Causa Operária - 01 de fevereiro de 2009
Quando a burguesia européia decidiu dividir entre si o domínio colonial sobre a África, em 1885, durante a Conferência de Berlim, Ruanda, no entanto, só seria entregue à Alemanha – juntamente com o vizinho Burundi – em 1890, em uma conferência realizada em Bruxelas, mas as fronteiras deste país só viriam mesmo a ser definidas em 1900. Com a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, o protetorado foi entregue à Bélgica, que impôs um domínio ainda mais duro contra a população nativa com o apoio da Igreja Católica. A elite dos chamados tutsi, produto de uma distinção artificial criada pelo governo belga, foi levada ao poder e manipulada para reprimir o restante da população de maioria hutu e tutsis de oposição, formando uma espécie de segregação social através da cobrança de altos impostos e a imposição de trabalhos forçados.
Após a Segunda Guerra Mundial, novamente a burguesia divide seus protetorados, sendo a Ruanda uma colônia administrada pela Bélgica sob o aval da recém criada ONU (Organização das Nações Unidas).
Foi iniciado um processo de várias reformas a favor dos interesses belgas que impulsionou os conflitos entre tutsis e hutus, resultando no assassinato (sob circunstâncias misteriosas) do rei tutsi Mutara III Charles, em 1959 e a fuga de seu sucessor e último monarca de Ruanda, seu irmão mais novo, o rei Kigeri V, que se refugiou em Uganda. [Muito tempo depois da morte de Mutara III, sua esposa, a rainha Rosalie Gicanda, seria assassinada em 22 de abril de 1994 durante o Genocídio de Ruanda].
O vácuo político levou os hutus ao poder e à sua consolidação após a independência do país em 1962. A República de Ruanda, no entanto, foi declarada um pouco antes, em 1960, quando a ONU organizou um referendo nacional. Pela primeira vez eleições eram realizadas e Grégoire Kayibanda foi eleito primeiro-ministro.
Várias medidas de repressão foram aprovadas contra os tutsis e muitos anos seguiram-se à beira de uma guerra civil. Em julho de 1973, o major general hutu, Juvénal Habyarimana, à época ministro da Defesa, destituiu o premiê, que também era seu primo, dissolveu a Assembléia Nacional e aboliu todo e qualquer tipo de manifestação política. Em Dezembro de 1978 novas eleições foram organizadas e uma nova Constituição foi aprovada, com Juvénal Habyarimana assumindo a presidência, com o apoio da França. Ele ainda seria reeleito em 1983 e em 1988, mas acabou renunciando em julho de 1990 após sofrer pressão de seus opositores.
Ao mesmo tempo, fortes conflitos entre grupos das duas etnias geraram uma luta aberta. A Frente Patriótica Ruandesa (RPF), organização formada por tutsis refugiados nos países vizinhos, iniciou uma série de ataques armados contra o governo hutu. Este, por sua vez, respondeu com inúmeros massacres contra o povo tutsi até um acordo de cessar-fogo ser assinado em 1992 em Arusha, capital da Tanzânia.
Porém, em 6 de Abril de 1994, o presidente Juvénal Habyarimana e Cyprien Ntaryamira, presidente de Burundi, foram assassinados quando o avião que ocupavam foi atingido por um lança míssil quando chegavam em Kigali.
Milicianos hutus, chamados Interahamwe, foram treinados e equipados pelo Exército ruandês debaixo da propaganda assassina estimulada pela Radio Télévision Libre de Mille Collines (RTLM), dirigida por facções hutus. A “caça aos tutsis” estava iniciada. Mais de 800 mil tutsis e hutus de oposição foram barbaramente assassinados a golpes de machetes (facões importados da China) para economizar munição. Um estupro em massa também foi incentivado e mais de cinco mil crianças nascidas destes estupros foram posteriormente assassinadas.
Sob as vistas grossas dos EUA, da ONU e do imperialismo mundial, a Frente Patriótica Ruandesa, dirigida por Paul Kagame, ocupou as principais regiões do país e em 4 de julho entrou na capital, dando fim ao massacre e o início da demagogia por parte do imperialismo.
Kagame assumiu como vice-presidente e Pasteur Bizimungu como presidente, mas a rivalidade política entre os dois levou à renúncia de Bizimungu em 2000, com Kagame assumindo de fato o poder. Este seria eleito em 2003 com as primeiras eleições diretas desde o genocídio. Temendo o início de uma vingança, mais de dois milhões de hutus refugiaram-se na República Democrática do Congo. Atualmente, milícias hutus e tutsis mantém nesta região conflitos que já levaram à morte dezenas de milhares de pessoas.
