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As danças de Israel com o Hamas (I)

Em 2002, o historiador israelita Zeev Sternhell, da Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveu: «Não esqueçamos que, de facto, foi Israel que criou o Hamas. Pensou que era uma maneira inteligente de empurrar os islamitas contra a OLP».

por José Goulão (PT)

Abril Abril - 18 de outubro, 2023

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Manuel de Almeida / Agência Lusa

«Eles apenas vêem uma coisa: chegámos e roubámos-lhes o país. Porque é que eles aceitariam isso

           «Não ignoremos a verdade entre nós… politicamente somos os agressores e eles defendem-se»

      (David Ben-Gurion, fundador e primeiro presidente de Israel)

A dúvida não era se isto iria acontecer, mas quando e como aconteceria. E para os que acompanham o quotidiano de Gaza – não aqueles que se transferiram apressadamente da Ucrânia e tiveram de consultar os mapas para reprocessar o chip – o genocídio e a limpeza étnica a que estamos a assistir não são novidade nem surpresa.

A Faixa de Gaza é, há pouco mais de década e meia, um campo de concentração onde uma população de 2,3 milhões de habitantes está literalmente encerrada por imposição de Israel e a colaboração do Egipto, submetida a restrições selváticas que afectam a vida de cada cidadão, desde a importação de alimentos, medicamentos, a degradação da quantidade e da qualidade da água, os cortes sistemáticos de energia e, principalmparaente, as periódicas agressões militares de Israel, manobras punitivas que têm ceifado dezenas de milhares de vidas, deixando quase incólumes as estruturas do Hamas, e contribuído para a destruição contínua do parque habitacional e das estruturas públicas e sociais, designadamente as escolas. 

Gaza é um permanente cenário de guerra, embora o mundo pouca noção tenha disso, enquanto os governantes ocidentais, fiéis ao dogma de que Israel é um pilar do «mundo livre», a «única democracia no Médio Oriente», ignoram ostensivamente a existência dessa chaga humana. E são cúmplices da sua existência.

A operação militar do Hamas contra território israelita demonstrou que Israel pode não ser imune, mas continua impune graças à cumplicidade do virtuoso «mundo ocidental». Os sinais de convulsão em todo o Médio Oriente, porém, geram agora novos tipos de interrogações tendo em conta o confronto aberto, e cada vez mais concreto, entre as ordens internacionais unipolar e multipolar. Tudo o que acontecer na região será em cenário geoestratégico renovado.

Uma população e um território mártir 

Viver em Gaza era penoso quando visitei pela primeira vez o território, há 35 anos, por alturas da chamada Primeira Intifada ou revolta das pedras, na qual as populações da Palestina sob domínio militar israelita se levantaram pela primeira vez, então de maneira espontânea, contra as forças de ocupação, recorrendo ao uso de fisgas e outros utensílios rudimentares. Em pleno Inverno, os campos de refugiados, habitados pelas multidões de vítimas das limpezas étnicas sionistas de 1948 em diante, eram lamaçais pestilentos; um ano depois, em pleno Verão, verifiquei que os mesmos campos eram infernos de seca e fome, inóspitos e sofrendo de uma angustiante carência de recursos. Campos de refugiados com quase 200 mil pessoas, como o de Jabalia, são atentados contra a dignidade humana que os senhores do mundo se recusam a encarar.

Sobre o estado de espírito das pessoas que foram condenadas a esses submundos apenas por existirem, vale a pena reler o herói israelita Moshe Dayan, num discurso de 1956, quando era chefe do governo: «Porque devemos deplorar o seu ódio evidente por nós?... Perante os olhos dos refugiados de Gaza temos transformado as terras e as aldeias onde eles e os seus pais viveram em propriedade nossa». Palavras com 67 anos…

Provocações e agressões militares permanentes criavam um clima de medo e pressão asfixiante, a convicção de que a vida de cada um estava presa por um fio a cada instante. 

Ao recordar esses dias, essas impressões, é impossível esquecer a mortificação daquela mãe muito jovem que no campo de refugiados conhecido como Beach Camp acabara de enterrar a filha, uma bebé de três meses executada com um tiro na cabeça disparado por um soldado israelita. Um caso apenas – uma marca identificadora de um regime assassino.

Nesses anos, Gaza era ocupada militarmente de uma maneira directa, presencial, submetida a todas as sevícias inerentes à situação, desde as punições e prisões arbitrárias, rusgas a residências, tortura, ao assassínio puro e simples. 

Nas zonas costeiras, onde se podiam usufruir as delícias mediterrânicas, existiam colonatos nos quais escassas centenas de cidadãos israelitas oriundos das mais diferenciadas regiões do globo gozavam de vidas paradisíacas, lado-a-lado com as mais humilhantes e desumanas vastidões de miséria, repressão e tortura. Representando menos de 0,1% da população, os colonos israelitas ocupavam um terço do território. O esplendor do apartheid e da barbárie.

