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Tempestade Khashoggi abate-se sobre o mundo

No caso do assassínio do jornalista-espião Jamal Khashoggi o Ocidente é de novo vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas e da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

Por José Goulão

AbrilAbril - 25 de Outubro, 2018

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Polícias forenses turcos no consulado da Arábia Saudita em Istambul, investigando as circunstâncias da morte de Jamal Khashoggi. Istambul, Turquia, Outubro de 2018. CréditosFonte: El Independiente/EFE

O cadáver do jornalista-espião Jamal Khashoggi pode ainda não ter aparecido oficialmente, mas há muitos esqueletos a sair dos armários dos Estados Unidos e dos seus principais aliados ocidentais em matéria de direitos humanos, cumplicidades e relações com a Arábia Saudita, país que é propriedade privada de uma família cuja conduta não desdenha o recurso a práticas criminosas.

Sendo o assassínio de Khashoggi apenas mais um na longa lista de atrocidades que inclui chacinas contemporâneas como a que decorre no Iémen, as suas repercussões, porém, podem gerar uma situação diferente. Alguns sinais indiciam que o Ocidente poderá sentir-se obrigado, pela primeira vez, a bater de frente com o seu tradicional aliado. Mas estará preparado para se aguentar com a resposta dos beduínos do deserto, para quem «todo o insulto deve ser vingado»?

Petróleo a 200 dólares por barril, fim da exclusividade do dólar nas transacções petrolíferas, aproximação ao Irão, apoio ao Hamas e ao Hezbollah, compra de armas à China e à Rússia, cedência de uma base militar a Moscovo em região saudita próxima dos territórios da Síria, Israel, Líbano e Iraque – o recado de Riade já foi transmitido por Turki al-Dhakil, conselheiro do príncipe Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro, ministro da Defesa e homem forte da Arábia Saudita. Estas medidas e algumas outras do mesmo género serão as respostas a eventuais sanções norte-americanas e dos principais países ocidentais ditadas pelo assassínio de Khashoggi, agente da CIA, «residente norte-americano», braço direito do principal opositor de Mohammed bin Salman, Walid bin Talal – um dos homens mais ricos do mundo, embaixador secreto da Arábia Saudita em Israel.

Mohammed bin Salman, espécie de regente do reino perante a doença do rei Salman, com 82 anos, poderá ser, é certo, vítima da sua ganância galopante. Com pouco mais de 30 anos e depois de ter eliminado toda a concorrência na corrida ao trono, tornou-se um caso exemplar de alguém que pretende ganhar muito em pouco tempo. Isso pode sair-lhe caro na sequência de um episódio fabricado essencialmente no âmbito de serviços secretos e onde as traições cruzadas não serão de desprezar.

Ganancioso e sem limites

Mal ascendeu à posição de herdeiro do trono, Mohammed bin Salman pretendeu ter acesso às inexploradas reservas de hidrocarbonetos do deserto Rub-al-Khali, em território sob o domínio do Iémen; como este país se opôs às suas pretensões provocou a guerra que ainda hoje se arrasta, condenando sete milhões de pessoas à fome, provocando 15 mil mortos e 24 mil feridos em 1300 dias.

Em 4 de Novembro de 2017, Mohammed bin Salman aproveitou uma alegada tentativa de golpe palaciano para prender e torturar cerca de 1300 príncipes e altos quadros do regime, aproveitando para extorquir pelo menos metade das fortunas a cada um. E foi assim que 800 mil milhões de dólares entraram nos seus cofres pessoais, que não nos do rei – que se confundem com os do Estado.

De caminho, o herdeiro do trono decapitou, na verdadeira acepção da palavra, a oposição xiita ao executar o seu dirigente máximo, Nimr Bakr al-Nimri. E mandou arrasar com tanques de guerra numerosas aldeias e comunidades xiitas na região de Qatif, como foi o caso de Mussawara e Chukeiwat.

Um episódio mal contado

O assassínio de Jamal Khashoggi, ao cabo desta sequência de crimes durante a qual os Estados Unidos e os seus aliados permaneceram mudos e quedos, aparece como uma história ainda muito mal contada.

