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O balé russo da neutralidade Israel-Palestina

Embora alguns pesos-pesados russos pressionem para que Israel seja devolvido ao papel de estado hostil, é pouco provável que o Kremlin mude sua posição

por Pepe Escobar (pt-BR) | The Unz Review

Brasil 247 - 18 de outubro, 2023

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Kremlin em Moscou (Foto: Reuters)

Seria possível que o presidente filossemita russo esteja lenta, mas firmemente reavaliando sua avaliação geopolítica de Israel? Chamar a isso de a principal charada dos corredores de poder de Moscou é, na verdade, um eufemismo.

Não há sinais visíveis de uma tal mudança sísmica – pelo menos quando se trata da posição russa "oficialmente neutra" quanto ao intratável drama Israel-Palestina.

Exceto por uma surpreendente declaração feita na sexta-feira na cúpula da Comunidade dos Estados Independentes (CEI) realizada em Bishkek, quando Putin criticou os "métodos cruéis" empregados por Israel no bloqueio de Gaza, comparando-os com o "cerco de Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial".

"Isso é inaceitável", declarou o presidente russo, com a advertência de que quando 2,2 milhões de civis em Gaza "têm que sofrer, inclusive mulheres e crianças, é difícil para qualquer um concordar com isso".

Os comentários de Putin talvez sejam uma sugestão das mudanças em curso nas frustrantemente opacas relações Rússia-Israel. Uma outra, talvez tão importante quanto, é este importantíssimo artigo publicado na última sexta-feira no Vzglyad, um website sobre estratégia de segurança bastante próximo ao Kremlin, com o diplomático título de "Por que a Rússia permanece neutra no conflito do Oriente Médio".

É da maior importância notar que há apenas seis meses, e refletindo o quase consenso em meio à comunidade de inteligência russa, os editores do Vzglyad pediam que Moscou deslocasse seu considerável peso político para o apoio à principal questão para os mundos árabe e islâmico.

O artigo pontuou os principais pontos colocados por Putin em Bishkek: não há alternativa às negociações; Tel-Aviv foi submetida a um ataque brutal e tem o direito de se defender; uma verdadeira solução para o conflito só é possível com a criação de um estado independente palestino com capital em Jerusalém do Leste.

O presidente russo prefere a solução originalmente apresentada pela ONU de "dois estados", e acredita que o estado palestino deva ser estabelecido por "meios pacíficos". Mas, como boa parte do conflito foi "um resultado direto da política fracassada dos Estados Unidos no Oriente Médio", Putin rejeita os planos de Tel-Aviv de lançar uma operação terrestre em Gaza.

Essa atitude cautelosa certamente não indica que Putin pretenda mudar sua posição para a atitude que é praticamente consensual em meio ao Estado Maior siloviki (linha-dura), a diversas agências de inteligência e também ao ministério da defesa: eles consideram que Israel talvez seja um inimigo de fato da Federação Russa, aliado à Ucrânia, aos Estados Unidos e à OTAN.

Siga o dinheiro

Tel-Aviv vem sendo extremamente cautelosa na tentativa de não antagonizar frontalmente a Rússia na Ucrânia, e essa talvez seja uma consequência direta das relações notoriamente cordiais entre Putin e o Primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu.

Mas, muito mais importantes que Israel no tabuleiro geopolítico, são as relações que atualmente vêm se desenvolvendo entre Moscou e os estados árabes, em especial sua parceira de OPEC+, a Arábia Saudita, que vem ajudando a frustrar os esforços ocidentais de controlar os preços do petróleo.

Também ocupa um lugar central na formulação das políticas regionais russas sua parceria estratégica com o Irã, que rendeu dividendos na Síria e no Cáucaso, e que ajuda a conter o expansionismo dos Estados Unidos. Por fim, as complexas conversas com Ancara, em seus múltiplos níveis, são cruciais para as ambições econômicas e geopolíticas russas na Eurásia.

Todos as três potências do Oeste Asiático são estados de maioria muçulmana, afiliação essa de grande importância para a Rússia multipolar que abriga uma população muçulmana de dimensões consideráveis.

E, para esses três atores regionais, sem distinção, o castigo coletivo que hoje se desenrola em Gaza transgride toda e qualquer linha vermelha.

Israel, além disso, não é mais tão importante nas considerações financeiras de Moscou. Desde a década de 1990, imensos volumes de dinheiro russo transitaram para Israel, mas agora uma parcela significativa está fazendo o caminho de volta para a Rússia.

O caso notório do bilionário Mikhail Friedman ilustra bem essa nova realidade. O oligarca fechou sua casa no Reino Unido e se mudou para Israel uma semana antes do lançamento da Tempestade Al-Aqsa – que, por sua vez, fez com que ele se agarrasse ao seu passaporte russo e rumasse para Moscou em busca de segurança.

Friedman, que dirige o Grupo Alfa, com pesados interesses em telecomunicações, bancos, varejo e seguros e é um rico sobrevivente da crise de 1998, é suspeito pelos russos de "contribuir" com 150 milhões de dólares para o regime inimigo de Kiev.

