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Os presidentes norte-americanos passam, o Goldman Sachs continua

É raro pedir a motoristas pé de chumbo que reformem o código de trânsito. A débâcle da bolsa em 2008, porém, conduziu os gigantes das finanças para o posto de administradores de uma crise que eles mesmos provocaram. É o caso do banco Goldman Sachs, que há muito murmura nas orelhas do poder

Por Ibrahim Warde

Le Monde Diplomatique - 08 de Novembro de 2011

http://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=77

No mesmo momento em que incitava seus clientes a se aventurarem no mercado imobiliário, o banco de investimentos Goldman Sachs desenvolvia um produto financeiro, “Abacus”, que lhe permitia especular na queda do setor. Acusado de fraude, ele conseguiu, em 15 de julho de 2010, livrar sua equipe dirigente por meio do pagamento de uma indenização de US$ 550 milhões: o equivalente a duas semanas de seus lucros, ou a 3% do total de bônus que distribuiu em 2009.

Essa aptidão de jogar com o poder – ou brincar com ele – não é surpreendente. Desde o começo dos anos 1990, uma carreira política de primeiro plano vem logicamente coroar o percurso de todos os chefes do Goldman Sachs (ver box). A consanguinidade com o mundo político explica a implicação do banco nas grandes manobras financeiras: ocupou um lugar tão central quanto ambíguo na crise dos subprimese do salvamento dos bancos fragilizados pela crise financeira de 2008; ajudou a Grécia a maquiar suas contas, precipitando a crise do euro; teria também, ao especular sobre as matérias-primas, provocado uma alta artificial no preço do petróleo.

De outro lado, o banco soube extrair, ano bom, ano ruim, lucros consideráveis, incluindo o ano depois do estouro das bolhas que ele contribuiu largamente para inflar. As receitas polpudas dos anos de expansão não surpreendem. Mas, depois do colapso do castelo de cartas e da expiação que se seguiu, as receitas dos anos magros acabaram por chocar a opinião pública, que se interrogou: a desgraça de (muitas e muitas) vítimas do estouro da bolha faria a sorte do Goldman Sachs?

Fundada em 1869 por Marcus Goldman, um imigrante judeu bávaro, logo acompanhado por seu genro Samuel Goldman, a empresa, especializada no começo em corretagem de “documentos comerciais” (empréstimos de curto prazo emitidos por empresas), ficaria por muito tempo fora das altas finanças, quase inteiramente Wasp (white, anglo-saxon, protestant [branco, anglo-saxão, protestante]). Duramente afetada pela crise de 1929, só conheceria seu verdadeiro desenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial.

Em 1956, o banco de investimentos intervém de maneira decisiva quando da introdução na bolsa do fabricante de automóveis Ford. O banco adquire progressivamente, tanto por seu profissionalismo quanto por sua capacidade de trabalho, uma equipe invejável, muito unida e impregnada de uma forte cultura corporativa. Dominada por financistas à moda antiga, como Sidney Weinberg ou Gus Levy, ela se impõe, pouco a pouco, frente ao establishment tradicional, até derretê-lo.

O Goldman Sachs permanece, no entanto, diferente de seus concorrentes. O banco é conhecido como metódico e prudente, e por nunca participar de operações de tomada de juros “hostis”. Um de seus lemas – “apressar-se lentamente” – lhe valeu o apelido de “tartaruga”.

Contrariamente a alguns de seus rivais, evita os gastos suntuosos. Para mostrar bem que o dinheiro não deveria ser o único motor de suas tropas, seus funcionários tinham salários menores que os da concorrência, resultando em uma relativa “frugalidade”. Outro de seus lemas, long-term greedy (ganancioso de longo prazo), lhe impõe uma abordagem de paciência para o investimento e implica consentir sacrifícios financeiros, dado que estes lhe asseguram a fidelidade absoluta de seus clientes. A cultura da casa se exprime nos célebres “quatorze mandamentos”. O sétimo afirma justamente: “Não há lugar aqui para aqueles que colocam seus interesses antes dos da empresa e dos clientes”. No clube bem fechado de bancos de investimentos, os códigos deontológicos e o respeito à palavra dada ainda contavam.(1)

A tartaruga se transforma em polvo

Todos esses belos princípios foram pouco a pouco minados com a desregulamentação financeira dos anos 1980. O critério supremo se torna o da rentabilidade, que só se pode obter ao preço de métodos duvidosos: alavancagem financeira (compra especulativa financiada por endividamento) perigosamente elevada; desvio de qualquer regra que subsista; inovações em ritmo vertiginoso.(2) É desse período que data a consanguinidade com o poder (mesmo se o discurso oficial continua a celebrar o mercado total), a internacionalização e a louca corrida por lucros.

