mais interessantes ironias da História recente.

Putin travou a selvajaria reinante no sistema económico e a ganância externa, ajustou contas com alguns – apenas alguns – dos oligarcas internos com vocação transnacional, e começou aí, de facto, a desorientação das oligarquias ocidentais, cujo desespero crescente ameaça a Europa e todo o mundo. A árvore das patacas secou e o maná dos bens de produção, combustíveis fósseis e outras matérias-primas da Rússia desvaneceu-se.

As contradições ucranianas

A instalação plena em Kiev da elite nacionalista integral, desde o primeiro momento a escolhida pela plêiade político-mercantilista-autocrática ocidental, não foi alcançada de um momento para o outro.

A esmagadora maioria da população ucraniana, vivendo numa sociedade consolidada no convívio multicultural, insensível às diferenças de origens nacionais, linguísticas e regionais, não se identificou com as ideias segregacionistas de alguns poderosos sectores da estrutura dirigente, oriunda principalmente da zona ocidental do país.

Daí que a configuração geral dos órgãos de poder que foram sendo eleitos, apesar da maior capacidade de afirmação das correntes nacionalistas ortodoxas, reflectisse durante alguns anos a imagem plural da sociedade através de uma partilha de cargos nos mecanismos de decisão traduzindo, em boa parte, a sua composição multifacetada.

Lentamente, em consequência de uma estratégia montada pelos nacionalistas radicais e os seus protectores liberais (neoliberais) externos, este quadro foi-se alterando no sentido da transformação artificial da estrutura político-social muito diversificada numa rivalidade bipolar entre as tendências designadas «democráticas», «liberais», «pró-UE» e «pró-NATO» de um lado e os sectores ditos «pró-russos» e «pró-Putin» do outro, uma terminologia que se transformou em jargão no totalitarismo mediático corporativo transnacional, mas falsificava a realidade até então existente.

A estratégia passou pela primeira vez à prática com a «revolução colorida» em tons laranja organizada em 2004 pelos suspeitos do costume, as fundações do magnata George Soros e as agências conspirativas norte-americanas desempenhando os papéis da CIA que à CIA (e à Casa Branca) não convém interpretar directamente. Tal como acontece agora na Geórgia, como já todos perceberam: uma ingerência externa, sucedendo a várias outras, para pôr fora de cena os dirigentes que, embora com pouca convicção, não cumprem as directivas de submissão à NATO tal como a NATO exige.

O triunfo na intentona laranja dos conspiradores «pró-UE» de Kiev consumou-se mas foi efémero. Dirigentes russófonos, ditos «pró-russos», foram democraticamente eleitos para a presidência pouco tempo depois, enquanto a Rada (parlamento) funcionava com pluralidade de correntes e opiniões políticas. Uma situação que os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia toleravam cada vez menos à medida que iam crescendo os seus apetites pelo domínio absoluto do poder em Kiev e a consequente transformação do país num mero instrumento geoestratégico, económico e, sobretudo militar, do cerco à Rússia e de pressão sobre o regime de Moscovo. A voracidade do Ocidente global em relação à Ucrânia manifestou-se cada vez mais à medida que este país decisivo para a asfixia da Rússia se mantinha teimosamente independente, ainda que no fio da navalha. A NATO já conquistara e anexara os três Estados bálticos que anteriormente integraram a União Soviética, transformando-os em bases militares nominalmente administradas por regimes filo-fascistas. Mas a gigantesca Ucrânia era indispensável para concretizar os objectivos ocidentais de «cancelamento» da Rússia.

Este processo enquadrou-se e enquadra-se na ânsia dos Estados Unidos, arrastando os respectivos satélites, para conservar a todo o custo, sem excluir a ameaça nuclear, a estrutura internacional unipolar, as ambições globalistas do neoliberalismo como estratégia económica da «civilização ocidental», enfim, da ordem colonial/imperial, a tal que é «baseada em regras» alheias ao direito internacional.

O auge do confronto ucraniano entre os blocos artificiais «pró-UE» e «pró-Rússia» foi atingido durante a presidência, constituída democraticamente em 2010 através de eleições livres, universais e justas, de Viktor Yanukovych, aliás anterior primeiro-ministro do presidente nacionalista integral Leonid Kuchma, o primeiro eleito para o cargo depois da independência, em 1991.

