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O problema Donald Trump

Trump não está sendo visado pelas contravenções e crimes que ele parece ter cometido, mas por desacreditar e minar o poder entrincheirado do duopólio dominante

por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report

Brasil 247 - 27 de março, 2023

https://www.brasil247.com/blog/o-problema-donald-trump

Donald Trump — enfrentando quatro investigações governamentais, três criminais e uma civil, visando a ele e os seus negócios — não está sendo visado devido aos seus crimes. Quase todos os crimes sérios dos quais ele é acusado de executar foram cometidos pelos seus rivais políticos. Ele está sendo visado porque é considerado perigoso pela sua disposição, ao menos retoricamente, de rejeitar o Consenso de Washington concernente às políticas neoliberais de livre-mercado e livre-comércio, bem como a ideia de que os EUA deveriam dirigir um império global. Ele não só menosprezou a ideologia dominante, mas instou os seus apoiadores a atacar o aparato que mantém o duopólio ao declarar a eleição de 2020 como ilegítima.

O problema Donald Trump é o mesmo que o problema Richard Nixon. Quando Nixon foi forçado a renunciar sob a ameaça de um impeachment, não foi pelo seu envolvimento em crimes de guerra e crimes contra a humanidade, nem pelo seu uso ilegal da CIA e outras agências federais para espionar, intimidar, acossar e destruir radicais, dissidentes e ativistas. Nixon foi derrubado porque ele visou outros membros do establishment político e econômico dominante. Uma vez que Nixon, assim como Trump, atacou os centros do poder, as mídias foram deslanchadas para expor abusos e ilegalidades que elas haviam minimizado ou ignorado previamente.

Os membros da campanha de reeleição de Nixon grampearam ilegalmente a sede do Comitê Nacional Democrata no edifício de escritórios de Watergate. Eles foram pegos depois que reentraram nos escritórios para consertar os dispositivos de escuta. Nixon foi implicado tanto na ilegalidade pré-eleitoral, incluindo a espionagem de oponentes políticos, quanto de tentar usar agências federais para encobrir o crime. O seu governo mantinha uma “lista de inimigos” que incluía acadêmicos, atores, líderes sindicais, jornalistas, homens de negócios e políticos bem conhecidos.

Um memorando interna da Casa Branca de 1971 intitulado “Dealing with our Political Enemies” — composto pelo Conselheiro da Casa Branca John Dean, cujo trabalho era aconselhar o presidente sobre a lei — descrevia um projeto montado para “usar a maquinaria federal disponível para foder os nossos inimigos políticos”.

O comportamento de Nixon, bem como dos seus ajudantes mais próximos, era claramente ilegal e merecia prossecução. Houve 36 vereditos de culpa, ou confissões de culpa associadas com o escândalo de Watergate dois anos após o arrombamento. Mas não foram os crimes que Nixon cometeu contra dissidentes que garantiram a sua execução política, mas foram os crimes que ele executou contra o Partido Democrata e os seus aliados, incluindo a imprensa do establishment.

“O centro político foi sujeito a um ataque com técnicas que são usualmente reservadas àqueles que fogem das normas aceitáveis de crenças políticas”, escreveu Noam Chomsky no The New York Review of Books em 1973, um ano após a renúncia de Nixon.

Como Edward Herman e Chomsky assinalam no seu livro “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media”:

A resposta é clara e concisa: grupos poderosos são capazes de se defenderem, não supreendentemente; e seas à gundo os padrões das mídias, é um escândalo quando as suas posições e direitos são ameaçados. Em contraste com isso, sempre que as ilegalidades e violações da substância democrática são confinadas à grupos marginais ou vítimas dissidentes do ataque militar dos EUA, ou resultam num custo difuso imposto à população em geral, a oposição das mídias é muda ou totalmente ausente. Foi assim que Nixon conseguiu chegar tão longe, embalado num sentido falso de segurança precisamente porque o cão de guarda só latia quando ele começasse a ameaçar os privilegiados”.

O que levou ao desvendamento do governo Nixon, e o que está no cerne dos ataques a Trump, é o fato que, assim como Nixon, os alvos de Trump incluíam “os ricos e respeitáveis, os porta-vozes da ideologia oficial, homens dos quais se espera que compartilhem o poder, para planejar políticas sociais e moldar a opinião pública”, como Chomsky assinalou sobre Nixon naquela época. “Pessoas como essas não são elegíveis para sofrerem perseguições nas mãos do estado.”

Isto não é para minimizar os crimes de Trump. Trump — quase todas as pesquisas de opinião pública comparando-o com o presidente Biden para as eleições presidenciais de 2024 — parece haver cometido diversas contravenções e sérios crimes.

