Maria da Luz Alexandrino
Doutora em Ciências Política
O Militante Nº 232 - Janeiro / Fevereiro 1998
http://www.pcp.pt/publica/militant/232/p51.htmlImaginação
Imagine um país onde há mais de 30 anos um golpe de Estado perpetrado por generais levou à matança indiscriminada de cerca, ou mais, de 1 milhão de habitantes. Imagine ainda que um dos generais refere que o número é incerto porque “é difícil contar cabeças quando misturadas com tantos braços e mãos”. E que outro general afirma que, além do mais, o assunto de quantos corpos é de somenos importância. Afinal, alguns dos mortos eram comunistas e os outros poderiam vir a sê-lo. Imagine ainda que durante estes 30 anos os ditos generais estabelecem um regime chamado “Ordem Nova”. A “Ordem Nova” inclui ingredientes de visão orweliana:
a) Uma filosofia de Estado a que todos os cidadãos devem aderir, por actos e pensamentos, chamada Pancasila;
b) forças armadas e polícia treinadas exclusivamente para a opressão e repressão de dissidência e sublevação internas;
c) uma burocracia omnipresente e opressora;
d) Uma rede de informadores considerada excelente;
tudo bem racionalizado por “princípios” de Governo que colocam o poder de Estado e os interesses de ordem e estabilidade, ou melhor, os interesses dos generais, acima de todos os direitos humanos e sociais (1). Imagine ainda que esta “Nova Ordem” ultrapassa a imaginação mesmo de Orwell. Este regime não se limita à reinvenção da história, condicionamento de cidadãos pelo medo e destruição selectiva de dissidentes. Este regime destrói fisicamente e em massa todos os que define como incómodos para o poder. A “Ordem Nova” conduz ao genocídio sistemático de populações (2), prende e mata milhares de suspeitos e familiares, mesmo que crianças, não vá a semente da pobreza ser genética. E a definição de sublevação é larga. Pode ser uma demonstração pacífica de camponeses contra a expropriação das suas terras para construção de um campo de golfe, por exemplo. O regime inscreve-se como legalista na sua Constituição mas, na política contra o crime, em três anos assassinou, em execução sumária, mais de 5.000 (alegadamente) criminosos de delito comum.
Realidade
Se esta visão é deprimente como imaginação, ainda o é mais como realidade. E o país que nem Orwell se atreveu a imaginar chama-se Indonésia e a “Ordem Nova”, a designação do regime que aí vigora, foi instituída pelo general Suharto, o actual presidente, em 1965. Por razões que só a lógica do colonialismo pode explicar, a Indonésia, que com as suas 13.000 ilhas é o maior arquipélago do mundo, compartilha a soberania de algumas ilhas com outros países. Uma dessas ilhas é Timor. A ilha de Timor foi dividida entre dois ocupantes coloniais, a Holanda e Portugal. Timor Oeste foi libertado da Holanda em 1949. Timor-Leste, aonde os portugueses desembarcaram em 1515, teve outro destino. Quando ocupado colonialmente pela ditadura portuguesa, Timor-Leste não parecia incomodar o regime de Suharto. Afinal, havia muito em comum entre o Estado Novo de Salazar e a Ordem Nova de Suharto para além da semelhança de nomes. Mas esta atitude muda radicalmente quando a ditadura portuguesa cai e as sementes de liberdade do 25 de Abril de 1974, a revolução dos cravos, começam a semear a esperança na metade leste da ilha, até então quase adormecida. O novo regime democrático português definiu como uma das políticas prioritárias o reconhecimento do direito à soberania e independência das colónias. Em Timor-Leste formaram-se movimentos políticos com o objectivo de assegurarem a transição para a independência e governo autónomo do país: a Frente Revolucionária para a Independência de Timor-Leste (Fretilin) e a União Democrática de Timor (UDT) (3). Estas forças eram diferentes em ideologia e práticas políticas, tendo chegado inclusive a confrontação armada, mas essa discussão não é aqui relevante. O que é relevante é que começaram negociações tendentes à transferência de soberania do território. Suharto e os generais indonésios começam a sentir que a ditadura indonésia teria dificuldades em sobreviver se um país democrático “porta-com-porta” passasse a servir de exemplo e suporte aos seus cidadãos oprimidos. E os planos para a invasão de um território que há 460 anos não fazia parte da restante Indonésia começam a esboçar-se e a serem postos em prática. Para o povo de Timor-Leste, o povo maubere, as sementes de liberdade estavam prestes a transformar-se em raízes de opressão, opressão sem precedentes na história da ilha (4).
