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A desigualdade no livro de Thomas Piketty

Por David Harvey | Reading Marx's Capital with David Harvey “Afterthoughts on Piketty’s Capital”

Redecastorphoto - 5 de Junho, 2014 | Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

https://redecastorphoto.blogspot.com.es/2014/06/david-harvey-sobre-o-capital-de-piketty.html?spref=fb

Thomas Piketty escreveu um livro intitulado Capital que causou furor. Advoga a taxação progressiva e um imposto sobre a riqueza global como único modo para conter a tendência na direção de criar-se uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcado por – como diz ele – desigualdades “aterrorizantes” de riqueza e renda. Também documenta, em detalhes dolorosíssimos e difíceis de retrucar, o modo como a desigualdade social de riqueza e de renda evoluiu ao longo dos dois últimos séculos, com especial atenção ao papel da riqueza.

Tomas Piketty também demole a visão amplamente disseminada segundo a qual o capitalismo de livre mercado distribuiria riqueza e que seria o grande instrumento para defender as liberdades e direitos individuais. O capitalismo de livre-mercado, na ausência de qualquer intervenção de redistribuição pelo Estado, como Piketty mostra, só produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração gerou crises de apoplexia entre os liberais, como se viu no apoplético Wall Street Journal.

O livro tem sido apresentado como substituto do século XXI, para obra de mesmo título de Karl Marx, no século XIX. Piketty, de fato, nega que tenha tido tal intenção, o que me parece bem razoável, posto que o seu livro absolutamente não trata de capital. Absolutamente não nos diz por que aconteceu o crash de 2008 nem por que está demorando tanto para tanta gente livrar-se da dupla carga do desemprego prolongado e das milhões de casas perdidas para bancos credores. Tampouco ajuda a compreender por que o crescimento anda tão miserável nos EUA, ao contrário do que se vê na China, nem por que a Europa está aprisionada numa política de austeridade tanto quanto numa economia de estagnação.

O que Piketty, isso sim, mostra estatisticamente (e muito temos a agradecer a ele e sua equipe pelas estatísticas) é que o capital sempre tendeu, ao longo de toda sua história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Não que seja novidade para muitos de nós. Além do mais, é essa, precisamente, a conclusão teórica a que chega Marx no Volume Um de sua versão de O Capital. Piketty sequer percebe a coincidência, o que não chega a surpreender, porque ele já disse inúmeras vezes, em resposta a acusações da imprensa-empresa de direita, de que ele seria um marxista disfarçado, que jamais leu O Capital, de Marx.

Piketty reúne muitos dados em apoio a seus argumentos. O que diz das diferenças entre renda e riqueza é útil e persuasório. E defende atentamente os impostos sobre a herança, a taxação progressiva e um imposto sobre a riqueza global na medida do possível (embora, quase com certeza, não seja politicamente viável), como antídotos contra concentração ainda maior de riqueza e poder.

Mas por que ocorre essa tendência na direção de desigualdade sempre crescente ao longo do tempo? Considerados seus dados (temperados com algumas alusões literárias a Jane Austen e Balzac), ele deriva uma lei matemática para explicar o que acontece: a acumulação sempre crescente de riqueza pelos tais famosos 1% (termo popularizado graças ao curso do movimento “Occupy”) deve-se ao simples fato de que a taxa de retorno sobre o capital (r) é sempre maior que a taxa de crescimento da renda (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital.

Mas uma regularidade estatística dessa ordem dificilmente seria explicação adequada, muito menos viraria lei. Assim sendo, que forças produzem e sustentam tal contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e... não se fala mais nisso. Marx obviamente teria atribuído a existência de tal lei ao desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E é explicação que ainda se mantém em pé. O firme declínio da fatia do trabalho na renda nacional desde os anos 1970s derivou do declínio do poder político e econômico do trabalho, com o capital mobilizando políticas de tecnologias, de desemprego, de deslocalização e políticas anti-trabalho (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para esmagar toda a oposição.