Lenta mas certamente, a “tartaruga” se transforma em “polvo” que tenta reescrever em seu favor as regras das finanças – as quais vão praticamente permitir tudo. No exterior, conselheiros da elite político-financeira são recrutados a peso de ouro para ajudar a tirar lucros da onda de desregulamentação e privatizações. Na França, por exemplo, é Jacques Mayoux, inspetor das finanças e anteriormente presidente do banco Société Général, diretor-geral da Caixa Nacional do Crédit Agricole [outro banco francês] e presidente do Sacilor, que se liga ao Goldman Sachs. Charles de Croisset, inspetor de finanças, ex-presidente do Crédit Commercial de France (CCF) e administrador de Bouygues, Renault, LVMH e Thales, o sucedeu.

Outra grande reviravolta aconteceu em 1999. O Goldman Sachs passa ao status de empresa cotada na bolsa.(3) Ontem, sociedade de pessoas, de capital fechado – no qual o capital e os beneficiários pertencem a associações que se responsabilizam, com seus próprios bens, pelos riscos tomados pela empresa, na qual eles estavam obrigados a reinvestir o essencial de seus benefícios –, “a Firma” se transforma em sociedade anônima (cujo valor “estabelecido pelo mercado” é de US$ 3,6 bilhões). Seus 221 parceiros, detentores de 48% do capital do Goldman Sachs, embolsam em média US$ 63 milhões cada um.(4) Isso leva ao fim da disciplina financeira e da “ganância de longo prazo”. No momento da financeirização, o sucesso se mede em número de dólares gerados, balanço após balanço. O Goldman Sachs lidera os bancos de Wall Street em rentabilidade (US$ 13,4 bilhões de resultado líquido em 2009) e expõe em plena luz do dia os bônus de seus empregados.

No cassino financeiro, o banco atua em vários papéis: o de croupier, que embolsa uma comissão sobre todas as transações; o de conselheiro, que elabora estratégias e fornece a seus clientes informações confidenciais para aplicações financeiras – governos, investidores institucionais ou apostadores inveterados como os hedge funds (fundos especulativos). Suas análises e seus economistas estão entre os mais ouvidos do planeta, e suas declarações influem com frequência sobre o desenvolvimento das coisas. Mas, sobre o tapete verde, o Goldman Sachs aparece, sobretudo, como o jogador que conhece as cartas de todos os outros e que decide as apostas.

Jogo duplo

O grosso dos benefícios da empresa provém, de fato, da comercialização usando recursos próprios. O banco coloca seu próprio capital sobre todos os mercados financeiros, no setor imobiliário e em grupos de investimento em empresas de grande potencial. Além disso, desde a aquisição da J. Aron & Company em 1981, se torna um peso pesado no mercado de matérias-primas e influencia, intencionalmente ou não, a saúde econômica tanto dos produtores como dos consumidores do mundo todo. Nem os assuntos ligados ao mercado de petróleo nem aqueles que concernem ao aquecimento climático (com a mina de ouro dos “créditos de carbono”) lhe escapam.

Os conflitos de interesse são inerentes a esse supermercado das finanças que oferece toda uma gama de serviços e busca permanentemente maximizar a sua rentabilidade. O caso Abacus, provocado por e-mails indiscretos do trader francês Fabrice Tourre, é um exemplo disso.

O Goldman Sachs se viu acusado pela Securities and Exchange Commission (SEC, a instância de controle das bolsas norte-americanas) de ter enganado seus clientes lhes vendendo, em 2007, collateralized debt obligations(CDO), produtos derivativos complexos endossados por créditos imobiliários de risco (subprimes), sem os informar que o banco apostava em sua queda. De uma parte, o banco tinha, ele próprio, liquidado seu portfólio de subprimes, o que estava no direito de fazer. Mas, sobretudo, ele tinha escondido de seus clientes que o banco tinha recebido do fundo especulativo Paulson, US$ 15 milhões para realizar essa montagem. Ou melhor (ou pior), Henri Paulson, o próprio especulador, teria participado ao lado de especialistas do banco da seleção dos créditos mais suscetíveis de se degradar.