Para desestabilizar e derrubar a estrutura governativa montada pelo presidente em funções, que derrotara eleitoralmente a simpatizante nazi/banderista Yulia Tymochenko, foi lançada mais uma «revolução colorida» depois de Yanukovych ter optado por uma Ucrânia independente, equidistante da União Europeia e da Rússia, ao decidir pôr de lado o desigual acordo «de associação» com a União Europeia, altamente lesivo para os interesses reais dos ucranianos. A Ucrânia era já um dos mais pobres países da Europa, razão acrescida para que a submissão à União Europeia ameaçasse a soberania, a sua própria sobrevivência e, sobretudo, os interesses da esmagadora maioria da população, que não se revia na oligocracia montada em Kiev.

Os movimentos de protesto manipulados do exterior perderam momentaneamente ímpeto quando o presidente e a oposição assinaram um acordo de convivência sob mediação europeia, com destaque para a França, a Alemanha e a Polónia, neste caso representada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Radoslaw Sikorski. Sublinha-se este nome porque muito recentemente defendeu a entrega de armas nucleares à Ucrânia para serem usadas contra a Rússia.

O acordo de nada valeu. Foi o primeiro caso conhecido, no processo ucraniano, de assinatura de um entendimento pacificador e de estabilização da democracia assinado por dirigentes da União Europeia para ser violado logo a seguir. Ficou aberto um precedente na demonstração de que os dirigentes da Europa monopolizadora da «democracia» não honram os acordos que assinam no âmbito internacional: em linguagem comum poderá dizer-se, sem receio de atentar contra a realidade, que agem como trapaceiros.

Para Washington, o acordo nunca existiu e a «revolução da Praça Maidan» ou «Euromaidan», também denominada «revolução da dignidade» ou «continuação da revolução laranja», intensificou-se a partir de Fevereiro de 2014, nessa altura conduzida já por forças de assalto interpretando as correntes nazis que ficaram fundidas no nacionalismo integral desde os tempos do colaboracionismo com Hitler.

Grupos esses que não esconderam a idolatria pelos dirigentes nacionalistas que actuaram ao lado das tropas do III Reich invasoras da URSS, participando em chacinas de dezenas de milhares de pessoas. Stepan Bandera, Andriy Melnik, Roman Shukhevych, Yaroslav Stetsko foram alguns desses criminosos de guerra, transformados em «heróis da Ucrânia» depois da independência.

Como pretexto para o golpe, o presidente Yanukovych foi declarado «corrupto», por sinal uma característica endémica na elite política ucraniana; mas, sobretudo, pagou o preço pelo facto de desobedecer aos putativos proprietários estrangeiros do país e de ter revogado – ainda que de maneira transitória – o título de «herói da Ucrânia» outorgado ao terrorista nazi Bandera. O presidente legítimo acabou deposto na sequência da conspiração internacional «Euromaidan», que nada teve de democrática; foi antes, de facto, um golpe de Estado contra a democracia, contra a vontade sentida e expressa pelo povo ucraniano, no qual o papel operacional decisivo foi desempenhado por grupos que não escondem a cultura e a prática nazis. «Se não fossemos nós, a revolução teria sido uma parada gay», explicou Yehven Karas, aliás «Vortex», chefe do agrupamento terrorista nazi C14, agora designado Fundação para o Futuro.

Começou então o martírio do povo ucraniano, enorme tragédia humanitária avaliada até hoje em centenas de milhares de mortos e feridos e milhões de desalojados e refugiados, às mãos dos dirigentes dos Estados Unidos e dos seus súbditos europeus – e da Rússia, numa clara relação de causa e efeito – incapazes de aceitar uma Ucrânia multiétnica e multicultural, democrática, respeitadora das raízes sociais e, esse é o problema fundamental, soberana dentro do ambiente geoestratégico.

No fundo, a Ucrânia plural, democrática, multicultural e independente violara «os nossos interesses», os «nossos valores», a «nossa civilização», olhados na perspectiva imperial dos Estados Unidos/NATO/UE. E o seu povo – todo ele, independentemente da região de origem – está a pagar por isso, desprezado, sacrificado, mergulhado na morte e na incerteza, submetido a uma ditadura modelada por admiradores de Hitler e seus cães de fila. Uma hecatombe provocada por dirigentes mundiais que odeiam a paz, só pensam nas pessoas quando lhes assegurem poder e lucros e para quem a guerra é solução única. Entre os quais se contam os dirigentes de todos os países da União Europeia, com destaque patético para o chefe de Estado e o governo de Portugal, espezinhando a Constituição, os interesses e a segurança dos portugueses.