Como Alan Budd, conselheiro econômico de Margaret Thatcher confessou em momento de descuido, as políticas anti-inflação dos anos 1980s mostraram-se

(...) excelente modo de aumentar o desemprego; e aumentar o desemprego revelou-se modo altamente desejável para reduzir a força das classes trabalhadoras (...) O que foi ali construído em termos marxistas foi uma crise do capitalismo que recriou um exército de reserva de mão de obra, e permitiu que os capitalistas obtivessem altos lucros desde então.

A disparidade na remuneração entre trabalhadores médios e os altos executivos-gerentes permaneceu em torno de 30:1 em 1970. Hoje já está bem acima de 300:1, e no caso da empresa MacDonalds é superior a 1.200:1.

Mas no Volume 2 de O Capital de Marx (que já se sabe que Piketty também não leu, dado que descarta o que ali leria), Marx destacou que a tendência do capital para mandar abaixo os salários chegaria, num certo ponto, a restringir a capacidade de o mercado absorver o que o capital produzisse. Henry Ford identificou esse dilema há muito tempo, quando mandou pagar US$ 5 por dia de oito horas de trabalho aos seus operários, para, disse ele, estimular uma demanda de consumo. Muitos disseram que a falta de demanda efetiva levou à Grande Depressão dos anos 1930s. Foi o que inspirou as políticas expansionistas Keynesianas de depois da IIª Guerra Mundial e resultou em algumas reduções em desigualdades de rendas (embora nem tanto nas da riqueza) em pleno forte crescimento gerado por demanda. Mas essa solução repousava sobre o relativo empoderamento do trabalho e a construção do “estado social” (termo de Piketty) que os impostos progressivos criaram.

Tudo considerado – Piketty escreve – ao longo do período 1932-1980, quase meio século, a mais alta taxa de imposto federal nos EUA foi em média 81%.

E isso de modo algum reduziu o crescimento (mais um dado dos que Piketty reuniu, que desmente crenças da direita).

Ao final dos anos 1960s, já era claro para muitos capitalistas que tinham de fazer alguma coisa contra o excessivo poder do trabalho. Daí a destituição de Keynes, arrancado do panteão dos economistas respeitáveis; a mudança para o pensamento de Milton Friedman que pensa pelo lado da oferta; a cruzada para estabilizar, quando não para reduzir impostos, para desconstruir o estado social e para disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, os impostos caíram e os ganhos de capital – fonte importante de renda para os ultra ricos – foram taxados em patamar muito inferior nos EUA, o que aumentou muito o fluxo da riqueza na direção do 1% de cima. Mas o impacto sobre o crescimento, como Piketty mostra, foi desprezível. O tal “efeito contaminação” dos benefícios dos ricos para o resto (outra das crenças preferidas da direita) não funciona. Nada disso foi ditado por qualquer lei matemática: tudo aí foi sempre questão política.

Mas então o timão fez volta completa e a pergunta passou a ser: que fim levou a demanda? Piketty ignora sistematicamente essa pergunta.

Os anos 1990s fugiram de ter de responder, com vasta expansão do crédito, incluindo a extensão do financiamento de hipotecas na direção dos mercados de papeis podres. Mas a bolha resultante estava condenada a explodir, como explodiu, em 2007-8, levando abaixo os Lehman Brothers e todo o sistema de crédito. Mas os lucros e a maior concentração de riqueza privada recuperaram-se muito rapidamente depois de 2009, enquanto tudo e todos continuaram a ir mal e cada vez mais mal. As taxas de lucro dos negócios são hoje tão altas como sempre foram nos EUA. Os negócios estão sentados sobre montes de dinheiro e recusam-se a gastá-lo porque o mercado não mostra condições robustas.

A formulação, por Piketty, da lei matemática disfarça, mais do que revela, a política de classes envolvida. Como Warren Buffett observou,

(...) claro que há guerra de classe, e é a minha classe, os ricos, que fazem a guerra; e estamos ganhando.