Em novembro de 2022, o Departamento de Justiça dos EUA nomeou um procurador especial para investigar a retenção de documentos classificados feita por Trump na sua casa de Mar-a-Lago, na Florida, e quaisquer potenciais responsabilidades criminais resultando daquele ato, bem como qualquer interferência ilegal na transferência de poder depois das eleições presidenciais de 2020.

Separadamente, um procurador distrital na Georgia está trabalhando com um grande júri de propósito especial concernente às tentativas de Trump de anular os resultados da eleição de 2020. Uma parte-chave das evidências é o notório telefonema entre Trump e o Secretário de Estado da Georgia, Brad Raffensperger, no qual o presidente seguiu insistindo que precisava que fossem encontrados mais votos. As acusações neste caso poderiam incluir a conspiração para cometer uma fraude eleitoral, extorsão e pressionar e/ou ameaçar autoridades oficiais.

O promotor público do distrito de Manhattan está investigando os US$ 130.000 que Trump usou para pagar a estrela pornográfica Stormy Daniels, com quem Trump alegadamente teve uma relação sexual. Este pagamento foi registrado erroneamente nos arquivos da Organização Trump como um pagamento por serviços legais, em violação das leis financeiras de campanhas eleitorais.

Finalmente, a Procuradora-Geral de Nova York, Letitia James, está abrindo uma ação judicial, alegando que a Organização Trump mentiu sobre os seus ativos, afim de garantir empréstimos bancários. Caso a ação judicial da Procuradora-Geral tenha sucesso, Trump e outros membros da sua família poderão ser impedidos de fazer negócios em Nova York por cinco anos, incluindo compras de propriedades.

As alegadas ofensas de Trump devem ser investigadas — apesar dos casos envolvendo Daniels e a retenção de documentos classificados parecerem ser relativamente menores e parecidos com aqueles cometidos pelos oponentes políticos de Trump.

No ano passado, a campanha de Hillary Clinton em 2016 e o Comitê Nacional do Partido Democrata concordaram em pagar uma multa de US$ 8.000 e US$ 105.000, respectivamente, por rotular erroneamente uma despesa de US$ 175.000 como uma pesquisa sobre a oposição — nomeadamente o há muito desacreditado “Dossier Steele” — como “despesas legais”. A retenção imprópria de documentos classificados tipicamente resultou em um tapa na mão quando outros políticos poderosos foram investigados. Clinton, por exemplo, usou servidores privados de e-mail, ao invés de uma conta governamental de e-mail quando ela era Secretária de Estado. O FBI concluiu que ela enviou e recebeu materiais classificados como de alto segredo no seu servidor privado. Em última análise, o diretor do FBI James Comey se recusou a processá-la. O ex-vice-presidente de Trump, Mike Pence, e Biden também tinham documentos classificados nas suas casas, apesar de que nos dizem que isso poderia ter sido “inadvertido”. A descoberta destes documentos classificados, ao invés de provocar ultraje na maior parte das mídias, iniciou uma conversação sobre “classificação demasiada”. O antigo diretor da CIA David Petraeus recebeu dois anos de liberdade condicional e uma multa de US$ 100.000 após admitir que ele proveu “livros negros” altamente classificados que continham anotações manuscritas classificadas sobre reuniões oficiais, estratégia de guerra, capacidades de inteligência e nomes de agentes clandestinos à sua amante Paula Broadwell, que também estava escrevendo uma biografia bajuladora de Petraeus.

Como foi o caso com Nixon, as acusações mais sérias que Trump poderá enfrentar envolvem o seu ataque aos alicerces do duopólio de dois partidos, especialmente aquelas que minam a transferência pacífica do poder de um ramo do duopólio para o outro. Na Georgia, Trump poderá enfrentar acusações criminais muito sérias, com potencialmente longas sentenças caso ele seja condenado; idem, caso o procurador especial indicie Trump por interferência ilegal na eleição de 2020. Não saberemos até que quaisquer indiciamentos sejam tornados públicos.

No entanto, as ações mais flagrantes de Trump enquanto estava no cargo receberam coberturas mínimas das mídias, ou foram minimizadas, ou elogiadas como atos executados em defesa da democracia e da ordem internacional liderada pelos EUA.

Por que Trump não foi investigado criminalmente pelo ato de guerra que ele cometeu contra o Irã quando ele assassinou o Major-General iraniano Qassem Soleimani e outras nove pessoas com um ataque de drone no aeroporto de Baghdad? O Primeiro-Ministro iraquiano Adel Abdul-Mahdi condenou o ataque e disse ao seu parlamento que Trump mentiu afim de expor Soleimani no Iraque como parte das conversações de paz entre o Iraque, o Irã e a Arábia Saudita. O parlamento iraquiano aprovou uma resolução exigindo que todas as tropas estrangeiras deixem o país — o que o governo dos EUA rejeitou.

