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O mutável “jogo final” de Netanyahu - não um estratagema, mas a reversão à estratégia sionista anterior

Este importante artigo coloca uma questão central: «O cerne do problema mantém-se inalterado: a contradição inerente a um Estado sionista excepcionalista que incorpora um grupo não-judeu substancial sem direitos - quer seja mantido no gueto vedado de Gaza, quer numa “matriz de fortaleza dos colonos” da Cisjordânia - tornou-se insustentável.» A questão palestiniana apenas terá solução com a derrota do sionismo. A “ausência de estratégia de Netanyahu” de que alguns falam é na verdade a tentativa de manter inalterada uma situação insustentável.

por Alaistair Crooke (PT) | Strategic Culture Foundation

ODiario.info - 24 de janeiro, 2024

https://www.odiario.info/o-mutavel-jogo-final-de-netanyahu/

O falecido Ariel Sharon, líder militar e político israelita de longa data, confidenciou uma vez ao seu amigo íntimo Uri Dan que “os árabes nunca aceitaram genuinamente a presença de Israel… e, por isso, uma solução de dois Estados não era possível - nem sequer desejável”.

Na mente destes dois - assim como na da maioria dos israelitas de hoje - está o “nó górdio” que se encontra no coração do sionismo: como manter direitos diferenciados sobre um terreno físico que inclui uma grande população palestiniana.

Os líderes israelitas acreditavam que, com a abordagem não convencional de “ambiguidade espacial” de Sharon, Israel estava perto de encontrar uma solução para o enigma de gerir direitos diferenciados num Estado de maioria sionista, que inclui minorias substanciais. Muitos israelitas acreditavam (até há pouco tempo) que os palestinianos estavam a ser contidos com sucesso num espaço político e físico estriado - e que estavam mesmo a ser “desaparecidos” de forma significativa -, mas o Hamas, a 7 de Outubro, deitou por terra todo esse elaborado paradigma.

Este acontecimento desencadeou um medo generalizado e existencial de que o projecto sionista pudesse implodir, caso os seus fundamentos excepcionalistas sionistas fossem rejeitados por uma ampla resistência disposta a levar o assunto à guerra.

O recente artigo do jornalista norte-americano Steve Inskeep - Israel’s Lack of Strategy is the Strategy - põe em evidência o aparente paradoxo: enquanto Netanyahu é muito claro sobre o que não quer, mantém-se ao mesmo tempo obstinadamente opaco sobre o que quer como futuro para palestinianos que vivem num terreno partilhado.

Para aqueles que pensam que a paz no Médio Oriente pode (ou deve) ser o objectivo de Netanyahu, esta opacidade aparece como “uma falha” grave na resolução da crise de Gaza. No entanto, se Netanyahu (apoiado pelo seu gabinete e por uma maioria de israelitas) não oferece nenhuma estratégia para a paz com os palestinianos, então talvez essa omissão não seja “uma falha”, mas sim a sua caraterística.
Ambiguidade Permanente Palestiniana era - e tem sido - a principal resposta dos sionistas ao modo de contornar o paradoxo inerente ao sionismo. Trinta anos mais tarde, continua a estar presente em todas as declarações recentes de Netanyahu (e dos líderes israelitas de todo o espectro político).

Mesmo em 2008, a ministra dos Negócios Estrangeiros (e advogada), Tzipi Livni, explicava porque é que “a única resposta de Israel (à questão de como manter o sionismo) era manter indefinidas as fronteiras do Estado - ao mesmo tempo que se apoderava dos escassos recursos hídricos e terrestres - deixando os palestinianos num estado de incerteza permanente, dependentes da boa vontade israelita“.

E notei num outro artigo:
“Livni estava a dizer que queria que Israel fosse um Estado sionista - baseado na Lei do Retorno e aberto a qualquer judeu. No entanto, garantir esse Estado num país com um território muito limitado significa que a terra e a água devem ser mantidas sob controlo judaico, com direitos diferenciados para judeus e não-judeus - direitos que afectam tudo, desde a habitação e o acesso à terra, aos empregos, subsídios, casamentos e migração”.

É, portanto, inerente à solução de dois Estados não ter resolvido o problema da manutenção do sionismo, antes o ter agravado. A inevitável exigência de igualdade total de direitos para os palestinianos traria o fim dos “direitos especiais” dos judeus e do próprio sionismo, argumentava Livni - uma ameaça com a qual a maioria dos sionistas concorda.

A resposta de Sharon a este paradoxo final era, no entanto, diferente:

Sharon tinha um plano alternativo para gerir um grande “grupo externo” não judeu, fisicamente presente num Estado sionista de direitos diferenciados. A alternativa de Sharon consistia em frustrar uma solução de dois Estados dentro de fronteiras fixas.

Isto sugeria um pensamento muito diferente, em desacordo com o que há muito se presume no consenso internacional: que uma solução de dois Estados acabaria eventualmente por surgir - aconteça o que acontecer - porque era do interesse demográfico de Israel que assim fosse.

As raízes da “alternativa” de Sharon residem no seu pensamento militar radicalmente pouco ortodoxo sobre a forma de defender o Sinai, então ocupado, do exército egípcio durante a guerra com o Egipto em 1973.

O resultado da guerra israelo-árabe de 1973 justificou plenamente a doutrina de Sharon de uma defesa em rede baseada numa matriz de pontos fortes elevados espalhados por toda a profundidade do Sinai - uma estrutura que actuava como uma “armadilha” espacial alargada, proporcionando aos israelitas um elevado nível de mobilidade, ao mesmo tempo que paralisava o inimigo apanhado na sua matriz de pontos fortes interligados.
(Se o leitor reparar na semelhança da abordagem com os locii estratégicos israelitas dos “pontos fortes” dos colonatos espalhados actualmente pela Cisjordânia, não se trata de coincidência!)

