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Inimigos do povo

Saibamos tomar o lado do capitalismo bom, austeritário, tendencialmente esclavagista e globalista contra o capitalismo mau, austeritário, tendencialmente esclavagista, mas nacionalista.

Por José Goulão

AbrilAbril - 30 de Agosto, 2018

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Donald Trump - Créditos: Michael Reynolds / EPA

« – Tu és inimigo do povo!
– Não, inimigo do povo és tu!»

É a este nível de ideias profundas que se trava publicamente o debate sobre quem mente mais e melhor através da comunicação mainstream, incluindo as famosas redes sociais, agora que Donald Trump resolveu partir a loiça e convulsionar a harmonia – podre, mas harmonia – em que tudo decorria.

Tratando-se de um ajuste de contas entre o presidente norte-americano e uma parte de relevo – e bipartidária – do establishment que se lhe opõe, discordando sobre as estratégias para combater a crise do capitalismo, poderia supor-se, ainda assim, que a questiúncula se mantivesse em círculos domésticos.

Mas não, trata-se dos Estados Unidos da América e, por inerência da globalização de teor anglo-saxónico, todos estamos obrigados a nela participar. Talvez ainda mais importante: é o capitalismo, aquilo sem o qual não podemos viver, que está numa encruzilhada – nacionalista ou globalista? Produtivo ou especulativo? Trauliteiro ou «civilizado»? Amigo ou inimigo do povo?

Não terçarmos armas neste campo de batalha obrigatoriamente maniqueísta é uma traição do mesmo calibre daquela que mancha agora a dignidade do cargo de presidente dos Estados Unidos da América, posto que nos remete tradicionalmente para tantos e tão virginais exemplos comportamentais.

Por maioria de razão, a parte do establishment ofendida pelo truculento e narcísico presidente é a que mexe as rédeas da comunicação global dominante. Logo, todos somos impelidos a tomar partido, a bater-nos por nossa dama ultrajada.

Saibamos, então, devolver o insulto: se o trumpismo nos acusa de sermos inimigos do povo, então apedrejemo-lo com as mesmas palavras e do mesmo lado da barricada que os bosses das 14 ou 15 corporações mediáticas e globais que envenenam as nossas vidas com a propaganda disfarçada de informação.

Saibamos tomar o lado do capitalismo bom, austeritário, tendencialmente esclavagista e globalista contra o capitalismo mau, austeritário, tendencialmente esclavagista, mas nacionalista.

É verdade que, travado a este nível de acusações, o duelo não passa de uma briga de escola, de uma zanga de comadres mutuamente ofendidas. Porém, sinal dos tempos, o comadrio é global e estendeu até cá, até ao nosso mainstreamzinho, o recrutamento de guerreiros do lado bom, corporativamente irmanados com os ofendidos colegas da CBS, da CNN, da NBC, dos Washington Times ou Post e New York Times ou Post contra os malandros da Fox e da constelação dos pregadores evangélicos.

Os indirectamente ofendidos nesta margem Atlântica não se deixaram ficar e também eles distribuíram os seus sopapos verbais contra os fabricantes de fakenews, eles que nunca divulgaram nem voltarão a divulgar qualquer notícia falsa.

Pobre povo!

Trazer o problema da censura e manipulação da comunicação social dominante e global para o terreiro das fakenews e abordá-lo com as armas do insulto é uma maneira de ilibar e isentar de responsabilidades o tenebroso sistema de controlo de opiniões e consciências em que se transformou a informação que atinge a esmagadora maioria dos habitantes do planeta.

Dezena e meia de grandes impérios mediáticos controlam os canais de comunicação global, desde os convencionais aos digitais e internet, levando-nos a viver numa espécie de realidade virtual em termos de informação.

Através da escolha dos conteúdos que inserem nos canais e dos factos que omitem, das opiniões que veiculam ou silenciam é construída a realidade desejada pelos interesses que tutelam esses gigantes sem pátrias que pretendem transformar os seres humanos em pessoas amorfas, condenadas a proporcionar-lhes lucros fabulosos e sem fim.

Regra geral, existe convergência quase absoluta de interesses entre essas entidades tentaculares e o establishment de raiz norte-americana e alcance global que controla ideológica e economicamente grande parte do planeta.

Ao abalar a estrutura do establishment ou «Estado profundo» que reina enquanto as administrações passam, Donald Trump mexeu com essa ordem enquistada e bipartidária; e a guerra civil intercapitalista assim gerada transferiu-se, naturalmente, para a esfera mediática, onde passou a valer tudo porque os interesses envolvidos têm envergaduras inimagináveis.

Fakenews não são um fenómeno novo, a não ser como termo e conceito para usar como arma de arremesso na guerra da propaganda. Há muito que vivemos num ambiente de fakenews produzidas onde não sabemos, transportadas por uma teia de canais inextricável e consumidas, regra geral, como coisa certa e acima de qualquer suspeita. A realidade virtual que domina o nosso quotidiano informativo é uma gigantesca fakenews.

Em termos prosaicos, Trump mente e mentem também os seus adversários de momento, que podem ser os amigos de amanhã e vice-versa. É um debate de mentiras porque se trava num terreno de minado com falsidades de consumo comum, por ora cindido em sectores transitoriamente desavindos mas que nunca deixarão de salvaguardar o que os une: o capitalismo. E não há manipulações decentes e manipulações indecentes, mentiras boas ou más.

Quando há jornalistas que, num corporativismo pavloviano, entram nestas guerras que não lhes dizem respeito, das duas uma: ou são ingénuos ou há muito que perderam o respeito pela profissão.

O confronto trava-se no seio das estruturas dominantes, para quem os jornalistas valem tanto como os entes amorfos e estupidificados por correntes imparáveis de fakenews.

É importante lembrar, a propósito, que o uso do termo fakenews começou por ser aplicado contra jornalistas e outros profissionais de comunicação que mantiveram a dignidade profissional e têm a coragem de trazer ao conhecimento comum os aspectos da realidade que raramente chegam aos meios convencionais e dominantes de informação.

Antes de o termo ser banalizado e ter perdido referências originais, os profissionais acusados de divulgar fakenews eram os que, ao invés, tornavam pública a realidade escondida, as versões não-oficiais dos acontecimentos que moldam os nossos quotidianos.

A internet, incluindo as redes sociais, foi e ainda é o refúgio possível e providencial desses profissionais dignos, quantos deles ostracizados pelos estruturas dominantes da comunicação global tendendo para a propaganda pura e simples. Por isso, estes territórios alternativos estão agora debaixo de fogo censório.

Multiplicam-se as iniciativas com o objectivo de silenciar as fontes de comunicação que veiculam versões não-oficiais de acontecimentos, opiniões não-alinhadas pelos poderes globais, no fundo divulgando conteúdos que aproximam os cidadãos das realidades autênticas que os envolvem.

O objectivo das novas censuras que estão em preparação e mesmo já em aplicação na internet não é o de combater as fakenews, a informação falsa, mas sim calar os factos e as opiniões que não são toleráveis pelos interesses dominantes.

Neste quadro, é importante que se saiba que o Facebook, por exemplo, montou incentivos de apoio à delacção, isto é, passa a recompensar internautas que detectem supostas fakenews, no limite que contribuam para silenciar o tipo de informação com a qual não concordam ou não lhes convenha.

Também é importante saber que os mentores destas práticas tanto estão do lado de Donald Trump como dos seus adversários democratas e republicanos, que aliás pontificam na tutela das 14 ou 15 corporações gigantescas que fabricam a comunicação global.

Quem são os inimigos do povo? Todos eles.

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