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Um regime político marginal e anti-constitucional

Foi a traição à Constituição assumida deliberadamente, e como sistema, pela «classe política» nascida do novembrismo que marcou o lamentável percurso de Portugal até ao estado degradante em que se encontra

por José Goulão (PT)

AbrilAbril - 20 de abril, 2023

https://www.abrilabril.pt/nacional/um-regime-politico-marginal-e-anti-constitucional

Durante as últimas décadas, uma «classe política» sem referências humanistas, volúvel e estrangeirada – o adjectivo mais adequado é apátrida –, usurpou a democracia e montou um regime económico, político, social e mediático em Portugal no qual se comporta como uma entidade marginal em relação à Constituição que jurou respeitar. À entrada das celebrações do 50.º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, o povo português é governado segundo práticas anti-constitucionais.

Passaram-se 47 anos sobre a aprovação da Constituição da República, mas da efeméride poucos se lembraram. A data foi ignorada pelos poderes públicos, a «classe política» continuou a comportar-se como se tal coisa não existisse, a «sociedade civil» acha que tem muito mais com que preocupar-se; apenas algumas organizações cívicas – «sectores afectos ao 25 de Abril», como se diz na CNN em tom de quem fala de extraterrestres – evocaram a vigência, a actualidade e o carácter normativo da lei das leis do país.

Em boa verdade, será mesmo que a Constituição existe? Serve realmente como base de funcionamento do regime político, económico e social ou, para os órgãos de poder, não passa de um estorvo para cumprir ou desrespeitar consoante as circunstâncias que lhes interessam?

Da Constituição da República fala-se quando chega algum veto de Belém sobre um assunto específico, quantas vezes avulso e aleatório transformado em matéria transcendente pela promiscuidade entre a comunicação social e algumas agendas políticas, fazendo então mexer o sonolento Tribunal Constitucional. Ou então emerge episodicamente através das mesmas traficâncias político-mediáticas quando o assunto é a sua própria revisão, deixando-se bem claro que o intuito é fabricar um texto constitucional à medida dos interesses, caprichos e arbitrariedades do regime estrangeirado, em vez de ser este a respeitar a Lei Fundamental do país. Ou seja, uma política à la carte para as ganâncias oligárquicas de sempre e para quem a Constituição de Abril se atravessou abusivamente nos caminhos atapetados da Constituição salazarista de 1933. Ganâncias, essas, entretanto transnacionalizadas ao ritmo dos objectivos totalitários do globalismo, que sempre foram determinados por interpretações da Lei Fundamental promulgada em 25 de Abril de 1976 segundo os apetites revanchistas a que deram largas a partir de 25 de Novembro de 1975.

Foi essa traição à Constituição assumida deliberadamente, e como sistema, pela «classe política» nascida do novembrismo que marcou o lamentável percurso de Portugal até ao estado degradante em que se encontra: nem «soberano», nem «indivisível» – porque fundido e apagado em instâncias antidemocráticas como a União Europeia e a NATO – e apenas formalmente correspondendo ao «poder do povo». A legalidade democrática foi subvertida.

Note-se que a democracia não necessitou de ser adjectivada na Constituição em vigor, a não ser pelo termo «participativa»; no entanto, a «classe política» que usurpou esse poder soberano aos portugueses, mantendo-o como refém, designa o sistema como «democracia liberal», isto é, uma mistela praticamente esvaziada do seu conteúdo democrático, ignorando ostensivamente os princípios libertadores do 25 de Abril, importada dos «amigos» e «aliados» que anularam o direito internacional ao instituírem uma «ordem internacional baseada em regras» receitadas de Washington – a quem se deve a paternidade do próprio novembrismo.