Desde o processo de independência da Ruanda em 1962, os países vizinhos já abrigavam mais de 120 mil refugiados, a maioria tutsis vítimas da perseguição hutu. Duas décadas depois, estes refugiados se organizaram para regressar ao seu país através da luta armada. Cada uma destas tentativas resultou em mais massacres e mais deslocamentos.
No final dos anos 80, cerca de 480 mil ruandeses – cerca de 7% da população total e metade da população tutsi – tinham se refugiado, principalmente em Burundi (280 mil), Uganda (80 mil), República Democrática do Congo (80 mil) e Tanzânia (30 mil).
Esta situação foi levada ao extremo em outubro de 1990, quando a Frente Patriótica de Ruanda iniciou uma guerrilha a partir de Uganda contra o governo ruandês dominado pelos hutus. Na Uganda, a mesma Frente Patriótica havia ajudado o Exército de Resistência Nacional de Yuweri Museveni a assumir o poder. Este, assumindo o cargo de presidente, levou a reivindicação dos tutsis refugiados à mesa do governo de Ruanda, mas o poder hutu recusou o repatriamento alegando escassez de terras no país.
Com o fim da guerra em 1990 e o estabelecimento dos acordos de Arusha, após sofrer pressões internas e externas, Ruanda foi obrigada a abdicar a lei do partido único, formando um novo governo de transição composto por tutsis e hutus. Em 1993 foi finalmente reconhecido o direito dos refugiados regressarem ao país, mas os acordos foram rejeitados por facções hutus extremistas. Uma nova guerra civil estava a caminho e desta vez muito mais sangrenta.
Nada do que aconteceu a partir daí fora fruto de uma histeria coletiva, mas até mesmo os métodos de como seria executado o massacre foi discutido no detalhe, como a venda de mais de 500 mil machetes.
O desenvolvimento da situação em direção ao genocídio agravou-se em 1990, quando a Frente Patriótica Ruandesa saiu de Uganda para iniciar uma guerra civil. A França imediatamente apoiou o governo de Habyarimana e, preparando-se para o conflito, compraram armas do Egito, do Reino Unido, da Itália, da África do Sul, da China, de Israel e da República Democrática do Congo, além de outros países.
Ruanda, um dos menores e mais pobres países do mundo, transformou-se no terceiro país africano que mais importava armas. Entre janeiro de 1993 e março de 1994, graças ao financiamento francês, o país conseguiu da China mais de 580 mil machetes a preço de liquidação. Nenhum país imperialista, muito menos os EUA, se colocou contra estas movimentações e não impuseram nenhuma medida que impedisse o massacre.
A ONU (Organização das Nações Unidas), a OUA (Organização para a Unidade Africana) e alguns governos decidiram iniciar um diálogo com Habyarimana e a Frente Patriótica para discutir o que se tornaria nos acordos de Arusha. Cada representante assinou um Tratado de Paz que na realidade não serviria para nada.
A perseguição contra os tutsis foi aumentando a cada dia. Controlada pelo clã Akazu, ligado à mulher de Habyarimana, a imprensa local criticou duramente os acordos e criou um veículo que se tornaria símbolo do ódio. Paralelamente ao recrudescimento da violência, a missão da ONU, enviada a Ruanda para supostamente fazer valer as decisões do Tratado, foi totalmente inútil.
Na véspera da chegada dos capacetes azuis, o Exército do vizinho Burundi ameaçava derrubar do poder o presidente hutu Ndadaye. Mais de 50 mil pessoas, a maioria hutus, foram mortas. Outros massacres tutsis estavam marcados na história. Em 1972 foram mortos pelo menos 200 mil hutus, seguido de um golpe de Estado.
A crise em Burundi aprofundou ainda mais os conflitos étnicos na Ruanda. Para o general que comandava as tropas da ONU, a única solução aparente para dar fim a um genocídio em curso era impedir o suprimento de armas, estabelecer uma missão multinacional de estabilização e a proteção de todos os civis e líderes políticos. Ele afirma até hoje que fez incontáveis pedidos à instituição, mas jamais fora ouvido.
A morte do presidente Habyarimana – não se sabe por quem – era o que faltava para se iniciar uma solução final contra a população tutsi. Os já formados esquadrões da morte, parte do exército e a ajuda financeira da França resultaram na morte de cerca de um milhão de pessoas.
Enquanto isso, os soldados da ONU apenas olhavam e se importavam mais em proteger os civis estrangeiros. A maioria dos soldados voltaria para casa após a morte de dez capacetes azuis no dia seguinte da morte do presidente. Apenas 400 soldados foram mantidos em Ruanda, a maioria da Tunísia e de Gana, mas o genocídio só foi interrompido com a ação da Frente Patriótica e sua vitória na guerra civil.
O imperialismo mundial acompanhou a crise e não moveu um dedo sequer. Sua única preocupação é justificar a falta de atitude sob, no máximo, o disfarce da mea culpa, sendo que na verdade estes países não foram nem cúmplices, mas muito mais participantes indiretos do massacre.
