Há dez anos, em Setembro de 2008, o Secretário do Tesouro dos EUA, o antes banqueiro de Wall Street Henry Paulson, provocou deliberadamente o colapso do sistema global do dólar ao permitir que se afundasse um banco de investimento de média dimensão de Wall Street, o Lehman Brothers. Nesse momento, e com a ajuda dos infinitos recursos da Fed para criar dinheiro conhecidos como Quantitative Easing (Alívio Quantitativo), a meia-dúzia dos maiores bancos de Wall Street – incluindo o Goldman Sachs do próprio Paulson – foram salvos do colapso que a sua exótica política de securitização financeira tinha criado. O Fed agiu também no sentido de atribuir um volume sem precedentes de centenas de milhares de milhões de linhas de crédito em dólares EUA a bancos centrais da UE para prevenir uma insuficiência de dólares que teria claramente feito ruir toda a arquitectura financeira global. Seis bancos da eurozona tinham na altura disponibilidades em dólares que excediam os 100% do PIB dos seus países.
Um mundo cheio de dólares
Desde essa altura de há uma década o fornecimento de dólares baratos ao sistema financeiro global subiu a níveis sem precedentes. O Instituto para a Finança Internacional (IIF) em Washington estima que a dívida das famílias, governos, empresas e do sector financeiro nos 30 maiores mercados emergentes subiu para 211% do PIB conjunto no início do corrente ano. Estava em 143% em 2008.
Dados adicionais do IIF de Washington indicam a escala de uma armadilha de dívida cuja detonação está ainda a iniciar-se nas economias menos desenvolvidas, desde a América Latina até à Turquia.
Excluindo a China, a dívida total dos mercados emergentes, em todas as moedas incluindo as domésticas, quase duplicou passando 15 milhões de milhões de dólares em 2007 para 27 milhões de milhões no final de 2017. Segundo o IIF, a dívida da China passou de 6 milhões de milhões para 36 milhões de milhões de dólares. Para o conjunto de países de Mercados Emergentes, com as suas dívidas denominadas em dólares EUA passaram de 2,8 milhões de milhões em 2007 para cerca de 6,4 milhões de milhões de dólares. Empresas turcas devem agora quase 300 milhões de milhões de dólares em dívida denominada em moeda estrangeira – mais de metade do seu PIB -, na sua maioria em dólares. Os mercados emergentes preferiram o dólar por muitas razões.
Enquanto essas economias emergentes cresceram, ganhando dólares de exportação a uma taxa crescente, a dívida podia ser gerida. Agora tudo isso começa a mudar. O agente dessa mudança é o mais político dos bancos centrais do mundo, a Reserva Federal dos EUA cujo presidente, Jerome Powell, foi antes um dos sócios do pouco recomendável Grupo Carlyle. Argumentando que a economia interna dos EUA está forte o suficiente para que os juros do dólar EUA possam regressar ao “normal,” o Fed deu início a uma viragem titânica para a economia mundial. Powell e a Fed sabem muito bem o que estão a fazer. Estão a atarraxar os parafusos do dólar de modo a precipitar uma nova crise económica de grandes dimensões em todo o mundo emergente, em especial em economias chave eurasianas tais como Irão, Turquia, Rússia e China.
Apesar de todos os esforços de Rússia, China, Irão e outros países para se afastarem da dependência do dólar para o comércio internacional e a finança, o dólar permanece incontestado como a moeda de reserva dos bancos centrais, cerca de 63% de todas as reservas dos bancos centrais. Para além disso, mais de 88% das transacções internacionais diárias são efectuadas em dólares EUA. A maior parte do comércio de petróleo, de ouro e de «commmodities» é denominado em dólares. Desde a crise grega de 2011 que o euro deixou de constituir um sério rival à sua hegemonia enquanto moeda de reserva. Hoje a sua parcela nas reservas é de cerca de 20%.
Desde a crise financeira de 2008 o dólar e a importância da Fed expandiram-se a níveis sem precedentes. Apenas agora começa isso a ser entendido, à medida que o mundo começa a sentir, pela primeira vez desde 2008, indisponibilidades reais em dólares que significam um custo muito mais elevado para conseguir o empréstimo de mais dólares para refinanciar a dívida em dólares. O pico para o total da dívida dos mercados emergentes deverá suceder em 2019, com dívidas de mais de 1,3 milhões de milhões de dólares a atingir a maturação.
Aqui surge a armadilha. A Fed está não só a sugerir que irá aumentar mais agressivamente as taxas sobre fundos Fed EUA. Está também a reduzir o nível da dívida ao Tesouro EUA que comprou após a crise de 2008, chamada Redução Quantitativa (QT ou Quantitative Tightening).