Dito de outra forma, o Goldman Sachs, consciente da iminência de uma crise dos subprimes, continuava a incitar seus clientes a apostar em uma alta do mercado imobiliário enquanto, em associação com um fundo especulativo, apostava em uma baixa, o que teve por efeito precipitar a queda desses títulos. Os investidores, que não desconfiaram de seu jogo duplo, teriam perdido mais de US$ 1 bilhão na aventura.

Antes de reconhecer seus “erros”, o banco negou, qualificando a queixa de “sem fundamento”. O caso da Grécia fornece outro exemplo: o estabelecimento nova-iorquino foi remunerado pelo governo desse país como banco consultor, ao mesmo tempo que especulava sobre a sua dívida.

A diferença entre o ilegal e o imoral

De um ponto de vista legal, no entanto, o Goldman Sachs talvez tivesse razão: o que é imoral não necessariamente é ilegal. Há menos de vinte anos, quando do escândalo das poupanças nos Estados Unidos, cerca de 1.500 banqueiros haviam cumprido pena de prisão com base em leis ditas anti-racketeering, antes postas em prática para combater a máfia e o crime organizado. Doravante, os banqueiros desfrutam de outro estatuto: um novo marco legal e ideológico prevalece. Várias práticas (como o seguro de dívidas conhecidas como credit default swap, ou CDS) escapam de toda regulamentação. O princípio do caveat emptor(comprador, desconfie) prevalece. E o Goldman Sachs repete que apenas responde à demanda de seus clientes, os quais se tratam, aliás, de investidores sofisticados, forçados a exercer uma verificação sistemática (due diligence). Tanto que todos os documentos legais continham alertas e reserva de uso.

No mundo das altas finanças, a opacidade resulta do relaxamento de um excesso de transparência. Cada produto é acompanhado de uma documentação de várias centenas de páginas, porque certos investidores confiam nas notas das agências de classificação de risco, as quais se enganam frequentemente. Como constata Rama Cont, diretor do Centro de Engenharia Financeira da Universidade Columbia, evocando os riscos de títulos emitidos pelo Goldman Sachs e classificados como AAA (a melhor nota), “a informação é disponível, mas cada título subprimeé redigido em cinquenta ou sessenta páginas, e com frequência de modo diferente, de acordo com os juristas. Teria sido necessário mobilizar um pessoal adequado para triar as 5.700 páginas dos derivativos da dívida Abacus...”. (5)

Depois de ter por muito tempo suscitado admiração, o grupo sofre agora um problema de imagem. Em plena crise econômica mundial, o banco, junto com outros gigantes de Wall Street, em grande medida funcionou bem, e concedeu bônus considerados “obscenos”. Outros escândalos surgiram, o que levou a perguntar se a travessia relativamente fortuita da turbulência financeira não era devida à onipresença de seus ex-funcionários. Dali em diante tornou-se de bom tom, inclusive entre os que se beneficiaram de sua generosidade, criticá-lo. Barack Obama e Angela Merkel tiveram palavras bastante duras para uma empresa que poderia um dia lhes enviar uma oferta de trabalho.

O caso Goldman Sachs terá, no entanto, tornado possível a reforma do sistema financeiro dos Estados Unidos. A lei Dodd-Frank, chamada de “a mais vasta reforma do setor financeiro desde a Grande Depressão”, foi votada pelo Senado norte-americano em 15 de julho de 2010. Certamente clara em seus grandes princípios, ela visa impedir o colapso das grandes instituições financeiras e seu salvamento por parte dos contribuintes, minimizar a especulação dos bancos e de seus fundos próprios, impor mais transparência ao mercado de derivativos comercializados livremente; e, por fim, proteger os consumidores contra as práticas predadoras e usurárias.

Por outro lado, suas 2.300 páginas parecem menos satisfatórias em se tratando da aplicação concreta de tal programa. Mesmo se as cifras da Câmara de Comércio dos Estados Unidos são, sem dúvida, intencionalmente exageradas, a lei Dodd-Frank implicaria na redação, por dez agências governamentais diferentes, de 533 novas regulamentações, 60 investigações e 94 relatórios, em um prazo de três meses a quatro anos.

