Há mais de uma década, Israel começou a entender que a ocupação de Gaza por meio de cerco poderia ser vantajosa. Começou a transformar o minúsculo enclave num portfólio valioso na cena comercial da política de poder internacional. A pequena faixa de terra na costa leste do Mediterrâneo foi transformada numa mistura de campo de ensaios e montra.
Israel percebeu que poderia usar Gaza para desenvolver todos os tipos de novas tecnologias e estratégias associadas às indústrias de segurança interna que florescem em todo o ocidente, à medida que as autoridades desses países ficavam cada vez mais preocupadas com a agitação interna, às vezes chamada de populismo.
O cerco aos 2,3 milhões de palestinos de Gaza, imposto por Israel em 2007 após a eleição do Hamas para governar o enclave, permitiu todo tipo de experiências. Como a população poderia ser melhor contida? Que restrições poderiam ser impostas à sua dieta e estilo de vida? Como redes de informadores e colaboradores poderiam ser recrutadas à distância? Que efeito teve o aprisionamento da população e os repetidos bombardeios nas relações sociais e políticas? E, em última análise, como os habitantes de Gaza deveriam ser mantidos subjugados e uma revolta evitada?
As respostas a estas perguntas foram disponibilizadas aos aliados ocidentais num portal de compras de Israel. Os itens disponíveis incluíam sistemas de foguetes de interceção, sensores eletrónicos, sistemas de vigilância, drones, reconhecimento facial, torres de armas automatizadas e muito mais. Todos testados em situações reais em Gaza.
A posição de Israel sofreu um duro impacto com o facto de que os palestinos conseguiram contornar essa infraestrutura de confinamento no dia 7 de outubro – pelo menos por alguns dias – com uma sensação de nada a perder. Isto é parte da razão pela qual Israel agora precisa voltar a Gaza com tropas terrestres para mostrar que ainda tem meios para manter os palestinos esmagados.
Punição coletiva
O que nos leva ao segundo propósito servido por Gaza. À medida que os Estados ocidentais ficaram cada vez mais enervados com os sinais internos de agitação popular, começaram a pensar com mais cuidado sobre como contornar as restrições impostas pelo direito internacional.
O termo refere-se a um conjunto de leis que foram formalizadas após a Segunda Guerra Mundial, quando ambos os lados trataram os civis do outro lado das linhas de batalha como pouco mais que peões num tabuleiro de xadrez.
O objetivo dos que elaboraram o direito internacional era tornar inconcebível a repetição das atrocidades nazis na Europa, bem como outros crimes, como o bombardeamento britânico de cidades alemãs como Dresden ou o lançamento de bombas atómicas pelos Estados Unidos sobre Hiroxima e Nagasaki.
Um dos fundamentos do direito internacional – no cerne das Convenções de Genebra – é a proibição da punição coletiva: isto é, retaliar a população civil do inimigo, fazendo-a pagar o preço pelos atos de seus líderes e exércitos. Muito obviamente, Gaza é uma violação tão flagrante desta proibição quanto se pode conceber.
Mesmo em tempos "tranquilos", seus habitantes – um milhão deles crianças – são privados das liberdades mais básicas, como o direito de locomoção; acesso a cuidados de saúde adequados, porque não é possível introduzir medicamentos e equipamentos; acesso à água potável; e o uso de eletricidade durante grande parte do dia, porque Israel bombardeava constantemente a central de Gaza. Israel nunca escondeu que está punindo o povo de Gaza por ser governado pelo Hamas, que rejeita o direito de Israel ter desapossado os palestinos de sua terra natal em 1948 e os aprisionado em guetos superlotados como Gaza. O que Israel está fazendo com Gaza é a própria definição de punição coletiva. É um crime de guerra: 24 horas por dia, 365 dias por ano, durante 16 anos. E, no entanto, ninguém na chamada comunidade internacional parece ter notado.