De QE a QT…
Depois de 2008 a Fed começou aquilo que foi designado como Alívio Quantitativo (Quantitative Easing, QE). A Fed comprou uma estarrecedora quantidade de títulos dos bancos até um pico de 4,5 milhões de milhões de dólares, partindo de apenas 900 mil milhões no início da crise. A Fed anuncia agora que planeia reduzir esse montante em pelo menos um terço nos meses próximos.
O resultado do QE foi que os maiores bancos por detrás da crise financeira de 2008 foram inundados com liquidez pela Fed e as taxas de juro caíram para zero. A liquidez dos bancos foi por sua vez investida em qualquer lugar do mundo que oferecesse compensações mais elevadas, uma vez que os títulos EUA pagavam perto de zero juros. Foi investido em títulos-lixo do sector petroleiro dos xistos, numa mini bolha habitacional nos EUA. Mais acentuadamente a liquidez em dólares encaminhou-se para mercados emergentes de risco mais elevado como Turquia, Brasil, Argentina, Indonésia, Índia. Os dólares inundaram a China onde a economia florescia. E os dólares choveram sobre a Rússia antes das sanções EUA do início deste ano começarem a desencorajar investidores estrangeiros.
Agora a Fed deu início à QT (Quantitative Tightening – Restrição Quantitativa), o inverso da QE. Em finais de 2017 a Fed começou a reduzir as suas carteiras de títulos, o que reduz a liquidez em dólares do sistema bancário. Nos últimos meses de 2014 a Fed tinha já cessado a compra de novos títulos do mercado. A redução da carteira de títulos na Fed, por sua vez, impulsionou uma subida das taxas de juro. Até este Verão, foi tudo “gentilmente, gentilmente.” Aí o Presidente dos EUA desencadeou uma ofensiva de guerra comercial apontada globalmente, criando uma enorme incerteza na China, América Latina, Turquia e outros lugares, e novas sanções contra a Rússia e o Irão.
Hoje a Fed está a permitir que 40 milhares de milhões de dólares do seu Tesouro e títulos de empresas atinjam a maturidade sem os substituir, subindo para 50 milhares de milhões de dólares mensalmente para o final deste ano. Isso retira esses dólares do sistema bancário. Acrescenta-se a isso, para agravar o que está rapidamente a tornar-se uma insuficiência de dólares em grande escala, a redução de impostos de Trump está a somar centenas de milhares de milhões de dólares ao défice, que terá de ser financiado pelo Tesouro dos EUA através da emissão de novos títulos de dívida pública. Na medida em que a dívida do Tesouro sobe, o Tesouro ver-se-á forçado a pagar taxas de juro mais altas para vender esses títulos. Taxas de juro mais elevadas estão já a actuar como um íman que atrai dólares EUA de toda a parte do mundo.
Juntando-se à redução global, e sob a pressão da dominância da Fed e do dólar, o Banco do Japão e o Banco Central Europeu foram forçados a anunciar que iriam deixar de compra títulos das suas respectivas iniciativas QE. Desde Março que o mundo se encontra de facto numa nova era de QT.
A partir daqui a coisa tende a ser dramática a não ser que a Reserva Federal faça uma inversão de marcha e reate uma nova operação de liquidez QE a fim de evitar uma crise sistémica global. Na actual conjuntura isso parece improvável. Hoje, os bancos centrais em todo o mundo – mais ainda do que em 2008 – dançam a música que a Reserva Federal toca. Tal como Henry Kissinger alegadamente constatou nos anos 70 “se controlas o dinheiro, controlas o mundo.”
Uma Nova Crise Global em 2019?
Enquanto até ao momento o impacto da contracção do dólar tem sido gradual, está em vias de se tornar dramático. O balanço do conjunto dos bancos centrais G-3 mostra um crescimento de uns meros 76 milhares de milhões de dólares na primeira metade de 2018, comparado com uma subida de 703 milhares de milhões no semestre anterior – quase metade de um milhão de milhões de dólares desaparecidos da bolsa de empréstimos global. Bloomberg estima que a compra de activos por parte dos três maiores bancos centrais cairá para zero no final deste ano, quando nos finais de 2017 andava perto dos 100 milhares de milhões por mês. Isso traduz-se anualmente num equivalente de menos 1,2 milhões de milhões de liquidez de dólar em todo o mundo em 2019.