Anos mais tarde, em 2007, na sequência do traiçoeiro «processo de paz» e porque a presença militar no território era arriscada e dispendiosa, o primeiro-ministro Ariel Sharon mandou dissolver os colonatos e envolver toda a faixa de terra por cercas de arame farpado, muros e anéis de tropas. As entradas e saídas passaram a processar-se num único posto de controlo, exclusivamente aberto aos palestinianos que, em casos de carência de mão-de-obra escrava em território israelita, conseguiam obter trabalhos episódicos desde que no final do dia regressassem a casa – através do mesmo posto de controlo e sujeitos a humilhações, por exemplo a de serem revistados em gaiolas depois de obrigados a despir-se.

Gaza transformou-se assim numa gigantesca prisão a céu aberto, um campo de concentração onde penam 2,3 milhões de pessoas numa área de aproximadamente 350 quilómetros quadrados, dimensão equivalente à do pequeno concelho do Montijo, em Portugal. Onde vivem, segundo o censo de 2021, um pouco menos de 60 mil pessoas.

A mão de Israel no Hamas

As eleições palestinianas realizadas no âmbito do «processo de paz» de meados dos anos noventa do século passado deram ao movimento islamita Hamas o direito a governar a Faixa de Gaza em sistema de «autonomia» – de gueto, melhor dizendo –, mas submetido, de facto, à tutela militar israelita.

Começava a falar-se do Hamas quando visitei Gaza em Fevereiro de 1988. E dizia-se que a acção desse grupo fundamentalista islâmico era muito bem vista, acarinhada, quiçá directamente apoiada por Israel. Nos dias de hoje podemos ir além desse «diz-que-disse».

«Sabia que o Hamas foi criado por Israel?» A pergunta surpreendeu Scott Ritter, ex-alto quadro de inteligência da Marinha de guerra norte-americana. Foi formulada por um responsável do Mossad, seu «anfitrião» israelita num trabalho desenvolvido conjuntamente quando Ritter era inspector da ONU, investigando as alegadas armas de destruição massiva do Iraque de Saddam Hussein, no início deste século.

Em 2002, o historiador israelita Zeev Sternhell, da Universidade Hebraica de Jerusalém, escreveu: «Não esqueçamos que, de facto, foi Israel que criou o Hamas. Pensou que era uma maneira inteligente de empurrar os islamitas contra a OLP».

O mote foi retomado na edição de 24 de Janeiro de 2009 do insuspeito Wall Street Journal, através de um artigo intitulado «Como Israel ajudou a gerar o Hamas».

Caso ainda haja dúvidas, é altura de dar a palavra a quem mais sabe do assunto. Na edição do dia 9 deste mês de Outubro, já depois de iniciada a operação do Hamas, o jornal israelita Haaretz, de grande circulação, deu conta de uma reunião em Março de 2019 entre Benjamin Netanyahu e o grupo parlamentar do seu partido, o Likud, no Knesset (parlamento). Disse o actual primeiro-ministro, que agora promete «arrasar Gaza»: «Quem queira impedir o estabelecimento de um Estado Palestiniano tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e a transferência de dinheiro para o Hamas. Isso faz parte da nossa estratégia – isolar os palestinianos de Gaza dos palestinianos da Cisjordânia».

«Impedir o estabelecimento de um Estado Palestiniano…». Na recente reunião da Assembleia Geral da ONU, Netanyahu exibiu um mapa do «Novo Médio Oriente» do qual suprimiu totalmente a Palestina. E tentou fazer humor escarnecendo das resoluções da ONU sobre os direitos do povo palestiniano. Provavelmente saberia alguma coisa que quase todo o resto do mundo desconhece.

Não será possível, portanto, olhar para os acontecimentos em curso sem ter em conta estes dados, estas declarações, que embora já não sejam segredo nas altas esferas – e certamente as da União Europeia – não chegam com facilidade ao cidadão comum porque para o aparelho mediático de intoxicação não passam de fake news, de traiçoeiras teorias da conspiração. 

Qualquer habilidoso fact-checker porá Netanyahu a dizer o contrário do que Netanyahu disse.

O aparecimento do Hamas no universo plural palestiniano tornou-se rapidamente, como desejaram os seus criadores, um instrumento privilegiado para promover a divisão da resistência à ocupação e minar o papel dominante do sector secular, representado pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP). O que não tardou a comprovar-se, em pleno desenvolvimento do primeiro Intifada. Quando a OLP convocava uma greve geral ou uma manifestação, o Hamas não aderia e convocava por si próprio uma greve geral e uma manifestação para o dia seguinte. O objectivo de dividir era evidente e servia, sem dúvida, os interesses de Israel. Enfraquecia a dinâmica do movimento popular, lançava dúvidas e animosidade, introduzia a delicada questão religiosa numa população multiconfessional, começava a socavar a solidez da resistência histórica.