As regras da guerra reescritas
Mas a situação legal mais complicada – para Israel e para o ocidente – é quando Israel bombardeia Gaza, como está a fazer, ou envia soldados, como tenciona fazer. O primeiro-ministro israelense, Netanyahu, destacou o problema quando disse ao povo de Gaza: "Agora saiam". Mas, como ele e os líderes ocidentais sabem, os habitantes de Gaza não têm para onde ir, nem como escapar das bombas. Portanto, qualquer ataque israelense é, por definição, também contra a população civil. É o equivalente moderno dos bombardeamentos de Dresden.
Israel tem trabalhado em estratégias para superar esta dificuldade desde o seu primeiro grande bombardeamento a Gaza no final de 2008, após a introdução do cerco. Uma unidade da procuradoria-geral foi encarregada de encontrar maneiras de reescrever as regras da guerra em favor de Israel.
Na época, temia-se que Israel fosse criticado por bombardear uma cerimónia de formatura da polícia em Gaza, matando muitos jovens cadetes. A polícia no direito internacional, é civil, não soldados e, portanto, não é um alvo legítimo. Os advogados israelenses também estavam preocupados com o facto de Israel ter destruído escritórios do governo, a infraestrutura da administração civil de Gaza.
As preocupações de Israel parecem estranhas agora – um sinal de quão longe já mudou o rumo do direito internacional: qualquer pessoa ligada ao Hamas, ainda que tendencialmente, é considerada um alvo legítimo, não apenas por Israel, mas por todos os governos ocidentais.
Autoridades ocidentais juntaram-se a Israel para tratar o Hamas simplesmente como uma organização terrorista, ignorando que também é um governo com pessoas fazendo tarefas humildes, como garantir que lixos sejam recolhidos e escolas mantidas abertas.
Como Orna Ben-Naftali, reitora de uma faculdade direito em Israel, disse ao jornal Haaretz em 2009: "Cria-se uma situação em que a maioria dos homens adultos em Gaza e a maioria dos edifícios podem ser tratados como alvos legítimos. A lei, na verdade, foi posta em causa". Naquela época, David Reisner, que já havia chefiado a unidade da procuradoria, explicou a filosofia de Israel ao Haaretz: "O que estamos vendo é uma revisão do direito internacional. Se se fizer algo durante tempo suficiente, o mundo aceitará”, "Todo o direito internacional agora baseia-se na noção de que um ato que é proibido hoje torna-se admissível se executado por um número suficiente de países".
Referindo-se ao ataque de Israel ao incipiente reator nuclear do Iraque em 1981, um ato de guerra condenado pelo CS da ONU, Reisner disse: "A atmosfera era que Israel havia cometido um crime. Hoje todos dizem que foi legítima defesa preventiva. O direito internacional progride através de violações".
Ele acrescentou que a sua equipa viajou aos EUA quatro vezes em 2001 para persuadir as autoridades americanas da interpretação cada vez mais flexível do direito internacional por Israel para subjugar os palestinos. "Se não fossem essas viagens, não tenho certeza se teríamos conseguido desenvolver a tese da guerra contra o terrorismo à escala atual", disse. Estas redefinições das regras da guerra mostraram-se inestimáveis quando os EUA optaram por invadir e ocupar o Afeganistão e o Iraque.
“Animais humanos”
Nos últimos anos, Israel continuou a fazer "evoluir" o direito internacional. Introduziu o conceito de "aviso prévio" – às vezes dando alguns minutos de aviso sobre a destruição de um edifício ou bairro. Civis vulneráveis que ainda estão na área, como idosos, crianças e deficientes, são então reformulados como alvos legítimos por não saírem a tempo. E o atual ataque a Gaza está a ser usado para mudar ainda mais as regras.
O artigo do Haaretz de 2009 inclui referências de polícias a Yoav Gallant, que era então o comandante militar encarregado de Gaza, sendo descrito como um "homem selvagem", sem tempo para subtilezas legais. Gallant é agora ministro da Defesa e o homem responsável por instituir o "cerco completo" a Gaza: "Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem combustível – está tudo fechado". Com uma linguagem que eliminou qualquer distinção entre o Hamas e os civis de Gaza, ele descreveu os palestinos como "animais humanos".