Do preâmbulo ao derradeiro artigo

A releitura da Constituição da República, que se recomenda a todos os cidadãos para recordarmos, reactivarmos e defendermos a riquíssima e bem viva base de trabalho e mobilização legada pelo 25 de Abril de 1974, deve fazer-se cotejando-a, a todo o momento, com a realidade de hoje em Portugal. É verdade que se trata de um roteiro penoso e revoltante tendo em conta a prática dos poderes políticos desde o primeiro governo constitucional ao actual; porém, ao mesmo tempo trata-se de um exercício aconselhável para definir as acções de cidadania indispensáveis de modo a que o constitucionalismo seja reposto no país. E não, a revisão constitucional não é a solução, mas sim o respeito íntegro pela Constituição em vigor. Portugal deixará assim de ser uma potencial cópia de «parceiros» e «aliados»? É natural que assim seja: o 25 de Abril também foi único, está vivo e não é cópia de coisa alguma.

Não é a Constituição que tem de ser revista; o regime é que tem de ser devolvido pelo povo às suas origens constitucionais, sistematicamente espezinhadas.

Não é tolerável qualquer enviesamento do espírito da Constituição em vigor, definido desde logo no preâmbulo, sob pena de permitirmos que o 25 de Abril seja definitivamente enterrado, como pretende a «classe política» para, no fundo, terminar o que Novembro começou e os «amigos» e «aliados» impõem. Com tais «amigos» dispensam-se os inimigos.

O preâmbulo estabelece que a Constituição «corresponde às aspirações reais do país» assegurando «o primado do Estado de direito» e a abertura do «caminho para uma sociedade socialista» no sentido de «um país mais livre, mais justo e mais fraterno». O espírito de Abril sintetiza-se nestas poucas palavras, suficientes, porém, para expurgar do cenário político, económico e social em Portugal aquilo a que chamam «democracia liberal», realmente uma artimanha corrupta neoliberal que vai esbatendo qualquer exercício democrático.

Deduz-se com facilidade que, logo após a implantação dos «governos constitucionais», o caminho seguido desde o soarismo e o cavaquismo ao passismo/portismo e costismo, passando por outros lamentáveis ismos como o guterrismo, socratismo e barrosismo/santanismo, com chancela PS ou PSD e respectivas coligações fraternas, tem sido contrário ao definido pela Constituição.

A governação do país nos últimos 47 anos é uma permanente guerra contra o espírito e a letra da Lei Fundamental do país em matérias tão fulcrais como a soberania e independência nacional, a prática da democracia, a participação popular, o respeito pelas pessoas, a família, o trabalho, a economia, a habitação, educação e saúde, a juventude, cultura, a liberdade de opinião e imprensa, sem esquecer o desprezo pelos mais idosos, a “peste grisalha”, definição própria da sociopatia cultivada no PSD e adjacências, entre as quais o pequeno gauleiter doutorado em traulitada hooliganística futeboleira.

Ou seja, as práticas e os comportamentos dos governos são anti-constitucionais. E o órgão fiscalizador, o Tribunal Constitucional, permite-o por inércia e omissão principalmente em relação ao espírito bem claro da Constituição – ou não emanasse ele da clique de duas caras, PS e PSD, senhora do tráfico de influências no interior da tribo da «classe política».

No curso da leitura do articulado constitucional é impossível não encalhar, até pelas circunstâncias da actualidade, nas tropelias cometidas em relação ao conteúdo do artigo 7.º, sobre as relações internacionais. Qualquer semelhança entre o texto constitucional e as práticas governamentais seria pura coincidência, que nem sequer se verifica. Aqui se recomendam os princípios do respeito pela «independência nacional», os «direitos humanos» e «dos povos», a «igualdade entre os Estados», a «solução pacífica dos conflitos internacionais», a «não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados», a «abolição do colonialismo, do imperialismo e de quaisquer outras formas de agressão», a «dissolução dos blocos político-militares», o «estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos».

Não cabe aqui esmiuçar todos estes aspectos porque cada leitor e leitora encontrará facilmente riquíssimos exemplos das violações grosseiras dos princípios lembrados. Uma nota apenas: cultiva-se a paz enviando tropas e armamento para guerras ilegais, coloniais e de rapina?