Os grandes culpados
Havia, no entanto, obstáculos a aplanar previamente à invasão. Talvez o maior fosse a opinião de membros importantes da comunidade internacional, face a uma invasão que contrariava todos os princípios das Nações Unidas sobre a descolonização e os princípios de direito internacional sobre soberania. A preocupação dos generais indonésios quanto aos escrúpulos das grandes potências era desnecessária. Não há nada tão certo como a morte para os vivos e... a hipocrisia das democracias ocidentais com respeito aos princípios das Nações Unidas e aos direitos dos povos colonizados, incluindo os direitos humanos. Em princípios de Dezembro de 1975, o presidente norte-americano, Gerald Ford, e o sibilante secretário de Estado Henry Kissinger visitam Jakarta e encontram-se com Suharto. No dia seguinte à visita, Timor-Leste é invadido. A Fretilin resiste nas montanhas do interior, mas as suas forças são claramente inferiores. De um lado, há um exército de um país de 185 milhões de pessoas, especializado em matança de civis, treinado na Inglaterra e Austrália, armado pelos Estados Unidos, Alemanha e outras potências ocidentais (5). Do outro, um contingente de heróicos nacionais de um país de pouco mais de meio milhão de habitantes, quase sem treino ou armamento, “fechados” em metade de uma ilha. A Fretilin nunca teve qualquer hipótese no campo militar. Teria alguma se pudesse contar com apoios internacionais. Se Timor-Leste fosse, por exemplo, um poço de petróleo com uma bandeira (6), uma monarquia estilo Kowait. Mas não era nem é, e como tal a invasão fez-se e mantém-se com quase total impunidade.
Pesadelo
Nestas décadas de ocupação indonésia, o que se passa internamente em Timor-Leste é a destruição em proporções dantescas de um país, um povo, uma cultura. Apenas em 17 anos a população é reduzida de 1/3. Os métodos que conseguiram tal “sucesso” são os mesmos que os generais usaram como teste contra a sua própria população. Em Timor-Leste, de novo, só existe a dimensão e a intensidade com que eles são utilizados - de forma ainda mais brutal e generalizada. Matança indiscriminada de civis, deslocação forçada de populações, chacina de aldeias inteiras, fome e doença. Durante os anos 80 a destruição sistemática de culturas agrícolas de Timor-Leste conduziu à fome que a Amnistia Internacional comparou com a fome do Biafra nos anos 60 (7). A outra faceta da política indonésia é a alteração permanente da geografia e cultura da população maubere, com a “invasão” de milhares de civis indonésios da ilha de Java, a quem são atribuídas terras e concedidos empréstimos favoráveis para se estabelecerem em Timor-Leste. E quem conheça as condições de vida na Indonésia percebe que não deve ser difícil encontrar cidadãos que queiram tentar a sorte em áreas aonde podem ter résteas de esperança num futuro melhor. Na imprensa das democracias ocidentais a invasão e ocupação ilegais de Timor e a situação dos direitos humanos na Indonésia não tem sido considerado assunto de grande interesse, apesar das sucessivas resoluções das Nações Unidas condenando a invasão e exigindo o reconhecimento da auto-determinação do povo de Timor. Afinal, a Indonésia transformou-se num bastião de defesa contra o comunismo, tem uma grande importância geo-estratégica e assegura um enorme contingente de mão de obra tão barata e tão sem direitos que dificilmente encontra competição (8). Não é por acaso que os Nike e Adidas são aí fabricados e em condições tais que levam a maioria da esquerda norte-americana a recusar comprar tais produtos de opressão.
