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O legado macabro dos EUA no Iraque

Joy Gordon

redecastorphoto - 25 de Março de 2013

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

http://redecastorphoto.blogspot.com.es/2013/04/o-legado-macabro-dos-eua-no-iraque.html

Quando os EUA, o Reino Unido e a “coalizão de vontades” atacaram o Iraque em março de 2003, milhões protestaram em todo o mundo. Mas a guerra de “choque e pavor” foi só o começo. A subsequente ocupação do Iraque pela Autoridade Provisória da Coalizão comandada pelos EUA reduziu a infraestrutura a ruínas e acabou de levar o país à bancarrota.

Não é só questão de segurança. Embora a violência que converteu o Iraque em pesadelo de sectarismos já esteja bem documentada em inúmeras “retrospectivas” jornalísticas dessa guerra que já dura uma década, poucos são os jornalistas e “especialistas” que cuidam de noticiar, por padrões bem mais objetivos, que os EUA fizeram serviço sujíssimo, de incompetência realmente espetacular, quando lhes coube governar o Iraque invadido e ocupado.

Não que, antes da invasão e ocupação norte-americana, o Iraque estivesse “florescendo”. De 1990 a 2003, o Conselho de Segurança da ONU impusera sanções econômicas ao Iraque, as mais violentas de toda a história da governança global. Mas, daquela vez chegava, pelo menos, com as sanções, também um elaborado sistema de supervisão e prestação de contas que mobilizava o Conselho de Segurança, nove agências da ONU e o próprio secretário-geral.

O sistema tinha muitos defeitos, e os efeitos das sanções sobre o povo iraquiano foram devastadores. Mas o principal problema foi que, quando chegaram as forças norte-americanas de invasão e ocupação, sumiram do Iraque todas as instituições e mecanismos de supervisão internacional.

Sob violenta pressão de Washington, em maio de 2003 o Conselho de Segurança da ONU reconheceu formalmente a ocupação do Iraque pela Autoridade Provisória da Coalizão, pela Resolução n. 1.483. Essa Resolução, dentre outras coisas, dava à Autoridade Provisória da Coalizão controle completo sobre todos os bens e patrimônio do estado iraquiano.

O tacão dos EUA assassinando a população civil do Iraque

Simultaneamente, o Conselho de Segurança da ONU removeu todos os mecanismos e estruturas de monitoramento, fiscalização e cobrança de contas que haviam sido implantados para fiscalizar o governo iraquiano: e nunca mais a ONU fez qualquer relatório sobre a situação humanitária no país. Também se extinguiram as comissões do Conselho de Segurança encarregadas, até ali, de monitorar a ocupação norte-americana.

Previam-se algumas poucas e limitadas auditorias do que tivesse a ver com o uso do dinheiro, mas sempre depois de gasto; mas nenhum mecanismo ou estrutura da ONU cuidaria de supervisionar diretamente os negócios do petróleo. E nenhuma agência de atenção humanitária haveria, encarregada de garantir que o dinheiro iraquiano estivesse sendo consumido em benefício do povo iraniano, mais do que das autoridades da ocupação, das grandes empresas de petróleo e em outras finalidades menos decentes.

Preocupações humanitárias

Em janeiro de 2003, a ONU preparou um plano de trabalho, no qual antecipava o impacto de uma possível guerra no Iraque. Trabalhando ainda sob a hipótese de que a invasão e a ocupação pelos EUA viessem a ter apenas “médio impacto”, a ONU já previa consequências catastróficas, no plano humanitário.

Dado que a população iraquiana dependia pesadamente do sistema estatal de distribuição de comida (uma das consequências das furiosas sanções internacionais impostas ao país), a ONU previa que, com a derrubada do regime, a própria segurança alimentar da população ficaria sob risco. E, dado que a população já padecia de má nutrição, com grande número de atingidos, a interrupção do sistema estatal de distribuição de alimentos teria consequências rapidamente letais e punha sob risco de morte cerca de 30% das crianças iraquianas com menos de cinco anos.

