A sociedade secreta de Bush e Kerry
Por Pedro Ribeiro
Público - 26 de Setembro, 2004
https://www.publico.pt/2004/09/26/jornal/a-sociedade-secreta-de-kerry-e-de-bush-193413
Não há muitos pontos em comum nas biografias de George W. Bush e John Kerry, os dois candidatos às eleições presidenciais dos Estados Unidos da América (EUA) que se disputam em Novembro. Mas há algumas coincidências.
A mais interessante tem a ver com o seu currículo universitário.Tanto Bush como Kerry frequentaram Yale, uma das instituições da "Ivy League", a elite das universidades americanas. Mas não só os dois estiveram em Yale, ambos fizeram parte do clube mais misterioso e influente dentro de Yale: a Skull & Bones, uma sociedade secreta que entre os seus membros conta três presidentes dos EUA. E tanto Bush como Kerry mantêm ligações à Skull & Bones. Alexandra Robbins, autora de "Secrets of the Tomb", um livro sobre as origens e ramificações do clube, disse à Pública: "Desde que se tornou Presidente, Bush instalou membros da Bones em posições proeminentes da sua Administração.
Provavelmente não é coincidência que este seja o governo com mais secretismo desde pelo menos a era de [Richard] Nixon."A Skull & Bones foi fundada em 1832. Era uma espécie de "filial" de uma organização semelhante na Alemanha. Ao longo de mais de século e meio, passaram por lá algumas das figuras mais importantes da história americana (ver texto mais pequeno).
A lista de "Bonesmen" inclui três residentes da Casa Branca: William Howard Taft, George H. Bush e George W. Bush. Mas também há outros políticos de renome, diplomatas, banqueiros, empresários, artistas e académicos.Os membros da Skull & Bones são todos "seniors" - estudantes de Yale no seu último ano. Todos os anos, os 15 membros escolhem os seus 15 sucessores, entre os cerca de 1400 estudantes da classe seguinte.
Ser membro da Skull & Bones é pertencer a uma elite dentro de uma elite. Yale é uma das universidades mais prestigiadas do mundo; pertencer à Skull & Bones é uma distinção dentro de Yale. Mas para que é que serve o clube? Isso depende das opiniões. Para uns, a Skull & Bones é pouco mais do que o equivalente americano a uma das repúblicas universitárias de Coimbra, uma tertúlia de amigos relativamente inocente. Para outros, é uma rede de influências - um meio de formar contactos úteis para a vida profissional futura. Para outros ainda, é uma cabala sinistra cujos membros controlam a política, a economia e os "media" dos EUA. Esta teoria da conspiração deu origem a uma pequena indústria de livros, "sites" na Internet e até filmes de Hollywood ("The Skulls", de 2001, retrata uma misteriosa e maligna sociedade secreta claramente inspirada na Skull & Bones; o argumento foi escrito por um ex-estudante de Yale).
O que é certo é que o próximo Presidente dos EUA será um membro da Skull & Bones. John Kerry fez parte da sociedade secreta em 1966; George W. Bush em 1968. Como é que este clube tão restrito conta nas suas fileiras com os dois principais candidatos à Casa Branca? Há outras sociedades secretas em Yale nos mesmos moldes que a Skull & Bones. Por exemplo, a Scroll & Key (que incluiu membros da família Rockefeller ou o célebre pediatra Benjamin Spock) e a Book & Snake (que incluiu o filho do magnata Henry Ford e o jornalista Bob Woodward).
Todos estes clubes têm elementos em comum. O principal é a ideia de exclusividade: pertencer a uma sociedade secreta é uma forma de um estudante de Yale ganhar credenciais sociais. Só determinados indivíduos é que são escolhidos para um clube como a "Skull & Bones": os que se destacaram no desporto (a S&B costuma incluir o capitão das equipas de basebol ou futebol de Yale), os líderes no activismo político estudantil (será o caso de John Kerry), os estudantes que se destacam particularmente a nível académico, ou os filhos de "boas famílias" que tenham ancestrais na S&B (será o caso de George W. Bush).
