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No princípio era a arrogância

Este belo texto é importante a vários títulos. É importante pela reflexão que faz sobre um certo estado de espírito dominante entre o sionismo, alimentado por longas décadas de impunidade pelos seus crimes e pela enorme desproporção de forças face ao povo palestiniano. E igualmente por nos recordar que há no interior de Israel valiosas vozes, corajosas e lúcidas, que se associam ao generalizado clamor mundial para que seja posto fim a esta tragédia e a este genocídio. E, mesmo no que diz respeito à desproporção de forças, recordar que não existe nem existirá nunca uma arma capaz de liquidar a aspiração de um povo inteiro à liberdade

por Gideon Levy (PT) | Le Grand Soir

ODiario.info - 17 de outubro, 2023

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Israel castiga Gaza desde 1948. Ontem, Israel viu imagens que nunca esperou na sua vida, devido à sua arrogância.

Por detrás de tudo o que aconteceu há a arrogância israelita. Pensámos que tínhamos o direito de fazer tudo, que nunca pagaríamos um preço nem seríamos castigados por isso. Continuamos a agir sem confusão. Prendemos, matamos, maltratamos, roubamos, protegemos os massacres dos colonos, visitamos o Túmulo de José, o Túmulo de Otniel e o Altar de Yeshua, todos nos territórios palestinianos e, claro, visitamos o Monte do Templo - mais de 5.000 judeus no trono. Disparamos sobre inocentes, arrancamos-lhes os olhos e esmagamos-lhes a cara, deportamo-los, confiscamos-lhes as terras, pilhamo-los, tiramo-los das suas camas, procedemos à limpeza étnica e prosseguimos igualmente o cerco irracional.

Em Gaza, e tudo correrá bem

Construímos uma imensa barreira à volta da Faixa de Gaza, cuja estrutura subterrânea custa três mil milhões de shekels (1), e estamos em segurança. Contamos com os génios da unidade 8200 e dos agentes do Shin Bet que sabem tudo e nos prevenirão no momento certo. Deslocamos metade do exército do enclave de Gaza para o enclave de Huwara, só para garantir as celebrações do trono pelos colonos, e tudo correrá bem, seja em Huwara ou em Erez. Verifica-se depois que um buldózer primitivo e antigo pode ultrapassar até os obstáculos mais complexos e caros do mundo com relativa facilidade, quando há um forte incentivo para o fazer. Vejam, aquele obstáculo arrogante pode ser transposto por bicicletas e motociclos, apesar de todos os milhares de milhões gastos nele, e apesar de todos os especialistas e empreiteiros famosos que ganharam muito dinheiro. Pensámos que podíamos prosseguir o controlo ditatorial de Gaza, atirando aqui e ali migalhas de favor sob a forma de alguns milhares de autorizações de trabalho em Israel - é uma gota de água no oceano, que está sempre também condicionada a um bom comportamento - e não regresseis, mantende-a como a sua prisão.

Fazemos a paz com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos - e os nossos corações esquecem os Palestinianos para os poder eliminar, como numerosos israelitas teriam desejado. Continuamos a deter milhares de prisioneiros palestinianos, incluindo os que estão detidos sem julgamento, na sua maioria prisioneiros políticos, e não aceitamos discutir a sua libertação, mesmo depois de décadas de prisão. Dizemos-lhes que apenas pela força podem os seus prisioneiros ser libertados. Pensávamos que iríamos continuar a rejeitar arrogantemente qualquer tentativa de solução política, simplesmente porque isso não nos convinha, e que tudo iria certamente continuar assim para sempre. E, mais uma vez, não foi isso que aconteceu. Várias centenas de militantes palestinianos atravessaram a barreira e invadiram Israel de uma forma que nenhum israelita poderia ter imaginado. Algumas centenas de combatentes palestinianos provaram que dois milhões de pessoas não podem ser aprisionadas para sempre sem pagar um preço elevado. Tal como o velho e fumegante bulldozer palestiniano derrubou ontem o muro, o mais avançado de todos os muros e vedações, também derrubou o manto da arrogância e da indiferença israelita. Derrubou também a ideia de que bastava atacar Gaza de vez em quando com drones suicidas, e vender esses drones a meio mundo, para manter a segurança.

Ontem, Israel viu imagens que nunca tinha visto na sua vida: veículos militares palestinianos a patrulhar nas suas cidades e ciclistas de Gaza a atravessar as suas portas. Estas imagens deveriam rasgar o véu da arrogância. Os Palestinianos de Gaza decidiram que estão dispostos a pagar seja o que for por obter um vislumbre de liberdade. Haverá alguma esperança para isso? Não. Israel aprenderá a lição? Não.

Ontem já se falava em destruir bairros inteiros de Gaza, ocupar a Faixa e castigar Gaza “como nunca foi castigada antes”. Mas Israel castiga Gaza desde 1948, sem se deter um só momento. 75 anos de abusos, e agora espera-nos o pior. As ameaças de “arrasar Gaza” só provam uma coisa: que não aprendemos nada. A arrogância veio para ficar, mesmo que Israel tenha pago uma vez mais um pesado preço.

Benjamin Netanyahu tem uma responsabilidade muito pesada pelo que aconteceu, e tem de pagar o preço, mas o caso não começou com ele e não terminará com a sua partida. Devemos agora de chorar amargamente pelas vítimas israelitas. Mas devemos também de chorar por Gaza. Gaza, cuja população é maioritariamente constituída por refugiados criados por Israel; Gaza, que não conheceu um único dia de liberdade.

Nota
1 - Um shekel = 0,24 euros.

Haaretz 08/10/2023

Gideon Levy é jornalista israelita e activista da defesa dos direitos humanos.

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