Basta citar, sem necessidade de ser exaustivo, o desrespeito activo dos governos constitucionais portugueses pelos direitos de povos como o palestiniano, o do Saara Ocidental, os que são vítimas de guerras apoiadas por Portugal – com participação directa em algumas delas como Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Ucrânia e África Central – os da Síria, do Iémen, da Somália, da Líbia; pelos deveres objectivos rejeitados perante os milhões de refugiados desses conflitos e da subsistência do colonialismo; e a inércia perante tantas outras situações degradantes que Portugal olimpicamente ignora como a fome, a deslocação forçada, o roubo de terras e riquezas naturais de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

As causas desta situação, num quadro geral ameaçador como nunca para a existência do planeta, são o poder imperial e unipolar dos Estados Unidos da América, o correspondente colonialismo em que a União Europeia está enterrada sem quaisquer escrúpulos, o reforço do único bloco militar – que tem ambições expansionistas de cariz global –, a prevalência da «ordem internacional» norte-americana «baseada em regras» à revelia do próprio direito internacional; a estas circunstâncias, cuja rejeição exige coragem e dignidade que não estão ao alcance de governantes vegetativos e sem brio nacional, soma-se a militarização operacional e cultural da sociedade ditada pelos senhores da guerra ao serviço das oligarquias sustentadas, em grande parte, pelas intoxicantes actividades mediáticas e de entretenimento, pela indústria da morte, a mais florescente do globo a par da produção e tráfico de estupefacientes – muitas vezes fundindo-se e confundindo-se.

Avaliemos os comportamentos dos governos portugueses em relação a cada um destes aspectos e ficamos claramente identificados sobre o grau de incompatibilidade entre as suas práticas e a Constituição da República.

Ilustremos ainda o teor das actuações governamentais através de exemplos aparentemente avulsos mas que funcionam como marcos indisfarçáveis da guerra contra a Lei Fundamental do país. É o caso do acolhimento nos Açores da cimeira que lançou a invasão e guerra de destruição contra o Iraque, em 2003, com base em mentiras hoje universalmente reconhecidas, mas que, nem por isso, deixaram de funcionar como modelo para outras agressões; do reconhecimento e até acolhimento do fascista Juan Guaidó como «presidente» da Venezuela na sequência de uma tentativa de golpe de Estado operada pelos Estados Unidos; da participação portuguesa no roubo de ouro e de parcelas da reserva de divisas da Venezuela, das reservas monetárias russas em bancos europeus, de fundos do Banco Central do Afeganistão; da agressão aos interesses e qualidade de vida dos portugueses em consequência das sanções ilegais e arbitrárias contra a Rússia impostas por exigência, logo cumprida, dos Estados Unidos da América; do apoio e conivência com sanções criminosas e ilegais contra vários povos como os do Irão, Venezuela (prejudicando centenas de milhares de emigrantes portugueses), Afeganistão, Síria, Iraque: não se ouviu em Lisboa ou nos círculos internacionais uma qualquer palavra portuguesas de repulsa quando a secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, declarou que o assassínio de meio milhão de crianças iraquianas por causa das sanções internacionais ao regime de Bagdade «valeu a pena».

Em relação ao(s) bloco(s) militar(es), os governos portugueses fazem exactamente o contrário do que determina a Constituição: em vez de trabalharem no interior da NATO pela sua dissolução e a procura de soluções pacíficas para os conflitos, preferem exibir-se entre os mais proeminentes apoiantes das políticas de guerra e votam favoravelmente sempre que cada novo país é anexado pela aliança, reforçando o seu carácter agressor e expansionista.

O artigo 275.º da Lei Fundamental dita que as Forças Armadas «estão ao serviço do povo português». Na realidade não estão: submetidas, naturalmente, ao poder político tornaram-se um ramo quase exclusivamente ao serviço da NATO e de aventuras militares da União Europeia. Ora os interesses do povo português nada têm a ver com o expansionismo e as guerras da NATO e o colonialismo da União Europeia.