Outro elemento das sociedades secretas é um certo misticismo pagão, com elementos quase folclóricos que chegam a lembrar o "black metal". Por exemplo, a sede da Skull & Bones (o nome quer dizer "caveira e ossos") no "campus" de Yale é designada como "o túmulo". Na sua origem, o clube venerava Eulogia, a deusa grega da oratória. O símbolo ou "código" da Skull & Bones é o número 322 - uma referência a Demóstenes (o grande orador grego, que morreu em 322 A. C.) ou à sua data de fundação (1832; o outro "2" seria uma referência ao facto de a Skull & Bones ser uma filial de um clube alemão).
Todos os membros da Skull & Bones ganham uma alcunha - normalmente tirada de figuras mitológicas ou literárias (Zeus, Thor, Sancho Pança), normalmente descritivos da personalidade de cada membro. Por exemplo, o membro com mais experiências sexuais é Magog; o mais inexperiente é Gog (George H. Bush era um Magog; o seu filho, George W., nunca chegou a escolher uma alcunha e ficou conhecido como "Temporário").
O clube encoraja tropelias típicas de uma república - por exemplo, há uma lenda de que nos anos 30 alguns "Bonesmen" desenterraram a caveira do célebre chefe apache Gerónimo, e que ela continua exibida num local de destaque dentro do "túmulo" do clube.
Os rituais da Skull & Bones também têm algo do formalismo da praxe académica em Portugal - e até dos seus excessos. Em 2001, o jornalista Ron Rosenbaum filmou pela primeira vez uma cerimónia de iniciação da Skull & Bones; o seu relato apareceu nas páginas do "New York Observer" e na televisão ABC. Rosenbaum descreve uma cerimónia cheia de rituais pseudo-satânicos, com muitas alusões brejeiras - por exemplo, a certa altura um dos iniciados gritava "vou enrabar-te como o George ao [Al] Gore" (a cerimónia foi pouco depois das eleições de 2000, em que o "Bonesman" Bush venceu Al Gore, aluno da odiada rival universidade de Harvard).
Noutro artigo publicado nos anos 90 na revista "The New Republic", um ex-"Bonesman" compara os rituais de iniciação a "uma coisa saída dos livros do Harry Potter". Mas há um lado mais sério na Skull & Bones. Afinal, deste clube saíram algumas das figuras mais influentes do século XX nos EUA.
A família Bush em particular tem grandes laços na Skull & Bones; o patriarca Prescott Bush foi membro; o seu filho George H. também; tal como o seu neto, o actual Presidente. Além deles, também há irmãos, tios e primos de George W. Bush que passaram pela Skull & Bones."Bush virou-se para a Skull & Bones repetidamente em todos os pontos da sua carreira profissional - para poder, ligações, dinheiro. Ele não teria sequer entrado em Yale se o pai e o avô não tivessem sido membros da Bones", afirma Alexandra Robbins. As notas dele eram fracas, mas metade do comité de admissão que o aceitou era composto por 'Bonesmen'.""É interessante que Bush fale tão abertamente do seu desdém por Yale e pelo 'establishment' elitista" das universidades do Nordeste dos EUA, continua Robbins. "E no entanto ele recorreu à Bones, a elite dentro da elite em Yale, repetidas vezes."Estes laços não se limitam ao ano em que os membros da Skull & Bones são "seniors"; duram toda a vida. Algumas das ligações são meramente simbólicas: David Thorne, antigo cunhado de John Kerry, contou ao "Washington Post" que o candidato à presidência continua a usar "322" como código.
Outras são mais importantes. Vinte anos depois de ter passado pela Skull & Bones, e quando já era um senador influente, John Kerry deu-se ao trabalho de contactar pessoalmente Jacob Weisberg, um promissor estudante de Yale, para o convencer a juntar-se à Skull & Bones. Weisberg - que hoje é editor da revista online Slate - recusou, porque na altura a Skull & Bones ainda discriminava as mulheres (só a partir de 1991, depois de um processo interno demorado e controverso, é que a S&B passou a ter membros do sexo feminino).
