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A doutrina Blair: sangue e dinheiro

Por John Pilger | johnpilger.com

Resistir.info - 2 de Novembro, 2006

https://www.resistir.info/pilger/pilger_02nov06.html

Em 17 de Outubro o presidente Bush assinou um diploma a legalizar a tortura e o rapto e efectivamente revogou a Carta de Direitos (Bill of Rights) e o habeas corpus. Agora a CIA pode legalmente sequestrar pessoas e transportá-las para prisões secretas em países onde elas provavelmente serão torturadas. A prova extraída sob tortura agora é admissível em 'comissões militares'; pessoas podem ser sentenciadas à morte com base no testemunho de pessoas espancadas. Agora você é culpado antes mesmo de a culpa ser confirmada. E você é um "terrorista" se cometer o que George Orwell, em 1984, chamou "crimes de pensamento". Bush ressuscitou as prerrogativas dos monarcas Tudor e Stuart: o poder da ilegalidade irrestrita. "A América pode estar orgulhosa", disse o senador Lindsey Graham, um dos promotores desta lei, que se levantou com outros congressistas, a aplaudir quando Bush com a sua assinatura anulou a constituição e a essência da democracia americana.

O significado histórico disto mal foi reconhecido na Grã-Bretanha, a fonte destes antigos direitos agora abandonados, sem dúvida porque a mesma lei dos bárbaros está a ter acolhida aqui. O grande crime do Iraque é um tsunami moral que deixou os vassalos do New Labour a debaterem-se e a berrar suas inversões desesperadas da verdade enquanto aguardam o resgate da parte de Washington. "A um nível ideológico mais profundo", escreveu o historiador americano Alfred McCoy, "[o que está a acontecer] é uma competição do poder contra a justiça ... Encarado historicamente, é um combate sobre princípios fundamentais que remontam a aproximadamente 400 anos". Não há muito tempo, entrevistei Dianna Ortiz, uma freira americana torturada por um esquadrão da morte guatemalteco cujo líder ela identificou como um compatriota americano. Isto foi no tempo de Ronald Reagan, que foi tão assassino na América Central quanto Bush no Médio Oriente. "Você não pode clamar seu uma democracia se pratica ou tolera a tortura", afirmou ela. "É o teste definitivo".

Os Estados Unidos prometiam uma democracia quando em 1964 o Civil Rights Act tornou-se lei e quando, no ano seguinte, o Voting Rights Act acabou finalmente com a escravidão. Durante a década seguinte, o movimento dos direitos civis juntou-se ao grande movimento popular para terminar a carnificina no Vietnam, e o Congresso legislou no sentido de restringir o poder paralelo secreto da CIA. Foi um interlúdio passageiro. Sob Reagan, perversamente, foi restaurada a mitologia da democracia americana e do "orgulho", quando o seu executivo corrupto ateou uma guerra ilegal na empobrecida América Central, provocando centenas de milhares de mortes, classificada pelas Nações Unidas como genocídio. Os Estados Unidos tornaram-se o único país desde sempre a ter sido condenado pelo Tribunal Internacional de Justiça por terrorismo (contra a Nicarágua). "Deixe de asneiras", disse um antigo responsável sénior da CIA. "O que importa são os interesses da nossa segurança nacional, okay?"

"Segurança nacional" é o eufemismo para a palavra proibida, imperialismo, cujo poder despótico acelerou-se sob George W. Bush. A assinatura de decretos presidenciais secretos que podem subverter a escassa oposição de um Congresso normalmente indiferente são agora prática normal, juntamente com um conjunto de prisões secretas, descritas aprovadoramente por Bush como "o programa da CIA". Os Estados Unidos são hoje uma extensão do totalitarismo que há muito procura impor no exterior. Esta verdade intragável não é declarada, naturalmente. Apesar das suas actuais "dificuldades" no Iraque, a propaganda corporativa continua ao lado de Bush. A procura por uma "saída estratégica" pode produzir manchetes "embaraçosas", mas o saqueio deliberado e sistemático de milhares de milhões de dólares dos recursos do Iraque tem sido tranquilamente cumprido, com uns US$ 20 mil milhões "a faltarem". O mesmo silêncio aplica-se à guerra interna de classe e de raça, quando a gang de Bush chuta para longe a escada que outrora conduzia à classe média americana. Em Janeiro último, 25 mil pessoas candidatavam-se a 325 empregos num Wal-Mart em Chicago.