Uma medida chave da vitória deles é a crescente disparidade de riqueza e renda do 1% do topo, em relação a todos as demais pessoas.

Mas há, contudo, uma dificuldade central com o argumento de Piketty. Ele repousa – no sentido de “ele depende” – numa definição errada de capital. Capital é um processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer mais dinheiro quase sempre, mas não exclusivamente, mediante a exploração da força de trabalho.

Piketty define capital como o estoque de todos os bens de propriedade de indivíduos privados, corporações e governos e que podem ser comercializados no mercado não importa se aqueles ativos estão sendo usados ou não. Aí se inclui terra, imóveis e direitos de propriedade intelectual tanto quanto minha coleção de joias e peças de arte. Como determinar o valor de todas essas coisas é um difícil problema técnico para o qual não há solução unanimemente aceita.

Para calcular uma taxa significativa de retorno, “r”, temos de ter algum modo de atribuir valor ao capital inicial. Infelizmente, não há modo de atribuir-lhe valor independentemente do valor dos bens e serviços que ele é usado para produzir ou por quanto pode ser vendido no mercado. Todo o pensamento econômico neoclássico (que é a base do pensamento de Piketty) é fundado sobre uma tautologia.

A taxa de retorno sobre o capital depende crucialmente da taxa de crescimento, porque para atribuir valor ao capital considera-se o que ele produz, não o que foi usado para produzi-lo. Seu valor é pesadamente influenciado por condições especulativas e pode ser seriamente distorcido pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan diagnosticou como típica dos mercados de ações e de moradias. Se se subtrai moradia e propriedades imóveis – para nem falar do valor de coleções de arte dos donos de hedge funds – da definição de capital (e o argumento para incluí-las é bem fraco), nesse caso a explicação de Piketty para as crescentes disparidades em riqueza e renda cairiam de cara no chão, embora as descrições que oferece do estado das desigualdades presentes e passadas ainda se mantivessem em pé.

Dinheiro, terra, imóveis e fábricas e equipamento que não estejam sendo usados produtivamente não são capital. Se a taxa de retorno sobre o capital que está sendo usado é alta, então assim é porque uma parte do capital é tirada de circulação e, pode-se dizer, entra em greve. Restringir a oferta de capital a novos investimentos (fenômeno que testemunhamos agora) garante alta taxa de retorno sobre aquele capital que está em circulação.

A criação de tal carência artificial não é só o que as empresas de petróleo fazem para garantir suas altas taxas de retorno: é o que todo e qualquer capital faz se tiver chance. Isso é o que está na base da tendência de a taxa de retorno sobre o capital (não importa como seja definido e medido) sempre exceder a taxa de crescimento da renda. É assim que o capital garante a própria reprodução, não importa o quão desconfortáveis sejam as consequências, para o resto de nós. E é disso que a classe capitalista vive.

Há muito de trabalho valiosíssimo nas tabelas de dados que Piketty reuniu. Mas sua explicação de por que as desigualdades e as tendências oligárquicas surgem, essa, é gravemente viciada. Suas propostas, seus remédios para as desigualdades, são ingênuos, se não utópicos. E com certeza absoluta Piketty não produziu modelo operativo para o capital no século XXI. Para essa finalidade, ainda precisamos de Marx e permanecemos à espera de equivalente contemporâneo.

David Harvey (Gillingham, Kent, 7 de dezembro de 1935) é um geógrafo britânico, formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana. Seu primeiro livro, Explanation in Geography, publicado em 1969, versa sobre a epistemologia da geografia, ainda no paradigma da chamada geografia quantitativa. Posteriormente, Harvey muda o foco de sua atenção para a problemática urbana, a partir de uma perspectiva materialista-dialética. Publica então Social Justice and the City no início da década de 1970, onde confronta o paradigma liberal e o paradigma marxista na análise dos problemas urbanos.

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