A inexistência nacional

Sem um autêntico banco central, sem moeda, sem poder sobre os mecanismos determinantes da economia e comércio; sem autorização para decidir, em última instância, sobre o Orçamento de Estado; submetido a fiscalizações periódicas sobre despesa, dívida e défice – pairando a bestialidade da troika, FMI e Banco Mundial sobre a vida das instituições, das famílias e dos cidadãos; com indústria, agricultura – a extinção da produção de cereais é revoltante – e pescas residuais e estruturas fundamentais do Estado dissolvidas no magma federalista não assumido mas que molda a União Europeia; com a jurisdição sobre as Forças Armadas depositada pelo governo no aparelho belicista da NATO; com a privacidade dos cidadãos e os mecanismos da chamada «segurança nacional» entregues a instituições policiais transnacionais sem rosto, nada transparentes e que desembocam, regra geral, no aparelho de espionagem universal montado pelos Estados Unidos da América, Portugal não passa de um holograma, uma insignificante província do espaço territorial federalizado da Europa, gerido por figuras obscuras, não eleitas, ao serviço de oligarquias apátridas transnacionais. Até a pobre bandeira foi obrigada  a partilhar os espaços públicos com o pavilhão federalista. Volta Miguel Vasconcelos, estás perdoado.

Acresce que a banca nacional deixou de o ser porque foi engolida pelos complexos financeiros e especulativos sem fronteiras; e a opinião pública é formatada pelos conglomerados monopolizadores dos terminais de comunicação – e também sem fronteiras.

Bem pode a Constituição da República determinar «a não concentração da titularidade dos meios de comunicação social». O que existe, na realidade, é um monopólio do controlo das mentes manobrado por centrais de propaganda transnacionais e globalistas. Saberão muitos e renomados jornalistas de hoje, capazes de confundir deontologia com um tratamento dentário, que a Constituição lhes garante a «intervenção na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social»? E que a liberdade de expressão e informação «não pode ser impedida ou limitada por qualquer tipo ou forma de censura»? O tempo do lápis azul dos abrutalhados coronéis já lá vai; agora o terrorismo censório é muito mais sofisticado, extremamente nocivo mas provavelmente indolor para a maioria da população.

Resta assim pouco espaço para ser cidadão português em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo, sem que, por outro lado, exista aquilo a que convencionou chamar-se «cidadania europeia», uma das várias falácias em que as franjas branqueadas do nazismo alemão associadas aos fanáticos arautos dos «Estados Unidos da Europa», todos amarrados pelas obrigações prescritas pelo Plano Marshall, formataram a «integração Europeia» quando a II Guerra Mundial ainda não tinha arrefecido.

Ora nada disto encaixa na Constituição da República, que deixa bem claro e fundamentado o princípio de que a independência nacional não é negociável. Nem mesmo em caso de revisão, como pode ler-se no artigo 288.º.

Recorde-se o que estabelece o artigo 3.º – 1 e compare-se com a realidade pouco atrás exposta: «A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição». E no parágrafo seguinte (2) lê-se que o «Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática». Onde está a subordinação à Constituição? Onde pára a «legalidade democrática», dependendo sempre, em  última instância, de instituições autocráticas como a União Europeia e a NATO?

Em termos dessa mesma legalidade democrática, o Estado – ou melhor, a confraria da «classe política» – nem ao menos recorreu à faculdade prevista no artigo 161.º: A Constituição «não prejudica a possibilidade de convocação e efectivação de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da união europeia».

Passaram, entretanto, a adesão à Comunidade Económica Europeia, Maastricht, a abolição da moeda nacional e a imposição do euro e o Tratado de Lisboa sem que os cidadãos portugueses pudessem dizer uma única palavra sobre essas decisões que acabaram por moldar as suas vidas de maneira nociva. «Constituição» e «legalidade democrática» são, pelos vistos, compromissos obrigatórios mas descartáveis. O regime funciona de maneira anti-constitucional.