Os direitos constitucionais são mitos americanos formidáveis. A imprensa americana é muitas vezes apresentada como a que tem o discurso constitucionalmente mais livre da terra; e assim é, teoricamente. Mas durante todo período da repressão interna a imprensa e o jornalismo radiotelevisivo desempenharam um papel aquiescente, apoiando guerras imperiais, afundando nas mentiras do "caçador de vermelhos" Joe McCarthy, promovendo falsos debates acerca de falsas ameaças (Cuba, Nicarágua, a corrida às armas nucleares) e o superculto do "anti-comunismo". As mentiras de Bush sobre o Iraque e o Afeganistão foram simplesmente ampliadas e promovidas. Seymour Hersh e um punhado de outros destacam-se como excepções honrosas.

Em 1991, no fim da carnificina unilateral conhecida como Guerra do Golfo, o celebrado apresentador de TV americano Dan Rather disse à sua audiência nacional que "Há uma coisa com a qual todos nós podemos concordar. É o heroísmo dos 148 americanos que deram as suas vidas para que a liberdade pudesse viver". "De facto, um quarto deles haviam sido mortos por outros americanos. A maior parte das baixas britânicas verificaram-se pelo mesmo "fogo amigo". Além disso, glorificações oficiais a descreverem como os americanos haviam morrido heroicamente em combate corpo a corpo eram falsas. As centenas de milhares de iraquianos que morreram durante e em consequência daquela "guerra" permanecem não mencionáveis — tal como as centenas de milhares que morreram em resultado do embargo ao longo de uma década; tal como as 655 mil "mortes em excesso" de iraquianos desde a invasão de 2003.

A guerra à democracia tem sido exportada com êxito. Na Grã-Bretanha e em outros países ocidentais, tais como a Austrália, o jornalismo e o mundo académico tem sido sistematicamente apropriado como o administrador de classe da nova ordem, e as ideias democráticas foram esvaziadas e reformuladas, para além de todo reconhecimento. Ao contrário da década de 1930, há um silêncio dos escritores, com Harold Pinter quase como a única voz a levantar-se na Grã-Bretanha. Os promotores de uma forma de capitalismo conhecida como neoliberalismo, o superculto responsável pelas maiores desigualdades da história, são descritos como "reformadores" e "revolucionários". A nobre palavra "liberdade" refere-se agora ao direito divino deste extremismo "prevalecer", o jargão para domínio e controle. Este vocabulário, que contamina os noticiários e os pronunciamentos do estado e da sua burocracia, é do mesmo dicionário do arbeit macht frei – “o trabalho torna-o livre” – as palavras inscritas sobre os portões em Auschwitz.

Para os britânicos sob Blair, o resultado desta falsa democracia tem sido catastrófico. Mesmo se a convergência dos partidos Trabalhista e Conservador fosse historicamente inevitável, Tony Blair foi a mais extrema figura política britânica de que se tem memória, aquele que regrediu a Grã-Bretanha à época da violência a tempo inteiro, ao papel imperial, convertendo a noção ficcional do "choque de civilizações" numa possibilidade real. Blair destruiu o poder do parlamento e politizou aquelas secções do serviço público e dos serviços de segurança e inteligência que se consideravam imparciais. Ele é presidente da Grã-Bretanha, faltando apenas os berros do "Hail Chefe". Instalado no poder por pouco mais de um quinto da população eleitora, ele é o mais não democraticamente eleito líder da história britânica. Inquéritos após inquéritos contam-nos também que é o mais insultado.

Sob o presidente Blair, o parlamento tornou-se como o Congresso sob Bush: uma inutilidade, uma loja de covardes que em dois anos e meio só duas vezes debateu o Iraque. Com uma importante excepção, medidas regressivas umas após as outras têm sido aprovadas ali: desde o Criminal Justice Act 2003 até o Prevention of Terrorism Act 2005, com suas sentenças obrigatórias e prisões domiciliares ("ordens de controle"). Uma "lei para abolir o parlamento", como a aparentemente inócua Legislative and Regulatory Reform Bill 2006 já pode ser conhecida, com a remoção da legislação do governo removida do escrutínio parlamentar, dando aos ministros poderes arbitrários e à Downing Street o poder absoluto de decretar. Não houve debate público. Como é irónico que a lei tenha sido travada na Casa dos Lordes a qual, juntamente com o judiciário, constitui hoje a leal oposição.