O mesmo relatório da ONU observava também que, se as usinas de tratamento de esgotos e água fossem atingidas nos ataques, ou se o sistema de distribuição de energia elétrica não pudesse operar, os iraquianos perderiam completamente o acesso a água potável – o que precipitaria o país em ondas de epidemias de doenças causadas por contato com ou ingestão de água não tratada. E se eletricidade, transportes e equipamentos médicos fossem comprometidos nos ataques, o sistema de assistência médica e à saúde perderia até as condições mínimas necessárias para fazer frente às epidemias.

Com a invasão e ocupação norte-americana, aconteceu quase exatamente tudo o que a ONU previra. Relatório da ONU de junho de 2003 Relatório da ONU de junho de 2003 observava que os sistemas de água e esgotos que deveriam servir Bagdá e outros governorados no centro e no sul do país estavam “em crise”. Só em Bagdá, o relatório estimava que 40% da rede de distribuição urbana de água sofrera ataques e apresentava danos, o que reduzia a menos da metade a oferta de água potável na cidade, por efeito de vazamento e destruição de tubulações do sistema. E, ainda pior: a ONU relatava que nenhuma das duas usinas de tratamento de esgotos de Bagdá estava operante, o que levava a uma descarga massiva de esgotos sem tratamento diretamente no rio Tigre.

Soldados dos EUA assassinam civis

A situação alimentar era semelhante. A ONU relatou que as plantações e criações de animais estavam em colapso, dados “os saques e a insegurança generalizada, o colapso total de ministérios e agências estatais – únicos agentes provedores de serviços e insumos para aquele tipo de atividade econômica – e dado, também, o fornecimento irregular ou inexistente de energia elétrica”.

Também o sistema de assistência à saúde deteriorara-se já dramaticamente. Menos de 50% da população do Iraque tinha acesso a atendimento médico, em parte pela impossibilidade de as pessoas viajarem, pelos muitos riscos de qualquer deslocamento por estrada. Além disso, a ONU estimava nesse relatório que 75% de todas as instituições de atendimento a doentes do país haviam sido afetadas por saques e pelos bombardeios, no caos que se seguiu ao início da guerra. Em junho de 2003, estava em relativo funcionamento apenas 30-50% da capacidade que havia antes da invasão e ocupação pelos EUA e da guerra. O impacto foi imediato. No início do verão, haviam duplicado os caos de mal-nutrição aguda; havia disenteria epidêmica, e praticamente não havia qualquer tipo de assistência médica ou hospitalar. Em agosto, quando houve pane no sistema elétrico e falta de luz em New York, circulou uma piada em Bagdá: “Tomara que ninguém chame os norte-americanos para consertar a coisa por aqui!”.

A Autoridade Provisória da Coalizão outorgou a responsabilidade pelo socorro humanitário aos militares norte-americanos – não a agências com experiência em graves crises humanitárias – e marginalizou todas as agências da ONU para socorro humanitário. Ao longo dos 14 meses de governo da Autoridade Provisória da Coalizão, a crise humanitária só se agravou. Doenças preveníveis, como disenteria e tipo tornaram-se epidêmicas. A má nutrição aprofundou-se, com número crescente de mortes de mães e recém-nascidos e de crianças pequenas. No total, estima-se em 100,000 o número de “mortes evitáveis” durante os anos de invasão e ocupação norte-americana no Iraque, número muitíssimo superior às taxas de mortalidade que havia durante o governo de Saddam Hussein, mesmo com o país sob fortes sanções internacionais.