Processo de paz e processo de guerra

A dicotomia, a fissura, melhor dizendo, entre Gaza e a Cisjordânia, manipulada por Israel consoante os seus interesses, inicialmente com maior incidência sobre o Hamas, enraizou-se e ganhou mais eficácia ainda a partir do chamado «processo de paz» desencadeado pelos Acordos de Oslo de 1993.

A direita israelita nunca aceitou este caminho de negociações e tudo fez para o sabotar, com apoio dos Estados Unidos, como «mediadores» e, em última instância, pela inércia ostensiva do chamado «quarteto para a paz» (Rússia, Estados Unidos, ONU e União Europeia), significativamente chefiado pelo aldrabão e criminoso de guerra Anthony Blair.

Antes de assinarem os Acordos de Oslo, os dirigentes da OLP deveriam, afinal, ter lido Ben-Gurion: «Se eu fosse um dirigente árabe nunca assinaria um acordo com Israel; é natural, nós tirámos-lhes o país».

A partir do momento em que Ariel Sharon e Benjamin Netanyahu reassumiram o poder em Israel, a seguir ao assassínio do primeiro-ministro trabalhista Isaac Rabin – do qual não estão inocentes devido à sua cumplicidade com os grupos de choque de colonos e milícias ortodoxas nas manifestações que culminaram com o crime – tudo mudou em relação ao «processo de paz».

As manobras dilatórias das negociações tornaram-se norma e o processo estagnou numa fase de «meia autonomia» controlada pelo aparelho político e de segurança israelita. 

As eleições e o processo político palestiniano delas decorrente definiu o cenário ideal para o programa divisionista de Israel: o governo da Autonomia instalado na Cisjordânia, com sede em Ramallah, nas mãos seculares da Fatah/OLP; e o Hamas islamita governando Gaza, onde obteve uma maioria esmagadora – vencendo, aliás, a consulta no conjunto da Palestina ocupada. Todas as tentativas para estabelecer um governo comum da autonomia palestiniana representando simultaneamente as duas regiões, e também Jerusalém Leste, fracassaram – excepto uma, efémera e que teve trágico fim. O mesmo aconteceu ao processo para realização de novas eleições: os mandatos políticos nas duas regiões caducaram há muito. Os palestinianos não vão às urnas desde 2007.

Para todos os efeitos, a situação tornou-se propícia a uma dança de Israel com dois parceiros desavindos, jogando com as contradições destes e tirando proveito de cada uma delas.

A retirada militar israelita de Gaza e a extinção dos colonatos locais em 2007, medidas tomadas pelo primeiro-ministro Ariel Sharon, foi um gesto importante em direcção do Hamas, «entregando-lhe» a Faixa de Gaza. De certa maneira um estatuto muito mais favorável que o do governo de Ramallah, da responsabilidade dos históricos OLP/Fatah, submetido à complexidade do «meio-acordo» aplicado às zonas A, B, C, que graduam a ocupação militar israelita e o seu tipo de interligação com as entidades autonómicas palestinianas.

Em 2008, porém, surge uma grande crise na faixa «autónoma» de Gaza, através da operação «Chumbo Fundido», a primeira das vagas arrasadoras do território desencadeadas pelo exército israelita e que provocou milhares de mortos e feridos, destruições profundas e o agravamento das carências inerentes a uma região que já então estava cercada e transformada numa gigantesca prisão a céu aberto, com mais de dois milhões de detidos.

Em Ramallah, porém, eram cada vez mais nítidos os sinais de dependência das autoridades palestinianas em relação ao poder israelita. O aparelho sionista manietava o núcleo mais histórico e popular da resistência palestiniana e tornava-o até responsável pela repressão do seu próprio povo perante manifestações e movimentos «não oficiais».

Neste quadro, o ritmo da colonização israelita da Cisjordânia e Jerusalém Leste cresceu vertiginosamente, flagelando e delapidando populações isoladas, reprimidas, sem apoio concreto e eficaz dos seus dirigentes. Os casos de resistência contra demolições de casas, destruição de propriedades, roubos de colheitas e de expulsão de famílias inteiras para outras regiões ou para o estrangeiro eram e continuam a ser sumariamente combatidos e destroçados, todos os dias, pela violência dos colonos com apoio das forças policiais e militares sionistas.

Na única ocasião em que Ramallah e Gaza chegaram a um princípio de acordo sobre um governo comum, em Junho de 2014, Israel encontrou pretextos para uma nova grande operação de bombardeamento contra Gaza, seguida de invasão parcial. Mais de 2500 palestinianos foram assassinados e, no rescaldo da matança, extinguiu-se a hipótese de governo comum.

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.

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