Isso leva a punição coletiva para um território totalmente diferente. Em termos de direito internacional, ela contorna o conceito de genocídio, tanto retórica quanto substantivamente. O quadro deste direito mudou tão completamente que até mesmo políticos ocidentais centristas estão a apoiar Israel – muitas vezes nem mesmo pedindo "contenção" ou "proporcionalidade", termos que costumam usar para obscurecer o apoio à violação da lei.
O Reino Unido tem liderado o caminho para ajudar Israel a reescrever o livro de regras sobre o direito internacional. Keir Starmer, líder da oposição trabalhista, quase certo ser o próximo primeiro-ministro, apoiou o "cerco completo" a Gaza, um crime contra a humanidade, reformulando-o como o "direito de Israel defender-se". Starmer tem obrigação de compreender as implicações legais das ações de Israel, mesmo que pareça imune às implicações morais: ele tem treino como advogado de direitos humanos.
Sua abordagem até parece ter apanhado de surpresa jornalistas que não são conhecidos por simpatias com a causa palestina. Quando perguntado por Kay Burley, da Sky News, se tinha alguma simpatia pelos civis em Gaza serem tratados como "animais humanos", Starmer não conseguiu encontrar uma única coisa a dizer em apoio. Em vez disso, desviou a conversa para um mentira absoluta: culpar o Hamas de sabotar o "processo de paz" que Israel enterrou na prática e declaradamente há anos.
Confirmando que o Partido Trabalhista agora tolera crimes de guerra cometidos por Israel, sua procuradora-geral sombra, Emily Thornberry, tem mantido o mesmo roteiro. No programa Newsnight, da BBC, evitou perguntas sobre se o corte de energia e fornecimentos a Gaza está de acordo com o direito internacional.
Não é por acaso que a posição de Starmer contrasta tão dramaticamente com a do seu antecessor, Jeremy Corbyn, expulso do cargo por uma campanha sustentada em difamações de antissemitismo fomentadas pelos apoiantes mais fervorosos de Israel. Starmer não se atreve a ser visto do lado errado desta questão. E este é exatamente o resultado que as autoridades israelenses queriam.
Bandeira de Israel no nº 10
Starmer está longe de estar sozinho. Grant Shapps, secretário de Defesa, também expressou apoio veemente à política de Israel de matar dois milhões de palestinos de fome em Gaza. Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido, colocou a bandeira israelense no exterior da residência oficial, 10 Downing Street, aparentemente despreocupado com o facto de que poderia ser considerado uma alegoria antissemita: que Israel controla a política externa do Reino Unido.
Starmer, não querendo ficar atrás, pediu que o arco do estádio Wembley fosse adornado com as cores da bandeira israelense. Qualquer que seja a amplitude do apoio coletivo a Israel, apresentado como ato de solidariedade, após o massacre de civis israelenses pelo Hamas, a leitura é inequívoca: o Reino Unido apoia Israel quando este inicia uma campanha de represálias com crimes de guerra em Gaza.
Este também é o objetivo do conselho da ministra do Interior, Suella Braverman, à polícia para tratar o agitar de bandeiras palestinas e gritos pela libertação da Palestina, em protestos em apoio a Gaza como atos criminosos. Os media fazem, como sempre, a sua parte no mesmo sentido. Uma equipe de TV do Channel 4 perseguiu Corbyn pelas ruas de Londres, exigindo que ele "condenasse" o Hamas. Insinuaram, através do enquadramento dessas exigências, que qualquer coisa como as preocupações adicionais de Corbyn com o bem-estar dos civis de Gaza – era a confirmação do antissemitismo do ex-líder trabalhista. A implicação clara dos políticos e dos media corporativos é que qualquer apoio aos direitos palestinos e questionar o "direito inquestionável" de Israel de cometer crimes de guerra, equivale a antissemitismo.