Em 2003 Blair trabalhou a prerrogativa real secreta – Orders in Council – a fim de ordenar um ataque não provocado e ilegal a um país indefeso, o Iraque. No ano seguinte ele utilizou os mesmos poderes arcaicos para impedir os ilhéus de Chagos de retornarem à sua pátria, da qual foram expulsos secretamente de modo a que os americanos pudesse construir uma enorme base militar ali. Em Maio último, o Supremo Tribunal descreveu o tratamento destes cidadãos britânicos como "repugnante, ilegal e irracional".

Em 16 de Outubro de 2005, Bush afirmou que a al-Qaeda procurava "estabelecer um império radical islâmico que abrangesse desde a Espanha até à Indonésia". Este exagero calculado, profundamente cínico — que recorda a advertência de Washington de "nuvens em cogumelo" a seguir ao 11 de Setembro de 2001 — foi repetido por Blair logo depois de abraçar Rupert Murdoch, a fonte provável do seu futuro enriquecimento.

Esta é a mensagem dos instigadores liberais da guerra que pretendem estar mais na moda do que ele [1] e salvar as suas gastas reputações com a utilização de expressões especiosas tais como "islamo-fascismo". Eles suprimiram a verdade de que a al-Qaeda é minúscula em comparação como o terrorismo de estado que mata e mutila em escala industrial e cujo custo distorce todas as nossas vidas. O terrorismo de estado britânico no Iraque tem um custo de mais de 7 mil milhões de libras [€10,46 mil milhões]. O custo real do Trident [2] diz-se ser de 76 mil milhões de libras [€113,6 mil milhões].

As condições básicas do que havia de melhor na vida britânica e que sobreviveram a Margaret Thatcher não têm lugar nesta contabilidade. Ao Serviço Nacional de Saúde e àquilo que outrora foi o melhor serviço postal do mundo são negados subsídios não corrompidos por um "mercado livre" manipulado. Em ambos os casos isto é o florescimento do parasitismo dos Blairs, assim como a venda de 72 caças Eurofighters ao regime medieval na Arábia Saudita, completa com "comissões", e a recusa do governo em proibir as altamente lucrativas bombas de estilhaçamento, cujas vítimas são sobretudo crianças – sangue e dinheiro são a essência do blairismo e do seu liberalismo mutante. No seu novo manual do Labour, de 1996, The Blair Revolution: can new Labour deliver?, Peter Mandelson e Roger Liddle realçam as "forças" da Grã-Bretanha sob um regime Blair. Estas eram as corporações multinacionais e o "aeroespaço" (a indústria armamentista) e a "proeminência da City de Londres". Sangue e dinheiro.

Naturalmente, como em qualquer era colonial, o sangue derramado é invisível. As vítimas distantes do mesmo são untermenschen — o que equivale a dizer que são menos do que humanos e não têm presença nas nossas vidas. Em 11 de Junho, Fiona Bruce, a locutora da BBC, anunciou que prisioneiros na Baía de Guantanamo estavam a cometer suicídio. Ela perguntou: "Quão prejudicial será isto para a administração Bush?" Na recente conferência do partido Trabalhista, uma ocasião presidencial, um destacado jornalista da televisão, Jon Snow, escreveu que Blair demonstrou "domínio retórico e fina subtileza". Na verdade, afirmou, ele era "um líder para o seu tempo, num momento em que a Grã-Bretanha precisava exactamente de tal liderança".

Aqueles que têm desmascarado as fachadas das gangs de Blair e Bush podem não ficar desanimados. A manifestação inspirada de 15 de Fevereiro de 2003 pode não ter impedido uma invasão, mas este mesmo poder universal da moralidade pública pôs, acredito, num impasse ataques ao Irão e à Coreia do Norte, provavelmente com armas nucleares "tácticas". Esta força moral está indubitavelmente a agitar-se outra vez por todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, e é temida por aqueles que tramariam uma "guerra sem fim". Contudo, se aprendi alguma coisa ao testemunhar numerosos estratagemas sangrentos, nunca é de subestimar o vigor do império desenfreado e predador e a desonestidade das suas "intervenções humanitárias". Milhões de nós, que somos a maioria, precisam levantar as vozes outra vez, mais urgentemente do que nunca.

Notas:

1- "Tonier-than-thou". Jogo de palavras intraduzível. A palavra "tonier" ("mais na moda") assemelha-se ao nome do primeiro-ministro britânico (Tony).
2- Trident: míssil balístico com alcance superior a 7000 km

https://www.resistir.info/pilger/pilger_02nov06.html


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