A guerra inevitável

Não existem quaisquer dúvidas de que o golpe «Euromaidan» foi preparado, articulado e financiado pelos Estados Unidos. Victoria Nuland, um dos rostos operacionais da seita filo-fascista dos neoconservadores (neocons) e fundamentalistas neoliberais que governam os Estados Unidos manipulando o partido único (com as suas facetas democrática e republicana) a rogo do chamado Estado profundo, o complexo militar, industrial e tecnológico de vocação globalista, não tardou a confirmar o óbvio. Pouco depois de ter distribuído biscoitos aos manifestantes na própria Praça Maidan, na companhia de empenhados «democratas» de vários países «democráticos», subvertendo a democracia para instaurar a «democracia», Nuland revelou que os Estados Unidos tinham investido cinco mil milhões de dólares na operação golpista, desta feita para não falhar como acontecera com a «revolução laranja» de 2004.

A então subsecretária de Estado norte-americana, posição que conserva hoje, agindo em estreita colaboração com o vice-presidente Joseph Biden, pouco depois envolvido, através do filho Hunter, em escandalosos e generosos negócios no âmbito dos combustíveis fósseis ucranianos, montou a própria junta golpista de governo, como se percebeu através da gravação tornada pública de uma conversa com o embaixador norte-americano em Kiev, Jeffrey Platt. Nesse diálogo foram escolhidos os possíveis primeiro-ministro e ministros; ficou ainda registada, durante a conversa, a elevada consideração que Washington nutre pelas instituições europeias e seus dirigentes quando, a propósito das decisões sobre a composição da junta de Kiev, Nuland proclamou o famoso grito «fuck the UE», palavras que podem traduzir-se, em versão muito soft, «a União Europeia que se lixe». A elegante e respeitosa expressão continua hoje tão válida como nesse telefonema, o que se confirma pela maneira como os Estados Unidos actuam em relação à Europa e condenam os povos dos seus países à penúria económica, não esquecendo as enormes hipóteses de serem vítimas de uma chacina devastadora. Alguns dos mais interventivos profetas neocons estão acantonados na administração Biden: além de Nuland, o secretário da Defesa Lloyd Austin, o secretário de Estado Anthony Blinken, o chefe do Conselho de Segurança Nacional Jake Sullivan, sem esquecer a chefe da CIA e de outras agências determinantes na estrutura do poder globalista.

A junta nascida do labor de Nuland & Cia integrou, entre executivos e membros estruturas de apoio, 10 representantes de grupos nazis, que a partir dessas posições nunca mais deixaram de ter preponderância no poder de Kiev, sob os holofotes ou então em missões mais sombrias mas não menos eficazes em termos de chantagem política e terrorista, legislação racista e xenófoba, reformulação das estruturas de decisão, designadamente através da eliminação dos partidos políticos de oposição. Além da transformação da polícia política (SUB) de acordo com os cânones hitlerianos dos seus responsáveis.

Várias regiões do país, e não apenas as de maiorias russófonas, não aceitaram o golpe nem a abolição da democracia; nem massacres como o de Odessa, em 2 de Maio de 2014, nos quais grupos nazis chefiados pelo Sector de Direita, com a cumplicidade da polícia, incineraram pelo menos 48 pessoas ao incendiarem a Casa dos Sindicatos.

Manifestações multiplicaram-se em quase todo o território nacional, especialmente no Leste e Sudeste. A resposta militar de Kiev à resistência cívica foi o início da guerra a que continuamos a assistir e que degenerou rapidamente em tentativa de limpeza étnica forçando sucessivamente, pelo menos até Fevereiro de 2022, mais de quatro milhões de pessoas – por certo milhares e milhares de crianças – a refugiar-se na Rússia e deixando pelo caminho cerca de 14 mil mortos, mulheres e crianças em grande número. São as crianças que fugiram a uma morte certa e foram acolhidas como refugiadas na Rússia, tal como dezenas de milhares de outros ucranianos receberam guarida em países da União Europeia, que o Tribunal Penal Internacional (TPI) qualifica como «deportadas por Putin». Mais um prego no caixão da ONU e das instituições que lhe estão agregadas.