Khashoggi sabia muitos segredos cujo receio de divulgação era suficiente para tirar o sono ao poder saudita. Não existem dúvidas de que Bin Salman o mandou silenciar, aproveitando também para lançar uma nova purga interna atingindo Walid bin Talal, um rival com peso mundial. Daí que a confissão atribuída a Khashoggi sob tortura, segundo a qual estava em preparação um golpe para afastar o príncipe herdeiro, fosse uma maneira de atingir definitivamente esse adversário.

O crime foi obra dos serviços secretos sauditas e a sua preparação era do conhecimento de outros serviços de espionagem.

A CIA sabia de tudo, segundo revelações do Washington Post; e os serviços secretos turcos, MIT, também; por isso montaram previamente escutas no consulado saudita em Istambul, onde tudo aconteceu.

Porém, nem a CIA – com quem Khashoggi trabalhava – nem o MIT advertiram o jornalista-espião dos riscos que corria. Isto é, deixaram-no ser assassinado, provavelmente para que os governos turco e norte-americano tirem proveito da situação. De acordo com as revelações do Washington Post, Khashoggi foi mesmo dissuadido, por «uma pessoa da sua inteira confiança», de procurar a legalização dos seus documentos no consulado de Washington, e aconselhado antes a procurar o de Istambul. Quem o fez, apontou-lhe o caminho da morte.

Nunca antes visto

O assassínio de Jamal Khashoggi adquire assim uma dimensão mundial jamais observada em relação a qualquer dos muitos crimes que preenchem o quotidiano da Arábia Saudita.

França, Reino Unido e Alemanha prometem sanções comerciais – longe de incluir, porém, a venda de armas com as quais o regime saudita flagela o Iémen, ameaça fazer o mesmo com o Koweit, e arrasa aldeias xiitas.

As ameaças dos Estados Unidos também não passam ainda de propaganda da qual faz eco a comunicação social. Não é de crer que os impérios armamentistas norte-americanos admitam que seja posta em causa, por exemplo, a última encomenda de armas feita pelo príncipe Mohammed bin Salman, e que ascende a 110 mil milhões de dólares.

Numa primeira fase, Trump deu «credibilidade» às versões sauditas sobre o «desaparecimento» de Khashoggi; depois, achou «lógicas» as explicações sobre a suposta «rixa» com «bandidos comuns» da qual teria resultado a morte do jornalista. Aguarda-se, entretanto, que a visita de uma equipa da CIA ao local do crime contribua para uma posição norte-americana mais credível perante a opinião pública – muito sensibilizada internacionalmente pelo assassínio.

Uma sensibilização que não deixa de ser caso virgem perante os continuados crimes do regime saudita.

Nunca os Estados Unidos e as principais potências da NATO e da União Europeia manifestaram qualquer inquietação pelo contributo do Riade para a criação de grupos terroristas islâmicos, desde os mujahidin afegãos, em meados dos anos setenta, seguindo-se bin Laden e a al-Qaida e seus sucedâneos, até ao Estado Islâmico e suas sequelas.

Jamais os Estados Unidos e seus aliados procuraram aprofundar as «coincidências» existentes entre o poder saudita e os atentados de 11 de Setembro de 2001 em Nova York.

O apoio terrorista patrocinado pela Arábia Saudita às operações de destruição de países como a Líbia, o Iraque ou a Síria nunca foi condenado – pelo contrário, foi aproveitado – pelos aliados ocidentais de Riade.

Não consta que alguma voz oficial dos Estados Unidos, da NATO e União Europeia tenha condenado a invasão saudita do Bahrein para fazer abortar a «primavera árabe».

Tolerância colaborante que se repete com a sangrenta agressão contra o Iémen, cujo fim não está à vista.

O assassínio sistemático de dirigentes da oposição saudita, ou mesmo de membros da família real «dissidentes» não é assunto que chame a atenção dos escrupulosos dirigentes europeus e norte-americanos.

Muito menos será motivo de inquietação o massacre de populações xiitas do reino whaabita, cujo monarca é uma emanação directa de Deus.

O Tratado de Quincy

Porém, a repugnante morte de Khashoggi, um crime entre muitos, uma vítima entre centenas de milhares, alterou a rotina complacente.