Homens e actos de boa vontade
Houve, no entanto, acontecimentos que forçaram a atenção da comunidade internacional. Um, foi a chacina em 1991 de pelo menos 270 civis que acompanhavam um funeral no cemitério de Santa Cruz, em Dili, matança sem provocação que foi filmada por um repórter britânico que, corajosamente, conseguiu fazer sair o filme do país. Outro, foi a prisão e julgamento fantoche, em 1992, do líder da resistência timorense, Xanana Gusmão. Outro foi o acto desesperado de estudantes timorenses que saltaram o muro da embaixada americana em Jakarta para entregar uma petição pelos direitos humanos e autonomia de Timor-Leste ao presidente norte-americano, Bill Clinton, em visita à Indonésia em 1996. E finalmente, a academia sueca concedeu o Nobel da Paz ao Bispo de Dili, D. Ximenes Belo, e ao resistente timorense José Ramos Horta. Desde então, a condenação do regime indonésio tem levado a algumas medidas positivas por parte de países ocidentais. O Canadá, por exemplo, proibiu a venda de armas pesadas e ligeiras à Indonésia. Relevante foi também a actuação do ministro dos Negócios Estrangeiros português, Durão Barroso, que levou a Austrália ao Tribunal Internacional, do que resultou a declaração de ilegalidade do acordo celebrado entre este país e a Indonésia com vista à exploração de petróleo em Timor-Leste. Mas estas medidas são brandas e insuficientes. É necessário forçar os governos democráticos a exigirem à Indonésia, sob pena de real retaliação diplomática e económica, o cumprimento das Resoluções das Nações Unidas, com vista à auto-determinação de Timor-Leste. E não resta muito tempo. De acordo com um dos mais importantes críticos da invasão e ocupação indonésias, o já referido D. Ximenes Belo, o genocídio progride tão rapidamente e a emigração de indonésios é tão numerosa, que provavelmente em menos de uma década já pouco restará do povo e cultura maubere.
Notas:
(1) O regime não admite liberdade de expressão, reunião, associação ou pensamento, greve, ou dissidência. Censura toda a informação e reprime intelectuais. Atribui penas de anos de prisão pelo crime de leitura de um livro proibido. O poder judicial é uma extensão do executivo, que utiliza generalizadamente tortura como instrumento de instrução de processos “legais”.
(2) Não só do povo maubere de Timor-Leste, mas também das populações de Aceh e Irian Jaya, as três áreas aonde existe resistência armada organizada.
(3) Existia então outro movimento, a Apodeti (Associação pro-determinação de Timor), que era apenas uma testa de ferro dos interesses do regime indonésio.
(4) O colonialismo português em Timor foi caracterizado mais por total negligência do que opressão directa.
(5) As forças de ocupação indonésias em Timor totalizam 20 mil homens, para uma população de pouco mais de meio milhão.
(6) Da expressão norte-americana que designa “países” do tipo Kowait: “oil well with a flag”.
(7) A Amnesty International tem exercído pressão sobre o regime indonésio com respeito aos direitos humanos e tem sido instrumental da denúncia da situação do genocídio em Timor.
(8) A Indonésia tem o salário médio mais baixo da Ásia: 1.50 USD por um dia de trabalho escravo sem limite de horário.
Bibliografia
- Amnesty International. (1994). Power and Impunity - Indonesia and East Timor. New York: John D. Lucas Printing Co.
- Bergman, Sven. (1993). Timor’s Untelevised Terror: As the World Looks Elsewhere, a Small Island Suffers a Hideous War. The Washington Post, Sunday, March 14: 2-3.
- M.R. (1995). Solução para Timor Passa por Xanana e Ximenes. Expresso, 1 de Abril, Nacional: 7.
- O’Shaughnessy, Hugh. (1994). East-Timor: Getting Away With Murder?. The British Coalition for East Timor.
- Sousa, Fernando. (1995). Mais Tempo para Resolver Timor. Diário de Notícias, 11 de Janeiro, Política: 8.
http://www.pcp.pt/publica/militant/232/p51.html