A lira turca caiu para metade em relação ao dólar EUA desde o início deste ano. Isso significa que grandes empresas de construção turcas e outras que estavam em condições de contrair empréstimos em dólares “baratos,” têm agora que dobrar o total de dólares EUA para o serviço dessas dívidas. A dívida não é na sua maioria dívida pública turca, mas sim dívida privada. As empresas turcas devem o que se estima em 300 milhares de milhões de dólares em moeda estrangeira, dólares na sua maioria, quase metade do PIB total do país. A liquidez em dólares manteve e economia turca a crescer desde a crise financeira de 2008 dos EUA. E não apenas a Turquia: países asiáticos desde o Paquistão à Coreia do Sul, com excepção da China, assumiram empréstimos num valor estimado de 2,1 milhões de milhões de dólares.
Enquanto o dólar se depreciava em relação a essas moedas e a Fed mantinha baixas a as taxas de juro – como sucedeu em 2008-2015 – o problema era pequeno. Agora tudo está a mudar e de forma dramática. O dólar está a apreciar-se fortemente em relação a todas as outras moedas, 7% este ano. Em combinação com isto, Washington está a desencadear deliberadamente guerras comerciais, provocações políticas, a ruptura unilateral do tratado do Irão, novas sanções contra Rússia, Irão, Coreia do Norte, Venezuela, e provocações sem precedentes contra a China. Ironicamente, as guerras comerciais de Trump conduziram a uma “fuga para a segurança” para fora de países emergentes como Turquia ou China e em direcção aos mercados EUA, com maior relevo para o mercado de títulos.
A Fed está a tornar o dólar EUA numa arma, e as pré-condições são em muitos aspectos semelhantes às que se verificaram no decurso da crise asiática de 1997. Tudo o que foi necessário na altura foi um ataque concertado por parte dos EUA sobre fundos hipotecários sem cobertura nas economias do Tier Asiático, o Thai Baht cuja queda provocou o colapso em muito do sudoeste asiático e mesmo em Hong Kong. Hoje o gatilho é Trump e os seus belicosos tweets contra Erdogan.
As guerras comerciais EUA de Trump, as sanções políticas e as nova legislação sobre impostos, no contexto de uma clara estratégia da Fed de contracção da disponibilidade de dólares, proporcionam o pano de fundo para o desencadear de uma guerra do dólar global contra opositores-chave, sem em qualquer caso ter sido declarada guerra. Tudo o que foi necessário foi uma série de provocações contra a enorme economia chinesa, provocações políticas contra o governo turco, novas sanções sem qualquer fundamento contra a Rússia, e bancos desde Paris a Milão a Francoforte e em qualquer outro lugar com empréstimos em dólares em mercados emergentes de risco mais elevado começaram a correr em busca de saída. A Lira entra em colapso em resultado de vendas em situação de quase pânico, a moeda iraniana entra em crise, a queda do rublo russo. Tudo isto, tal como também o declínio do Renmibi chinês, reflecte o início de uma quebra na disponibilidade global do dólar.
Se Washington consegue, a 4 de Novembro, cortar todas as exportações iranianas de petróleo, os preços (dólar) do petróleo irão subir acima dos 100 dólares, aumentando dramaticamente a carência de dólares no mundo em desenvolvimento. Isto é guerra por outros meios. A estratégia da Fed para o dólar actua agora como uma “arma silenciosa” para guerras não tão silenciosas como isso. Se prosseguir provocará um sério revés para a crescente independência dos países eurasiáticos em torno da alternativa ao dólar que a Nova Estrada da Seda de Rússia e China constitui. O papel do dólar enquanto principal moeda de reserva global e a capacidade da Reserva Federal em a controlar é uma arma de destruição maciça e um pilar estratégico do controlo do superpoder norte-americano. Estarão os países da Eurásia prontos para agir de forma efectiva em relação a ele?
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Frederick William Engdahl é jornalista, conferencista e consultor para riscos estratégicos. É graduado em política pela Princeton University; autor consagrado e especialista em questõesenergéticas e geopolítica da revista online New Eastern Outlook. Trabalhou como economista e jornalista free-lance em New York e na Europa. Começou a escrever sobre política do petróleo, com o primeiro choque do petróleo na década de 1970. Tem sido colaborador de longa data do movimento LaRouche. Seu primeiro livro foi A Century of War: Anglo-American Oil Politics and the New World Order, onde discute os papéis de Zbigniew Brzezinski, de George Ball e dos EUA na derrubada do xá do Irã em 1979, que se destinava a manipular os preços do petróleo e impedir a expansão soviética. Engdahl afirma que Brzezinski e Ball usaram o modelo de balcanização do mundo islâmico proposto por Bernard Lewis. Em 2007, completou seu livro Seeds of Destruction: The Hidden Agenda of Genetic Manipulation. Seu último livro foi: Gods of Money: Wall Street and the Death of the American Century (2010).
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https://www.odiario.info/a-arma-silenciosa-de-washington-para/