As populações do Leste e Sudeste organizaram-se então em milícias armadas, que contiveram e puseram em xeque as forças militares do novo regime, treinadas e armadas durante oito anos por estruturas da NATO e nas quais se integraram grupos de choque nazis, como os batalhões Azov, Aidar, Sector de Direita e outros. Em 2015, o exército de Kiev foi obrigado a interromper a ofensiva, depois de derrotado em importantes batalhas e perceber que, sem um novo e poderoso reforço, não atingiria os seus objectivos.

Entretanto, reagindo à violência perante a qual estava praticamente indefesa, a população da Crimeia, numa maioria superior a 90%, votou pelo regresso à soberania russa, sob estatuto de autonomia, acontecimento que, no dizer do secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, marcou o início da guerra entre Kiev e Moscovo. Tentando assim corrigir a rota depois de completamente desacreditada a versão de que o conflito se iniciou com a invasão russa de 24 de Fevereiro de 2022, o chefe atlantista optou por uma tese enviesada e também sem qualquer crédito histórico. Foram os ataques militares contra a resistência cívica no Donbass, decorrentes do golpe «Euromaidan», que marcaram o início da guerra em curso: a secessão da Crimeia e a posterior declaração de independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk são consequências dessa realidade sangrenta.

A suspensão do conflito em 2015 abriu as portas aos acordos de Minsk, subscritos por Kiev e Donbass sob mediação da Alemanha, França e Rússia. Prevêem uma solução que passa pela integridade territorial da Ucrânia na qual as regiões do Donbass usufruam de autonomia à luz de uma Constituição revista com esse objectivo.

Como hoje se sabe, através de testemunhos da chanceler alemã Merkel, do presidente francês Hollande, confirmados pelos anterior e actual presidentes da Ucrânia, Porochenko e Zelensky, os representantes ocidentais e de Kiev assinaram esses acordos sem intenção de os cumprirem, mas apenas para permitirem à Ucrânia adquirir novas capacidades militares de maneira a quebrar o impasse do cessar-fogo, prosseguir e concluir a limpeza étnica das populações de origem russa. Isto é, assinaram acordos de paz para reabrir as portas à guerra e ao extermínio.

De novo, como no período que antecedeu o golpe de Maidan, os mais destacados dirigentes da União Europeia assinaram acordos para não cumprir e proporcionar assim o recomeço de uma agressão inspirada em conceitos de xenofobia e limpeza étnica. A trapaça continuou.

O reforço militar de Kiev tornou possível que o reinício do genocídio, desta feita em grande escala, estivesse em andamento em meados de Fevereiro de 2022, de acordo com informações que podem consultar-se nos relatórios dos observadores da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa). O poderoso movimento ofensivo do renovado poder militar de Kiev contra as populações do Donbass foi travado apenas pela resposta de Moscovo a partir de 24 de Fevereiro, qualificada como uma «operação militar especial».

O resto é história mais recente. Em Março de 2022, a Turquia intermediou negociações em Istambul entre Moscovo e Kiev; um princípio de entendimento foi possível, mas uma súbita visita de Boris Johnson à capital ucraniana, cumprindo também ordens de Washington e Bruxelas, inutilizou essa hipótese de solução «desencorajando» Zelensky de lhe dar andamento. Então, tal como hoje, os dirigentes dos Estados Unidos, NATO e da União Europeia, estes em regime de reles submissão, que controlam e continuam a armar o regime de Kiev nem querem ouvir falar em cessar-fogo e negociações de paz. Como diz um congressista norte-americano, a guerra trava-se até «ao último ucraniano». Os Estados Unidos insistem que não aceitarão e impedirão qualquer outra intermediação do conflito.

A matança de ucranianos vai, portanto, continuar por ordem dos que planearam esta guerra há muitos anos: o caso da impossível defesa de Bakhmut, cidade transformada num «picador de carne» para sucessivas, impreparadas e mal armadas vagas de soldados feitos à pressa, entre os quais muitos adolescentes e seniores com mais de 60 anos, é, por ora, o caso mais dramático dessa política de sacrifício e genocídio do povo ucraniano – sem que se ouça uma palavra, um gemido, dos diligentes agentes do TPI.