Sharon encarava a profundidade da Cisjordânia na sua totalidade como uma “fronteira” extensa, permeável e temporária. Esta abordagem poderia assim ignorar qualquer linha de lápis de ponta fina, desenhada para denotar uma qualquer fronteira política. Este quadro destinava-se a deixar os palestinianos num estado de incerteza permanente, encurralados numa matriz de colonatos interligados e sujeitos à intervenção militar israelita, ao critério exclusivo de Israel.

Em 1982, Sharon elaborou o seu plano “H”, uma matriz de colonatos de pontos fortes para a Cisjordânia que reflectiria a estratégia do Sinai. Esta estratégia defensiva, no entanto, também teve o efeito de dar um novo objectivo e legitimidade ao “sionismo dos colonos”.
<+>O sucesso desta estratégia levou a que deixasse de ser uma estrutura defensiva essencialmente militar (para paralisar os palestinianos no interior de uma matriz de pontos fortes das FDI) e se tornasse subsequentemente a base para uma gestão mais ampla dos palestinianos. Com o passar dos anos, tornou-se mais repressiva, mais iníqua e ressentida. E, em última análise, semeou a solução do apartheid de dois Estados.

Quando Ariel Sharon “arrastou” os limites da linha fronteiriça de Israel e os “largou” de ambos os lados da Cisjordânia, estava efectivamente a dizer que os colonos da Cisjordânia são a linha fronteiriça espacialmente alargada do território pré-1967, tal como ele tinha alargado a fronteira de Israel através das matrizes de pontos fortes no Sinai.

Era precisamente este o objectivo da sua visão: Não importa se Israel é a terra pré-1967 ou pós-1967 - todas as fronteiras eram fluidas e mutáveis, na sua opinião. A “fronteira” alargada, elástica, permeável e armadilhada em matriz de Sharon iniciou assim o processo - na esfera militar - de esbatimento das distinções entre um interior e um exterior políticos. Isto, juntamente com o conceito de Sharon de espaço “desrespeitado”, tornou-se a doutrina militar israelita estabelecida.
“Queremos confrontar o espaço estriado da prática militar tradicional e antiquada com a adaptabilidade suave que permita o movimento através do espaço e que atravesse quaisquer fronteiras e barreiras sem impedimentos. Em vez de contermos e organizarmos as nossas forças de acordo com as fronteiras existentes, queremos deslocar-nos através delas”, referiu um oficial israelita de topo em 2006.

Crucialmente, o esbatimento do espaço estabelecido e demarcado tem vindo a permear gradualmente da esfera militar para a esfera política israelita. Além disso, o princípio de confundir o que está dentro com o que está fora foi alargado ao espaço político e jurídico dos Territórios Palestinianos Ocupados. Permitiu a criação de um espaço com duas camadas, submetendo os judeus israelitas e os árabes palestinianos a diferentes matrizes de mobilidade e tratamento administrativo.

O espaço jurídico e administrativo diferenciado solidificou assim o princípio político sionista de direitos políticos também diferenciados. Este sistema de dois níveis prevê a exclusão política dos palestinianos, mas mantém a dependência e a inclusão legal dos palestinianos sob o aparelho de controlo israelita. O sistema é essencialmente um sistema de excepção soberana, sobre o qual se debruçaram filósofos como Carl Schmitt e Giorgio Agamben.

Avançamos para os dias de hoje: Quando se explicita que o objectivo primordial é a manutenção do sionismo, tudo o que Netanyahu está a fazer faz sentido. O cerne do problema mantém-se inalterado: a contradição inerente a um Estado sionista excepcionalista que incorpora um grupo não-judeu substancial sem direitos - quer seja mantido no gueto vedado de Gaza, quer numa “matriz de fortaleza dos colonos” da Cisjordânia - tornou-se insustentável.

Quando o “sistema” de bifurcação de Ariel Sharon se rompe (como aconteceu a 7 de Outubro), noções como as propostas de Blinken para o “dia seguinte” em Gaza põem em dúvida a viabilidade do projecto sionista em si. Em termos simples, o sionismo terá de ser repensado - ou abandonado.

Da mesma forma, as respostas políticas do Ocidente terão de ser repensadas. Os chavões bem-intencionados sobre uma “solução” de dois Estados chegam com anos de atraso. Já correu demasiada água debaixo da ponte. Em vez disso, o Ocidente pode começar a considerar as implicações da derrota para aqueles que abraçaram um lado deste conflito. Não é apenas Israel em Gaza que está no banco dos réus em Haia, muito mais está também (da perspectiva do Sul Global).

Poderia esta “inclusão excludente” israelita ter realmente persistido? O sistema político tecno-espacial de Sharon, apesar da sua pretensão de legitimidade filosófica não passa, no fundo, de uma evolução do paradigma associado a um estratega sionista fundamental, Vladimir Jabotinsky: ou seja, uma forma diferente de fazer “desaparecer” os palestinianos.

E se não for possível fazer “desaparecer” o grupo palestiniano através de construções tecno-espaciais, não seria surpreendente que a lógica da situação levasse Netanyahu e o seu governo de volta à estratégia original de Sharon de desrespeito radical pelo espaço militar e pelas fronteiras políticas - para surpreender e criar uma armadilha espacial alargada para os palestinianos (tal como Sharon fez com o exército egípcio).

Israel é o Estado do povo judeu”, sublinhou Livni em 2008 - enfatizando a “linha fundamental” sionista - “e gostaria de sublinhar que o significado de “o seu povo” é o povo judeu, sendo Jerusalém a capital una e indivisa de Israel e do povo judeu desde há 3007 anos”.

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

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