Fraude da economia

O governo, o chefe de Estado e a maioria obrigatória na Assembleia da República – o regime manieta as organizações políticas que não acatam o neoliberalismo como ideologia única – assanham-se ainda mais contra a Constituição em matéria de economia.

O artigo 80.º, na alínea a) determina que haja «subordinação do poder económico ao poder político».

A partir da violação grosseira desta cláusula, os poderes políticos mergulham num pântano de fraude e desenvolvimento das desigualdades sociais onde florescem os mais ricos dos mais ricos. As maiores vítimas da economia à qual a «classe política» se verga são os trabalhadores, os pequenos e médios agricultores, as pequenas e médias empresas, no fundo aqueles que criam riqueza mas são desprezados pelos que vivem e governam ao serviço do casino financeiro. O neoliberalismo como regime único e indiscutível espezinha a Constituição, mas isso é o que menos incomoda a parasitária casta dirigente e os seus patrões sem pátria.

Este quadro faz, naturalmente, tábua rasa do conteúdo da alínea b) do mesmo artigo 80.º, que estabelece a «coexistência do sector público, do sector privado e cooperativo», sabendo todos nós que o Estado está impedido de concorrer em termos de igualdade e funciona para servir o sector privado tanto através das privatizações dos sectores mais lucrativos da economia – note-se que a TAP, agora que começou a dar lucro, já tem horizonte para passar a empresa privada e sem bandeira –, como da canalização de toneladas de euros dos nossos impostos para as contas dos patrões; sobretudo os mais chantagistas, quando começam a carpir que estão em dificuldades, ou seja, quando os volumes obscenos de lucros não atingem as alucinantes metas pretendidas para transferir offshore depois de «pagarem» os impostos em paraísos fiscais.

«Aumentar o bem-estar social, económico e de qualidade de vida das pessoas», «operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e desenvolvimento», «eliminar progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo, o litoral e o interior» são normas constitucionais cuja simples citação permite entender a marginalidade institucional de quem nos governa. Para o poder representam somente pias intenções.

Há mais circunstâncias comprovativas do absurdo governamental: por exemplo (artigo 81.º f), o Estado «deve assegurar o funcionamento eficiente dos mercados», «contrariar as formas de organização monopolista» e «reprimir os abusos de posição dominante». Como? O Estado «assegurar» qualquer coisa no «mercado», entidade intocável, endeusada por se regular a si própria como dogmatiza o neoliberalismo oficial? Contrariar os monopólios, isto é, desmontar, por exemplo (não exaustivo) as situações na distribuição alimentar, na actividade livreira, no domínio da comunicação audiovisual? Poderia a «civilização ocidental» tolerar heresias deste tipo?

O que dizer então sobre a exigência de «propriedade pública dos recursos naturais (quando até as águas se privatizam por simples vontade de autarquias) e dos meios de produção, de acordo com o interesse colectivo»? Não será que nessa matéria, e como regra geral, o interesse privado, e não o colectivo, é quem mais ordena no país?

A Constituição reserva, por exemplo, as estradas e as vias férreas nacionais para «o domínio público». Domínio que passa a ser uma farsa quando se entregam esses bens do povo a concessões privadas contra o povo, o mesmo acontecendo com os aeroportos (embora não sejam explicitamente citados), a distribuição de energia eléctrica, as telecomunicações, explorações mineiras e bens naturais e históricos como praias e monumentos.

Tal como as parcerias público-privadas (PPP), principalmente na saúde, são agressões ao Estado e aos cidadãos, mais uma arma disparando contra o Serviço Nacional de Saúde, filho dilecto da Constituição mas depauperado de uma maneira que os poderes desejam irremediável – pelo menos tendo em conta as práticas à vista de todos.

E será que os investimentos estrangeiros contribuem para «defender a independência nacional e os interesses dos trabalhadores», como ordena a Constituição? De que maneira as máfias do tipo da Altice, da Vinci e outras poderiam estar presentes no país respeitando estas normas – elas que medram sem leis e fazem o que querem de governos sem coluna vertebral?