Nos nove anos desde 2014 o regime nazificou-se por completo, a ideologia que aflorou na independência consolidou-se ao compasso das revoluções coloridas e tomou o poder, monopolizando-o, quando lhe foi oferecido por quem montou o golpe de Maidan.

A ditadura ucraniana interpretada por Zelensky, que foi eleito através de uma campanha pela paz para depois fazer a guerra, proíbe os partidos da oposição, instaurou a censura a todas as vozes oposicionistas, destrói milhões de livros, através da «lei dos povos indígenas» institucionalizou o segregacionismo xenófobo concedendo plenos direitos aos «verdadeiros ucranianos» e transformando os restantes em cidadãos de segunda, impedidos de utilizar as línguas pátrias e de publicar ou difundir meios de comunicação nesses idiomas. Criou na internet uma lista de cidadãos nacionais e estrangeiros considerados «inimigos do Estado ucraniano» para serem perseguidos e neutralizados; recentemente, decidiu retirar todos os direitos políticos, incluindo o de ser eleitor, aos cidadãos que de alguma maneira se identifiquem ou tenham identificado com os partidos proibidos.

Que dizem os donos da «verdadeira democracia»? Nada. Foram eles que criaram o monstro e patrocinam uma atmosfera envolvente, através do aparelho mediático de controlo de pensamento e opinião, para que a realidade escabrosa seja negada e silenciada enquanto difama quem expresse alguma ideia, opinião ou facto contrário. Assim cuidam dos «nossos valores» e defendem os «direitos humanos». A orgia de mentira em que se delicia a comunicação corporativa universaliza a falsificação, transforma a realidade numa ficção venenosa tal como a ex-primeira-ministra neozelandesa Jacinda Arden aconselhou um dia: «só devem obter-se informações de fontes fiáveis; a nossa é a única verdade».

Daí que os discursos lamentando a sorte terrível do povo ucraniano ressoem como litanias desumanas e repugnantes de quem finge chorar um povo que condenou à morte, do qual se serve como carne para canhão para, em última instância – já em desespero – defender uma ordem internacional egoísta e moribunda, agonizando sobre pilhas de milhões de cadáveres, tudo em nome da «civilização» e da «democracia» liberal e global - tal como diria qualquer fabricante e comerciante de armamento, vivendo em êxtase enquanto jorra o sangue dos ucranianos.

A devastadora campanha de propaganda e de mistificação não consegue esconder e soterrar a realidade sobre quem tramou e continua a tramar os ucranianos – todos eles, repete-se, porque não existem os «nossos» e os «outros». São os mesmos que o fizeram com os afegãos, os iraquianos – a segunda vaga do seu sacrifício começou há exactamente 20 anos – os líbios, os iemenitas, os palestinianos, os saarauis, os jugoslavos, os sírios, os somalis e todos os que continuam a ser alvos de «revoluções» mais ou menos «coloridas», operações militares de restauração da «democracia» ou guerras «humanitárias» para exercer o «direito de proteger». Tudo isto em cerca de 30 anos ou, para ser rigoroso, desde o fim da União Soviética e a implantação da ordem mundial neoliberal e unipolar «baseada em regras». Estamos a assistir às manobras mais desesperadas e sangrentas para que esta sobreviva, não siga o destino que lhe está traçado. A irresponsabilidade demente de quem joga tudo na derrota e desmantelamento da Rússia pode conduzir-nos ao tipo de conflito planetário que ninguém ganhará. Quem está aterrorizado, legitimamente, com as alterações climáticas, deverá consciencializar-se urgentemente de que a conquista da paz é o primeiro passo para garantir a vida na Terra.

Falsificando os preceitos em que diz assentar a «nossa civilização superior», o chamado Ocidente global fez desta uma enorme mentira, que a todos nós deveria indignar de forma expressa e activa, envolvida em repelente e insensível hipocrisia. O extermínio de centenas de milhares de seres humanos – à beira de um milhão, segundo cálculos conservadores – não é um acto civilizacional, é um comportamento próprio da barbárie.

E os ucranianos, antes de serem vítimas da Rússia, já o eram, há muitos anos, do Ocidente global expansionista.

A memória futura não deixará de o registar.

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.

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