É curioso que Kerry, que na altura já era um político de primeira linha nos EUA, se envolvesse directamente no recrutamento de novos membros para a sua antiga sociedade secreta. Mas a história, ao contrário de outros mitos sobre a Skull & Bones é verídica; Weisberg confirmou a sua autenticidade à Pública. "Os antigos membros da Bones envolvem-se frequentemente no recrutamento ou nas cerimónias de iniciação", acrescentou Alexandra Robbins. "Essa é a única história que eu conheço de um envolvimento tão profundo de Kerry.""Ele valoriza a sua experiência na Bones por causa dos amigos próximos que fez [um ex-cunhado, um camarada de armas morto no Vietname]. Mas Kerry não subiu à custa das suas ligações. Ele era apenas um estudante universitário tímido que aproveitou a oportunidade de se abrir a 14 novos amigos.""Bush é que se vê como um verdadeiro 'Bonesman'", continua Robbins, que também estudou em Yale nos anos 90, e fez parte de uma outra sociedade secreta.
Não foi, contudo, fácil arranjar outros antigos alunos de Yale dispostos a falar sobre a Skull & Bones. Todos os 'Bonesmen' com que a Pública tentou falar recusaram-se liminarmente a fazer quaisquer comentários. Uma reacção típica foi a de Lanny Davis, membro da Skull & Bones em 1967 que nos anos 90 trabalhou na Administração de Bill Clinton: "Não posso ajudá-lo nisso. Boa sorte."Esse secretismo é compreensível - afinal, a Skull & Bones é uma sociedade secreta. Mas é um segredo de polichinelo. As listas de membros do clube são fáceis de obter.
É normal que a Skull & Bones cultive esta ambiguidade: o seu prestígio depende em grande parte da aura gerada à sua volta.Os dois candidatos admitem ter sido membros da Skull & Bones, mas não fazem mais comentários. O jornalista Tim Russert, da NBC, entrevistou no ano passado tanto Bush como Kerry, e perguntou-lhes sobre o clube. Resposta de Bush: "É tão secreto que não podemos falar dele." Resposta de Kerry: "Não posso dizer muito, porque é segredo."O secretismo contribui para as teorias da conspiração. Há uma longa bibliografia de obras que descrevem a Skull & Bones como um "poder oculto" que controla a América e o mundo. Segundo as teorias da conspiração, a Skull & Bones tem relações com o nazismo; está em aliança ou em combate mortal com a Maçonaria; é um ramo da rede mundial dos "Illuminatti"; é dominada por um projecto sionista ou tem uma inspiração anti-semita. E no entanto resta a evidência: haverá nos EUA pouco mais de uns 700 ou 800 indivíduos ainda vivos que passaram pela Skull & Bones, o equivalente a uns 0,0003 por cento da população dos EUA. E é destes 0,0003 por cento que saíram os dois candidatos à presidência dos EUA este ano.
Poderá acontecer dentro de 20 anos outra eleição entre dois Bonesmen? Alexandra Robbins acha que sim. "A Skull & Bones é provavelmente a mais poderosa rede de ligações no país.""[Explicar o] poder da Skull & Bones é como a história do ovo e da galinha.
A Bones só escolhe pessoas que têm grandes expectativas de sucesso ou que vêm de famílias [de Bonesmen] - e nesse caso, como Bush, já teriam uma vantagem na sua rede de contactos, porque no século XX muitos Bonesmen eram ricos e poderosos. E sim, porque a Skull & Bones está a sair-se bem actualmente, estou certa de que veremos mais candidatos da Bones no futuro."William Howard Taft - Presidente dos EUA, 1909-1912, George H. Bush - Presidente dos EUA, 1989-1993, George W. Bush - Presidente dos EUA, 2001-? Prescott Bush - senador. John Kerry - senador, candidato à presidência, Averell Harriman - diplomata. Henry Luce - fundador das revistas "Time" e "Life". Dean Witter Jr. - banqueiro, John Chaffee - senador. McGeorge Bundy - Conselheiro de Segurança Nacional de John Kennedy. William Donaldson - actual presidente da SEC (comissão de valores imobiliários dos EUA). William F. Buckley - escritor, intelectual de direita. Frederick Smith - fundador da firma Federal Express.
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