Desprezo pelo trabalho e os trabalhadores

Interesses dos trabalhadores. Observemos então o desprezo com que são tratados pelos inimigos da Lei Fundamental.

«Todos têm direito ao trabalho», lê-se no artigo 58.º, certamente para surpresa do imenso exército de desempregados, trabalhadores precários, contratados a prazo, despedidos sem justa causa, escravos rurais, da construção e outras situações todas elas ilustrativas de como o poder económico-político preza «os direitos humanos». Quando as pessoas não passam de números, dados estatísticos e ferramentas económicas a quem se exige o máximo de eficácia com um mínimo de retribuição que outro comportamento poderia esperar-se?

Também é constitucionalmente obrigatória «a execução de políticas de pleno emprego». Impossível! O neoliberalismo não vive sem uma imensa bolsa de desempregados. 

Além disso, o trabalho deve ser organizado «de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar». Sem esquecer que «trabalho igual salário igual» e «a retribuição do trabalho» deve ser assegurada «de forma a garantir uma existência condigna»; além de o Estado «dever adaptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria».

As práticas governamentais impondo, de facto, congelamento de salários e pensões (e a perda constante do seu poder de compra), cargas horárias esclavagistas, políticas desumanas de turnos de trabalho atropelam deliberadamente a Constituição, artigo após artigo. Agora o executivo distribui migalhas irrisórias quando lhe apetece, tudo como fuga à obrigação constitucional de promover salários dignos.

Comentários dispensam-se, a comparação simples entre a Lei Fundamental e a realidade é elucidativa. Anote-se apenas que a constante «liberalização do mercado de trabalho», sempre insaciável para as associações patronais e seus serviçais no Parlamento e no governo, sendo doutrina básica do neoliberalismo não cabe na Constituição.

Da mesma maneira são absolutamente vazias de conteúdo, exercícios de propaganda cruel e sintomas graves de sociopatia, as homílias dos poderes públicos garantindo a dignidade e o bem-estar das famílias. Por exemplo, onde estão a promoção «da independência social e económica dos agregados familiares» e da «conciliação da actividade profissional com a vida familiar»? E «o direito à segurança económica das pessoas idosas»?

Ainda em relação ao trabalho, recordem-se normas constitucionais como «as comissões de trabalhadores exercem o controlo de gestão nas empresas», «participam no processo de reestruturação das empresas», na «legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplam os respectivos sectores». Ou, como determina o artigo 89.º, «a participação efectiva dos trabalhadores na gestão do sector público». Surpresa das surpresas: tem de haver um «limite máximo da jornada de trabalho» e «é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos e ideológicos». Um cemitério de letras mortas.

A falsificação da democracia

«O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição», determina o artigo 108.º.

O primeiro-ministro e os membros do governo leram isto? Os deputados da maioria obrigatória conhecem esta norma básica do seu estatuto? Ao chefe de Estado, que jurou «cumprir e fazer cumprir a Constituição», escaparam-lhe estas palavras, talvez perdidas algures no meio das suas leituras enciclopédicas?

«Povo», na verdade, já não existe, desmembrado entre «público» (algo que assiste mas não intervém), contribuintes e consumidores. Assim como os trabalhadores se transformaram em «colaboradores» – companheiros de jornada dos patrões, membros da santa família empresarial, recompensados com gorjetas de boa vontade pingando dos lucros sem os danificar.

O povo, nos termos da Constituição, elege os seus representantes para exercerem o poder; e nas eleições e campanhas eleitorais há «igualdade de oportunidades e tratamento das diversas candidaturas».

A sério? Relembrem-se das campanhas eleitorais, das respectivas coberturas nos meios de comunicação social, dos debates selectivos onde se parte do princípio de que apenas dois partidos (com alguns apêndices conjunturais) – unificados pela ideologia neoliberal – podem ser contemplados com o exercício do verdadeiro poder governativo e parlamentar. O «arco da governação», como um acérrimo inimigo da Constituição, Paulo Portas, definiu nos tempos do protectorado da troika. Avaliem as maneiras díspares como os partidos são tratados pelo aparelho político-económico-mediático, endeusados ou insultados consoante se identificam ou não com o regime único, e extraiam conclusões.