A reação do Presidente da Duma Vyacheslav Volodin não poderia ter sido mais contundente – ou mais indiferente aos sentimentos de Israel sobre a questão:

"Qualquer um que tenha deixado o país e se lançado a atos repreensíveis, celebrando ataques militares ao território russo e desejando a vitória do regime nazista de Kiev deve entender que não apenas eles não são bem-vindos aqui, mas que caso retornem, “Magadan (um notório porto de trânsito para o gulag na era stalinista) estará esperando por eles".

A russofobia se encontra com o castigo coletivo

Enquanto o Coletivo Ocidental recorria a um monomaníaco "somos todos israelenses agora", a estratégia do Kremlin é se posicionar de forma visível como o melhor mediador possível para esse conflito – não apenas frente ao mundo árabe e muçulmano, mas também frente ao Sul/Maioria Global.

Foi esse o propósito da minuta de resolução apresentada pela Rússia esta semana no Conselho de Segurança da ONU, pedindo um cessar-fogo em Gaza, que foi previsivelmente abatida pelos suspeitos de sempre.

Três membros permanente do Conselho de Segurança – Estados Unidos, Reino Unido e França, mais sua neocolônia japonesa – votaram contra. Ao resto do mundo, isso pareceu exatamente o que de fato era: russofobia ocidental irracional e estados-fantoche dos Estados Unidos validando o bombardeio genocida israelense contra Gaza densamente ocupada por civis.

Extraoficialmente, analistas de inteligência apontam para a maneira pela qual o Estado-Maior, o aparato de segurança e o ministério da defesa russos parecem estar entrando em alinhamento orgânico com os sentimentos globais com relação às excessivas agressões de Israel.

O problema é que críticas russas oficiais e públicas à psicótica e repetida incitação à violência por parte de Netanyahu e dos direitistas Itamar Ben-Gvir, Ministro da Segurança Nacional, e Bezalel Smotrich, Ministro das Finanças, até agora não existem.

Pessoas do círculo interno de Moscou insistem que a posição oficialmente "neutra" do Kremlin se choca frontalmente com a de suas agências de defesa e segurança – em especial o GRU e o SVR – que jamais se esquecerão de que Israel se envolveu diretamente na matança de russos na Síria.

Essa visão só fez ficar mais forte desde setembro de 2018, quando a Força Aérea de Israel usou um avião de reconhecimento eletrônico Ilyushin-20M como cobertura contra mísseis sírios, fazendo com que ele fosse abatido e matando os quinze russos que estavam a bordo.

O silêncio nos corredores do poder reflete-se no silêncio na esfera pública. Não houve qualquer debate na Duma sobre a posição russa com relação a Israel-Palestina. E nenhum debate no Conselho de Segurança desde inícios de outubro.

Mas uma sutil insinuação nos é dada pelo Patriarca Kirill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, que ressaltou que a "coexistência pacífica" tem uma "dimensão religiosa" e exige uma "paz justa". Essa declaração não está exatamente alinhada com o anúncio da limpeza étnica de "animais humanos" em Gaza (direitos autorais do ministro da defesa de Israel).

Em alguns corredores próximos ao poder, corre um boato alarmante de um intrincado jogo de sombras entre Moscou e Washington, segundo o qual os americanos irão tratar Israel em troca de os russos tratarem da Ucrânia.

Embora isso selaria o processo ocidental já em curso de atirar o ator de camiseta suarenta de Kiev aos leões, é pouquíssimo provável que o Kremlin confie em qualquer negociação americana, principalmente uma que poderia marginalizar a influência russa no estratégico Oeste Asiático.

A solução de dois estados está morta

O balé russo da "neutralidade" irá continuar. Moscou está passando a Tel-Aviv a ideia de que mesmo dentro do quadro de sua parceria estratégica com o Irã, armas que poderiam ameaçar Israel – por exemplo, indo parar nas mãos do Hezbollah e do Hamas – não serão exportadas. O toma-lá-dá-cá desse arranjo seria que Israel, de seu lado, também não venderia nada a Kiev que ameaça a Rússia.

Mas, diferentemente dos Estados Unidos e do Reino Unido, a Rússia recusa-se a designar o Hamas de organização terrorista. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, vem sendo muito direto quanto a isso: Moscou mantém seus contatos de ambos os lados; sua "prioridade número um" é "o interesse dos cidadãos (russos) do país que vivem tanto na Palestina quanto em Israel", e a Rússia continuará como "parte que tem o potencial de participar dos processos de resolução de disputas".

A neutralidade, é claro, pode esbarrar em um beco sem saída. Para a maioria esmagadora dos estados árabes e muçulmanos ativamente cortejados pelo Kremlin, o desmonte do colonialismo de assentamentos comandado pelos sionistas deve ser a "prioridade número um".

Isso implica que a solução dos dois estados, para todos os fins práticos, está morta e enterrada. Mas não há indícios de que alguém, Moscou inclusive, esteja pronto a admiti-lo.

Tradução de Patricia Zimbres

Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan.

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