A hipocrisia da Europa
Essa dupla abordagem, de apoiar políticas israelenses genocidas em Gaza, sufocando qualquer dissidência, ou caracterizando-as como anti-semitismo, não se limita ao Reino Unido. Em toda a Europa, da Porta de Brandemburgo, em Berlim, à Torre Eiffel, em Paris, e ao parlamento búlgaro, edifícios oficiais foram iluminados com a bandeira israelense. A principal autoridade da Europa UE, Ursula von der Leyen, presidente da CE, saudou a bandeira israelense no PE, afirmando repetidamente que "a Europa está com Israel", mesmo quando os crimes de guerra israelenses aumentavam.
A força aérea israelense gabou-se de ter lançado cerca de 6 000 bombas em Gaza. Ao mesmo tempo, grupos de direitos humanos relataram que Israel estava disparando armas químicas incendiárias de fósforo branco em Gaza, um crime de guerra quando usada em áreas urbanas. A Defence for Children International observou que mais de 500 crianças palestinas foram mortas até 12/10 por bombas israelenses. [NT – Em 25/10, era relatado haver mais de 2 300 crianças mortas em Gaza desde o início deste conflito ]
Coube a Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios ocupados, apontar que von Der Leyen estava aplicando os princípios do direito internacional de forma totalmente inconsistente. Há quase um ano, a presidente da Comissão Europeia denunciou os ataques da Rússia a infraestruturas civis na Ucrânia como crimes de guerra. "Cortar a homens, mulheres e crianças, água, eletricidade e aquecimento com a chegada do inverno são atos de puro terror." "E temos que chamá-lo assim." Albanese observou que von der Leyen não disse nada equivalente sobre os ataques ainda piores de Israel à infraestrutura palestina.
Envio dos pesados
Enquanto isso, a França começou a dispersar e proibir manifestações contra os bombardeamentos a Gaza. O ministro da Justiça disse que a solidariedade com os palestinos corre o risco de ofender as comunidades judaicas e deve ser tratada como "discurso de ódio".
Naturalmente, Washington é inabalável no seu apoio a tudo o que Israel decidir fazer com Gaza, como o secretário de Estado Anthony Blinken deixou claro durante a sua visita. O presidente Biden prometeu armas e financiamento, e enviou equipamentos militares "pesados" para garantir que ninguém perturba Israel enquanto ele comete esses crimes de guerra. Porta-aviões foram enviados para a região para garantir o silêncio dos vizinhos de Israel enquanto a invasão terrestre é lançada.
Mesmo aqueles funcionários cujo papel principal é promover o direito internacional, como António Guterres, SG da ONU, começaram a mover-se com as mudanças no terreno. Como a maioria das autoridades ocidentais, ele enfatizou as "necessidades humanitárias" de Gaza acima das regras de guerra que Israel é obrigado a honrar.
A linguagem do direito internacional que deveria aplicar-se a Gaza – regras e normas a que Israel deveria obedecer – deu lugar, na melhor das hipóteses, aos princípios do humanitarismo: actos de caridade internacional para remendar o sofrimento daqueles cujos direitos estão a ser sistematicamente espezinhados e daqueles cujas vidas estão a ser cerceadas.
As autoridades ocidentais estão, por agora, satisfeitas com a direção que o caso toma. Não apenas pelo bem de Israel, mas também pelos seus. Porque um dia, as suas próprias populações podem ser tão problemáticas para eles quanto os palestinos em Gaza são para Israel agora. Apoiar o direito de Israel a se defender é uma espécie de investimento.
Jonathan Cook ganhou o prémio Martha Gellhorn Special de jornalismo. Os seus livros incluem “Israel e o Choque das Civilizações: Iraque, Irão e o Plano para Refazer o Médio Oriente” (Pluto Press) e “Palestina em desaparecimento: experiências de Israel com o Desespero Humano” (Zed Books).
https://www.resistir.info/palestina/sem_lei_em_gaza.html