Assim sendo, o cidadão vota de tempos a tempos, condicionado pela distorção do ambiente envolvente de maneira favorecer os partidos «vocacionados» para o poder – que ignoram os seus próprios programas de governo talvez ainda mais do que a Constituição – e perde imediatamente a pista do seu voto, utilizado a belo prazer pela «classe política» e o sistema económico-político-mediático do fundamentalismo capitalista. Um território pantanoso, opaco, onde a democracia se vai afundando.

Não havendo igualdade de oportunidades não há democracia real; talvez seja isso a «democracia liberal», na verdade neoliberal e residualmente democrática. O único adjectivo para qualificar a democracia usado na Constituição é o de «participativa», coisa a que o neoliberalismo, vivendo de apascentar carneiros, é alérgico. Entre democracia participativa e democracia liberal vai a diferença entre Abril e o modelo importado, delineado depois de Novembro pela continuidade harmónica entre o soarismo (socialismo «na gaveta», chegada do FMI e primeira liberalização laboral, com instauração, designadamente, dos contratos a prazo a que prometera não recorrer) e o cavaquismo (revanchismo das reprivatizações e regresso da cleptocracia oligárquica das seitas financeiras do antigamente). A integração europeia, sem consulta aos portugueses, a subserviência sem escrúpulos à NATO e o lançamento da moeda nacional para o lixo fizeram o resto até ao estado degradante, belicista e anti-constitucional em que vivemos.

Provavelmente, a situação mais humilhante para o povo português e a independência nacional é a obrigação de o Orçamento de Estado, instrumento fundamental para decidir sobre a vida de todos os cidadãos, só ter existência «legal» depois de receber a chancela da Comissão Europeia. O artigo 161.º da Constituição determina: É competência política e legislativa da Assembleia da República «aprovar as leis das grandes opções dos planos nacionais e o Orçamento do Estado, sob proposta do governo». No entanto, quem tem a última palavra na validação do documento são os tecnocratas de Bruxelas que ninguém elegeu e actuam como meras correias de transmissão dos potentados económico-financeiros transnacionais que asseguram a «civilização ocidental». Os mecanismos autocráticos, totalitários mesmo, sobrepõem-se às vias democráticas, a ditadura da UE liquida a independência nacional. O processo é perverso porque a elaboração e aprovação do Orçamento pelo governo e o Parlamento estão viciadas à partida pelo facto de a lei ter de passar obrigatoriamente, em derradeira instância, pelas malhas inquisitoriais dos obscuros gabinetes da Comissão. Nem que para isso tenham de cair governos.

A última fronteira

Agora que começam a celebrar-se os 50 anos de Abril é altura propícia para restaurar princípios da Revolução, de conteúdo verdadeiramente popular, que não se extinguiram, apenas estão amordaçados. É possível encontrá-los a todos na Constituição: por isso o regime usurpador a odeia e pretende extirpar da realidade nacional, substituindo-a por outra copiada dos manuais neoliberais.

Esta é a fronteira em que os portugueses se encontram: entre a Constituição e o capitalismo autocrático e sem lei; entre a independência nacional e a sabujice aos «amigos» e «aliados»; entre o 25 de Abril e os que pretendem erradicá-lo de vez.

Defender a Constituição com unhas e dentes é talvez uma das últimas barreiras contra a selvajaria revanchista, neoliberal e autocrática. É um objectivo que exige disponibilidade, coragem e o abandono do torpor induzido de maneira a alcançar uma mobilização essencial para que Portugal recupere a dignidade, o povo de Abril volte a ser povo e a ter o poder, então sim em democracia sem adjectivos, a não ser o de «participativa».

José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP.

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