O presidente dos EUA na época, Bill Clinton, e o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, afirmavam na imprensa terem feito todo o possível. Clintou chegou a desculpar-se diante do mundo inteiro afirmando que não tinha idéia do que estava acontecendo em Ruanda. A Bélgica, antigo dono de Ruanda, também desculpou-se e acusou a ONU e o Vaticano de não terem feito nada. A Igreja durante o massacre estava firmemente aliada aos hutus, apesar de centenas de padres e freiras teriam sido assassinados a golpe de facão.
No entanto, o único país que não fez questão de fazer mea culpa foi a França, que sustentou as milícias hutus durante todo o período que culminou na morte de Habyarimana e, depois, organizou a fuga dos responsáveis pelo massacre.
Desde o genocídio de 1994, mais de três mil pessoas foram julgadas e algumas condenadas, mas os verdadeiros responsáveis são vistos ainda hoje como paladinos da justiça, justamente aqueles que nada fizeram para impedir um dos acontecimentos mais trágicos da história e que até hoje não foi resolvido.
Quem está por trás do genocídio
A escassez das terras e a dependência econômica de Ruanda fomentaram os conflitos étnicos. O agente ativo desta polarização é o imperialismo. A fraca economia do país, sustentada pela exportação do café, entrou em colapso com a queda da commodity em 50%, que levou o país a perder 40% de sua renda. Uma crise alimentar engoliu Ruanda em sua pior crise dos últimos 50 anos, o ingrediente que faltava para a eclosão de novos conflitos, pois ao mesmo tempo, o governo gastava altas somas em equipamentos militares.
De acordo com Linda Melvern, uma jornalista britânica que teve acesso a documentos oficiais, o genocídio foi detalhadamente planificado. No início do massacre, a tropa ruandesa era composta por 30 mil soldados (um membro por cada dez famílias) e organizados por todo o país com representantes em cada um dos vizinhos.
O genocídio foi financiado, em grande medida, com o dinheiro oriundo de supostos programas de ajuda internacionais, como o financiamento do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) através do Programa de Ajuste Estrutural. Calcula-se que US$ 134 milhões foram gastos só na preparação do genocídio, sendo US$ 4,6 milhões gastos somente com machetes, enxadas, machados, lâminas e martelos.
Quem fornecia todas essas armas? Quem se responsabilizou em ocultar um evidente marcha para um extermínio étnico?
O atual primeiro-ministro de Ruanda, Jean Kambanda, revelou que o genocídio foi discutido abertamente em reuniões de gabinete, com declarações de ministros "pessoalmente a favor de conseguir livrar-se de todo os tutsis”. “Sem os tutsis todos os problemas de Ruanda desapareceriam".
A comissão que estuda o genocídio em Ruanda de 1994 acusou formalmente vários dirigentes franceses, incluindo políticos e militares, de terem participado diretamente do massacre.
Um informe publicado em agosto do ano passado acusa, dentre outros, o ex-primeiro-ministro, Dominique de Villepin, e o ex-presidente, François Mitterrand, de participarem da execução da etnia tutsi.
Foram relacionados ao todo 33 nomes - 13 políticos e 20 militares. A comissão de investigação ruandesa sobre o papel da França no genocídio - cujo documento tem mais de 500 páginas - concluiu que a França estava "a par dos preparativos e participou nas principais iniciativas e em sua execução".
"Vários militares franceses cometeram eles mesmos assassinatos de tutsis e de hutus acusados de esconder tutsis. Os militares franceses também cometeram inúmeras violações com sobreviventes tutsis".
"O apoio francês foi político, militar, diplomático e tinha base logística", indica o informe”.
"Ante a gravidade dos fatos alegados, o governo ruandês ordenou às instâncias competentes a empreender as ações necessárias para levar os responsáveis políticos e militares franceses incriminados a responder por seus atos ante a justiça", conclui o texto (AFP, 6/8/2008).
Anteriormente, o governo de Ruanda já havia acusado a França de ter encoberto sua colaboração no treinamento dos milicianos hutus que assassinaram em torno de 800 mil pessoas.
Ruanda rompeu relações diplomáticas com a França desde o final de 2006, quando o juiz francês Jean-Louis Bruguière acusou o presidente ruandês, Paul Kagame, de ter participado do atentado que derrubou o avião do ex-presidente Juvenal Habyarimana, sendo o estopim para o genocídio.
Os massacres de 1994 não são frutos de uma explosão de loucura coletiva, mas de uma intervenção ativa do imperialismo com sua política criminosa de dominação e exploração dos países coloniais.
http://www.pco.org.br/historia/os-acontecimentos-que-levaram-ao-massacre-dos-tutsis/iipa,p.html