Famílias inteiras assassinadas pelo soldados dos EUA

As prioridades da Autoridade Provisória da Coalizão eram bem evidentes. Depois da invasão, quando os saques e assaltos aconteciam sem qualquer controle, as autoridades da ocupação nada fizeram para proteger as usinas de tratamento de água e esgotos, nem os hospitais, sequer os hospitais pediátricos. Mas deram, isso sim, integral proteção aos prédios onde funcionavam os ministérios do petróleo; contrataram empresa norte-americana para apagar incêndios em poços de petróleo; e garantiram ampla e reforçada proteção às instalações para extração de petróleo.

Corrupção

Como se não bastasse, a Autoridade Provisória da Coalizão comandada pelos EUA sempre esteve profundamente corrompida. Grande parte do que caberia ao Iraque receber, das vendas de petróleos e de outras fontes, foi entregue, sob contrato comercial a empresas dos EUA. Dos contratos de mais de $5 bilhões, 74% foram passados a empresas norte-americanas; o restante foi todo, praticamente, a empresas de países aliados dos EUA. Apenas 2% foram passados a empresas iraquianas.

Durante os anos de ocupação norte-americana no Iraque, quantidades imensas de dinheiro simplesmente desapareceram. Kellogg, Brown & Root (KBR), empresa subsidiária da Halliburton, recebeu 60% dos contratos pagos com fundos iraquianos, apesar de repetidamente denunciados por auditores, por déficit de seriedade e competência comprovadas. Nas últimas seis semanas da ocupação norte-americana no Iraque, os EUA embarcaram $5 bilhões de fundos iraquianos, em dinheiro, para dentro do Iraque, para serem gastos antes de que o novo governo de iraquianos tomasse posse. Relatório de auditor contratado indicavam que os fundos iraquianos repatriados eram sistematicamente partilhados ilegalmente em funcionários da Autoridade Provisória da Coalizão:

“Uma empresa contratada recebeu pagamento de $2 milhões, em notas de dinheiro amarradas em pequenos pacotes, metidos num saco de papel pardo” – disse um dos auditores em relatório oficial apresentado à Comissão de Supervisão e Reforma do Governo, do Senado dos EUA, em 2007: “Funcionário do governo dos EUA recebeu $6,75 milhões em dinheiro, com ordens para gastar em uma semana, antes de o governo iraquiano assumir o controle dos fundos do país”.

Os funcionários dos EUA, ao que já se sabe, faziam vistas grossas para o desvio de fundos, cuja guarda era responsabilidade deles, como força de ocupação. Numa das operações, a Autoridade Provisória da Coalizão controlada pelos EUA transferiu cerca de $8,8 bilhões de dinheiro iraquiano, sem qualquer documentação sobre como foi gasto o dinheiro. Questionado sobre como o dinheiro havia sido gasto, o almirante David Oliver, vice-ministro da Autoridade Provisória da Coalizão encarregado de questões financeiras, respondeu que “não tenho ideia” de como o dinheiro foi gasto; e acrescentou que a informação não lhe parecia importante. “Bilhões de dólares deles?” – perguntou ao interlocutor. – “Que diferença fariam?”

Afinal de contas, nada disso deve nos surpreender muito – a corrupção, a indiferença às necessidades humanas, a obsessão, única, com controlar o petróleo iraquiano. Tudo podia ser previsto a partir do instante em que o Conselho de Segurança da ONU, sob terrível pressão dos EUA, aprovou a Resolução n. 1.483.

No movimento de remover sistematicamente todas as estruturas e mecanismos de supervisão dos gastos e das ações do governo-fantoche que impuseram ao Iraque, os EUA e seus aliados deram o passo inaugural do que seria assalto incontrolado à riqueza do Iraque.

Os EUA e aliados autorizaram-se, eles mesmos, a absolutamente não tomar conhecimento dos padecimentos que infligiam ao povo iraquiano e a saqueá-lo irrestritamente.

Dez anos depois de iniciada a guerra, o governo-desastre da Autoridade Provisória da Coalizão e os EUA ainda insistem em não ver a descida do Iraque aos infernos da violência mais ensandecida. A violência também é legado da invasão e ocupação norte-americanas.

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