O lobby bancário vai lutar em todos os terrenos. Ele aposta no fim progressivo do rancor público contra as instituições financeiras para encontrar toda a liberdade do passado. Aqui, de novo, o Goldman Sachs saberá jogar sua partida.

BOX:

Uma seleta rede de amigos em altos postos

Ex-diretor do Goldman Sachs, Robert Rubin dirigiu o Conselho Econômico Nacional criado por Bill Clinton (1993-1995) antes de se tornar seu ministro das Finanças (1995-1999). Rubin contribuiu para “tranquilizar” a comunidade financeira, sobretudo por ser um fervoroso apóstolo da desregulamentação. Sob a presidência de George W. Bush, dois outros ex-proprietários do banco de investimentos tiveram papel político importante em diferentes áreas do governo e, por razões pragmáticas, dentro dos dois principais partidos. Henry Paulson foi, de 2006 a 2009, ministro das Finanças (e principal arquiteto do resgate do sistema bancário), enquanto Jon Corzine foi eleito senador (democrata) por Nova Jersey em 2000 – depois de gastar US$ 62 milhões do próprio bolso na mais cara campanha para o Senado da história norte-americana – e governador daquele estado, entre 2006 e 2010. Outros altos funcionários do Goldman Sachs, menos notórios, exerceram influência política não menos significativa, especialmente durante o recente colapso financeiro. Neel Kashkari era protegido de Paulson no Goldman Sachs antes de acompanhá-lo em sua ida para o Tesouro, onde se tornou, aos 35 anos, o principal gestor do TARP (Troubled Asset Relief Program), o que lhe permitiu distribuir US$ 700 milhões às instituições financeiras em busca de recapitalização. Quanto a Stephen Friedman, antigo CEO do banco, estava usando três chapéus no momento da crise financeira: administrador do Goldman Sachs, presidente da Comissão Presidencial de Informações e presidente do Federal Reserve Bank de Nova York, órgão que tutela o Goldman Sachs. Diante dessa rede de influências, os meios de comunicação muitas vezes se referiam ao banco de investimento como “A Firma” ou “Governo Sachs”. Entretanto, não foi só nos Estados Unidos que a empresa se instalou na antessala do poder. Os italianos Romano Prodi (ex-primeiro-ministro italiano) e Mario Draghi (presidente do Banco da Itália, o Banco Central italiano, e nomeado para dirigir o Banco Central Europeu, sucedendo a Jean-Claude Trichet a partir de novembro de 2011) já tinham sido, respectivamente, conselheiro e vice-presidente do Goldman Sachs para a Europa. Ex-CEO do banco em Londres, o presidente nigeriano, Olusegun Aganga, é agora o “czar econômico” do seu país. Às vezes, belas carreiras políticas são beneficiadas por uma “dança das cadeiras”. Esse é o caso de Peter Sutherland: ministro da Justiça da Irlanda, depois comissário europeu para a concorrência e gerente geral do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), atualmente preside o Goldman Sachs International, em Londres. (I.W.)

Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone - Le Monde Diplomatique, 2007.

Ilustração: Emilio Damiani

(1) Charles D. Ellis, The Partnership: The Making of Goldman Sachs [A parceria: a construção do Goldman Sachs], Penguin Books, Nova York, 2009.
(2) Suzanne McGee, “Chasing Goldman Sachs: How the Masters of the Universe Melted Wall Street Down... And Why They’ll Take Us to the Brink Again” [Perseguição ao Goldman Sachs: como os mestres do universo derreteram Wall Street… e por que eles nos levarão até a beira do precipício novamente], Crown Business, Nova York, 2010.
(3) Lisa Endlich, Goldman Sachs: The culture of success [A cultura do sucesso], Simon and Schuster–Touchstone, Nova York, 2000.
(4) Nomi Prins, It takes a pillage: behind the bailouts, bonuses and backroom deals from Washington to Wall Street [É preciso uma pilhagem: por trás dos resgates, dos bônus e das negociações de bastidores de Washington a Wall Street], Wiley, Hoboken, 2009.
(5) Sylvain Cypel, “Les conflits d’intérêts d’Abacus” [Os conflitos de interesse do Abacus], Le Monde, 4 maio 2010.

http://www.diplomatique.org.br/edicoes_especiais_artigo.php?id=77

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