Acontece que quando Mohammed bin Salman eliminou a concorrência e se proclamou futuro rei observou-se na Europa e nos Estados Unidos uma onda de entusiasmo: o homem era um liberal, deixava as mulheres conduzir automóveis, promovia concertos, na verdade estávamos perante uma pedrada no charco, em Riade despontava um quase-democrata.

E nenhum dos seus actos criminosos mereceu reparos até ao assassínio de Khashoggi.

De repente, e apenas por causa do que aconteceu em Istambul, passámos a estar em presença de alguém que se limita a traduzir a essência do regime saudita – um comportamento «medieval».

Além do carácter invulgar da reacção internacional a este crime saudita, há outros aspectos, quase esquecidos, que contribuem para a sua singularidade.

Temos vindo a assistir a uma concentração das responsabilidades pelo assassínio de Khashoggi na pessoa de Mohammed Bin Salman, ilibando-se assim não apenas o rei Salman como o próprio regime.

Desta maneira, a situação torna-se exterior ao conteúdo do Tratado de Quincy, celebrado em 1945 entre o presidente norte-americano Franklin Roosevelt e o monarca saudita, mais recentemente confirmado por George W. Bush. Em duas palavras, o acordo estabelece que os Estados Unidos têm acesso aos hidrocarbonetos da região em troca da protecção militar ao reino da Arábia Saudita. Este, por seu turno, compromete-se a viabilizar a existência de um Estado judaico na Palestina.

De acordo com o tratado, os Estados Unidos devem proteger militarmente o Estado saudita, representado pelo rei. Esta interpretação exclui, portanto, o príncipe herdeiro; assim sendo, Bin Salman poderá ser removido e substituído por alguém menos truculento e ganancioso, alguém que possa contribuir para concretizar o mais recente projecto da Administração Trump: reactivar a economia norte-americana fazendo reingressar no país parte dos investimentos em hidrocarbonetos, ou seja, através de generoso reforço dos investimentos sauditas. Mohammed bin Salman poderia não ser o homem ideal para essa estratégia, apesar das fabulosas encomendas de armamento já feitas.

A situação joga-se agora no fio da navalha: ou Bin Salman é derrubado através de mais um golpe palaciano e faz-se «justiça» por Khashoggi – isto é, o poder saudita ficará em mãos mais previsíveis para os «revoltados» com o assassínio do jornalista-espião; ou ele resiste e a dimensão das ameaças já proferidas poderá ser uma tempestade sobre a economia mundial. Fechar as torneiras do petróleo até aos sete milhões e meio de barris por dia, catapultando-o para os 200 dólares por barril, é uma perspectiva assustadora para grande parte das nações mundiais.

A posição de Mohammed bin Salman, entretanto, poderá não ser tão periclitante como parece, porque tem um aliado poderosíssimo: Israel. Que não deixará de se movimentar neste contexto.

Benjamin Netanyahu e Bin Salman são unha com carne. O primeiro-ministro israelita conta com o dirigente saudita para continuar a assegurar a inoperância da Autoridade Palestiniana, mesmo perante a transferência de embaixadas para Jerusalém e a continuação da colonização; e, sobretudo, para manter viva a pressão bélica sobre o Irão. Bin Salman, por seu lado, assegura um alto nível de ameaça contra o Irão e continuará a contar com Israel para a guerra contra o Iémen. Telavive e Riade têm um quartel-general conjunto na Somalilândia, neste momento quase exclusivamente dedicado às operações militares em território iemenita.

Dentro do silêncio oficial israelita têm-se ouvido algumas vozes oficiosas saudando o desaparecimento de Khashoggi, alguém que «era amigo da al-Qaida e da Irmandade Muçulmana» – o que sendo verdade para o jornalista espião também não deixa de o ser para o regime sionista, tendo em conta o caso sírio.

Conhecendo-se a ligação umbilical entre os Estados Unidos e Israel, sobretudo entre Netanyahu e Trump, percebe-se que Mohammed bin Salman poderá não ser tão descartável como parece.

O nó está apertado. E a chantagem de Riade tem conteúdo explosivo. Mais uma vez o Ocidente é vítima do oportunismo da estratégia de dois pesos e duas medidas, da falta de princípios diplomáticos e humanitários.

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José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP

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