Por que não processar ou fazer o impeachment de Trump for pressionar o seu secretário de estado a mentir e dizer que o Irã não estava cumprindo o Plano de Ação Compreensivo Conjunto, conhecido como o acordo nuclear com o Irã? Em última análise, Trump o demitiu e retomou as sanções unilaterais, devastadoras e ilegais contra o Irã, violando a lei internacional e, muito possivelmente, as leis dos EUA.Por que Trump não sofreu impeachment pelo seu papel nas tentativas em andamento para arquitetar um golpe e derrubar o presidente democraticamente eleito da Venezuela? Trump declarou um previamente desconhecido político de direita — e aspirante a líder de um golpe — Juan Guaido para ser o verdadeiro presidente venezuelano e, depois, lhe passou ilegalmente o controle das contas bancárias do país latino-americano nos EUA.

As sanções ilegais dos EUA que facilitaram esta tentativa de golpe bloquearam os alimentos, remédios e outros bens de entrarem no país e evitaram que o governo explorasse e exportasse o seu próprio petróleo, devastando assim a economia. Mais de 40.000 pessoas morreram entre 2017 e 2019 devido às sanções, segundo o Centro para as Pesquisas Econômicas e Políticas (Center for Economic and Policy Research). Este número certamente é maior agora.

Assim como Trump, Nixon não sofreu um impeachment pelos seus crimes mais flagrantes. Ele jamais foi indiciado por mandar a CIA destruir a economia chilena e por apoiar um golpe militar de direita que derrubou o governo de esquerda democraticamente eleito de Salvador Allende. Nixon não foi levado à justiça pelas suas campanhas ilegais e secretas de bombardeios em massa no Cambodia e no Laos, que mataram centenas de milhares de civis, e pelo papel do seu governo nas matanças do povo vietnamita, resultando em pelo menos 3,8 milhões de mortos, segundo um relatório conjunto da Universidade de Harvard e da Universidade de Washington, e até números maiores de vítimas, segundo o jornalista investigativo Nick Turse. Nixon não foi responsabilizado por aquilo que o então-presidente Lyndon Johson denominou privadamente como “traição”, quando ele descobriu que o ainda-a-aser-eleito candidato republicano e o seu futuro Conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, deliberada e ilegalmente sabotaram as suas negociações de paz no Vietname, em última análise prolongando a guerra por outros quatro anos.

Os artigos de impeachment contra Nixon foram aprovados pelo Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos EUA. Os artigos I e III focalizaram nas alegações relativas à Watergate e o fracasso de Nixon em lidar apropriadamente com as investigações congressionais. O artigo II relacionava-se com as alegações de violações das liberdades civis e o abuso de poder do governo. Mas estes se tornaram discutíveis a partir da renúncia de Nixon e, ao final, o desgraçado ex-presidente não enfrentou as acusações relativas ao Watergate. Um mês depois de Nixon deixar a presidência, o presidente Gerald Ford o perdoou por “todos os delitos contra os EUA” que ele havia “cometido ou pode haver cometido, ou ter tomado parte em cometer durante o período entre 20 de janeiro de 1969 até 9 de agosto de 1974”.

Este perdão alicerçou a presidência imperial. Ele entrincheirou a noção moderna da “imunidade de elite”, como o advogado constitucionalista e jornalista Glenn Greenwald assinala. Nem os republicanos, nem os democratas querem estabelecer um precedente que possa aleijar o poder não-controlado e não-responsabilizável de um futuro presidente.

Os crimes mais sérios são aqueles que são normalizados pela elite do poder, independentemente de quem os iniciou. George W. Bush pode ter começado as guerras no Oriente Médio, mas Barack Obama as manteve e as expandiu. A realização maior de Obama poderia ter sido o acordo nuclear com o Irã, porém Biden, seu antigo vice-presidente, não reverteu a destruição deste, nem cancelou a decisão de Trump de mudar a embaixada dos EUA em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, em violação da lei internacional.

Assim como os seus oponentes nos partidos Republicano e Democrata, Trump serve aos interesses da classe bilionária. Também ele é hostil aos direitos dos trabalhadores. Também ele é um inimigo da imprensa. Também ele apoia o desvio de centenas de bilhões de dólares federais para a indústria da guerra para manter o seu império. Também ele não respeita o estado de direito. Também ele é pessoal e politicamente corrupto. Mas ele também é impulsivo, fanático, inepto e ignorante. As suas teorias da conspiração sem base, a sua vulgaridade e travessuras absurdas, são um embaraço para a elite do poder estabelecida nos dois partidos dominantes. Diferentemente de Biden, ele é difícil de controlar. Ele deve ir embora, não porque ele é um criminoso, mas porque ele não é confiado pelo dominante sindicato do crime que gerencia a firma.

Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Chris Hedges, repórter laureado com Prémio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

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