Por Kumuênho da Rosa
jornaldeangola.com - 04 de Janeiro de 2013
http://www.portaldeangola.com/2013/01/o-negocio-do-coltan-de-sangue/
Por causa dos chamados “ossos do ofício”, da proximidade geográfica e também dos laços de consanguinidade acompanho com particular interesse o conflito no Leste da RDC. Justamente por essas razões procuro estar atento ao trabalho dos analistas da nossa praça e vou agregando conhecimento com base em pesquisas sobre esse tema que nos toca a todos.
Fiquei pasmo, confesso, quando ouvi um destes analistas dizer numa rádio comercial que a nova vaga de escaramuças nos Kivus resultara do incumprimento dos acordos de paz de 23 de Março de 2009, à luz do qual o Governo de Kinshasa integraria forças rebeldes no Exército regular.
O meu espanto foi ainda maior quando ouvi destes “entendidos na matéria” que o clima de instabilidade no Leste da RDC, que teve o seu apogeu na tomada da cidade de Goma pelos rebeldes do M23, tem na sua génese as mesmas razões que levam hoje à proliferação de conflitos na região dos Grandes Lagos. Ora não me dirijo a ninguém em particular. Ocorreu-me simplesmente escrever umas linhas, “ressuscitando” essa rubrica, com o propósito de dar o meu contributo para o esclarecimento que se impõe, entre nós, sobre a complexa e intrincada situação dos Kivus.
Faz tempo que deixou de ser segredo o verdadeiro móbil do conflito no Leste congolês, mas por razões que considero estranhas assistimos a um quase total descaso por parte dos media, que na sua maioria relegam para nota de rodapé, ou, quando muito, permitem que opinion makers indocumentados comentem sobre o tema de uma forma demasiado circunstancial, para não dizer leviana.
A situação nos Kivus é grave e encerra um quadro muito mais profundo e complexo do que aquele que nos é dado a ver por boa parte dos nossos analistas. Há muito mais para além da não aplicação pelo Governo congolês do acordo de paz de 23 de Março de 2009, de que se diz resultar daí a formação da milícia rebelde que actualmente combate o Exército regular.
A débil mediatização do conflito congolês leva a que muito boa gente tenha uma percepção errada sobre o que para muitos pesquisadores se tornou no “conflito mais brutal e devastador, mais destrutivo e complexo de que se tem memória no continente berço”.
O conflito na RDC é cíclico e toda a gente sabe. E resulta de uma disputa desenfreada por terras ricas em minerais raros utilizados principalmente na indústria dos telemóveis. Este facto esvazia por completo a teoria de que a invasão do Ruanda e a ocupação de parte do território congolês foi motivada por uma acidental deslocação do foco do conflito entre grupos rebeldes hutus e tutsis.
Alguns autores que seguem de perto o dossier estão de acordo quanto à verdadeira natureza do conflito no Leste da RDC e abandonaram, quase que em definitivo, a tese sustentada no genocídio de 1994, no Ruanda. Foi então dito que rebeldes hutus que participaram no genocídio de 1994, então integrados nas Forças Democráticas para a Libertação do Ruanda (FDLR), fugiram para a RDC, e que, a partir dali, continuaram a lançar acções contra o Governo tutsi do Ruanda.
Explica-se, desta forma, as duas vezes que o Ruanda invadiu “oficialmente” o território da RDC. E o resultado não podia ser mais conveniente: uma parcela da região Leste da RDC, a tal zona rica em minerais raros, ficou sob o controlo dos rebeldes tutsis, apoiados militarmente pelo Ruanda e Uganda. Coincidência ou não, a verdade é que logo após voltar o clima de escaramuças nos kivus, o Ruanda elevou a sua capacidade de exportação de coltan e o Uganda, segundo relatos, aparece como exportador “não oficial” deste minério raro, cujo nome resulta da combinação de columbite e tantalite, dos quais se extraem metais preciosíssimos, mais disputados até que o Ouro.
O coltan é usado no fabrico de dispositivos electrónicos e de comunicação, tais como telefones celulares, resulta daí tratar-se de um negócio multimilionário. Reporta-se ainda que o coltan tem grande utilidade para as novas tecnologias, estações espaciais, foguetões e até armas ultra-sofisticadas só ao alcance dos maiores e mais bem equipados exércitos do planeta.
Entende-se, portanto, que os exércitos de ocupação e seus “clientes” tenham estendido por várias milhas a suas zonas de jurisdição no sentido oeste das fronteiras do Uganda e Ruanda, que corresponde às regiões congolesas do Kivu do Norte, Kivu Sul, Kasi, e Katanga (Shaba). Avultam relatos de actividades marginais, envolvendo companhias ruandesas e de outros países, por trás das linhas dominadas pelos rebeldes.
É intrigante assistir-se nos noticiários as atrocidades que se cometem na RDC, as mortes, famílias inteiras obrigadas a abandonar tudo e fugir, por uma razão que continua a ser escamoteada. Infelizmente, apesar de relatórios das Nações Unidas denunciarem o envolvimento de tropas ruandesas ao lado dos rebeldes do M23, a comunidade internacional permanece quieta, demasiado quieta para uma situação tão grave e chocante.
A “Guerra do Coltan”, como também é chamada, já matou mais do que três milhões de congoleses e atira milhares de famílias ao desespero. Expostas a morte por bala ou por doenças como a cólera ou a varíola por falta de acesso a água tratada e cuidados de saúde. É inconcebível que um país que é dos mais ricos do mundo, pela diversidade de recursos minerais que tem, faça parte da lista de nações a depender de ajuda humanitária.
Os números são simplesmente aterradores: há 2,4 milhões de deslocados internos, 4,5 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar, um milhão de crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição e 27 mil casos de cólera foram registados em 2012. Para agravar ainda mais a situação, é pouca a ajuda que recebe, já que a ONU e seus parceiros solicitaram 791 milhões de dólares para ajuda humanitária, mas só receberam 429 milhões.
A certificação da origem do Coltan pode ser a porta de saída para a solução pacífica e duradoira da crise nos Grandes Lagos. Tem sido essa a proposta do Governo angolano, com base na grata experiência do Processo de Kimberley, por via do qual, em 2000, vários países comprometeram-se a só adquirir diamantes brutos certificados (com procedência confirmada por certificado oficial) e a recusar importações vindas de áreas de conflito. Tem sido o principal argumento para a recusa pelo Governo angolano de envio de tropas para a RDC e a insistência numa solução política com o envolvimento global. E faz bem, porque resulta da própria experiência angolana, que teve no Processo Kimberley o instrumento chave para o fim da guerra civil que durante mais de 30 anos ceifou a vida a milhares de pessoas e dilacerou a economia.
O Kimberley Process Certification Scheme (KPCS) pôs fim à compra de pedras originárias de áreas de conflito e veio quebrar o vínculo que existia entre a comercialização de recursos naturais valiosos e o estímulo às guerras civis. O papel do Coltan no conflito congolês impõe uma mobilização global por uma solução efectiva para a crise dos kivus e a prevenção de conflitos na região dos Grandes Lagos. A ideia nem sequer é original, pois segue os mesmos propósitos do realizador dinamarquês Frank Piasecki, no seu documentário Blood in the Mobile (Sangue no Celular), e de outras mentes esclarecidas incapazes de agir com indiferença perante tamanha injustiça. Mas ainda assim lanço o desafio. Chamemos-lhe “Coltan de Sangue”, porque não?
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