O ideal republicano sofreria com a ideia de que o serviço público não é mais um fim em si, mas uma simples etapa de uma carreira baseada na perspectiva de enriquecemento pessoal?
por Ibrahim Warde
le monde diplomatique - 04 de Dezembro de 2012
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1311No dia 11 de outubro, Nicolas Sarkozy fez de Nova York sua porta de entrada no lucrativo “circuito de palestras”. Propostas de prestação desse tipo de serviço (com remuneração de cerca de R$ 300 mil) estariam inundando o escritório do ex-presidente francês. O acesso a altos cargos políticos seria apenas uma etapa em um plano de carreira cujo objetivo é o enriquecimento pessoal? Ao menos era nesses termos que Sarkozy refletia sobre seu futuro em 2008, quando ainda não cogitava concorrer ao segundo mandato: “Em 2012, terei 57 anos, não serei eleito. E, quando vejo os milhões que Clinton ganha, imagino que possa fazer o mesmo. Fico no cargo por cinco anos e depois vou fazer dinheiro, como Clinton”.[1] Com uma dívida de cerca de US$ 11 milhões quando deixou a Casa Branca, em janeiro de 2001, o ex-presidente norte-americano tornou-se “escritor e conferencista”. Em um ano, a renda anual do casal Clinton passou de US$ 358 mil a US$ 16 milhões.
No pequeno mundo dos ex-chefes de Estado, a reconversão do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007) em conferencista figura entre os casos mais bem-sucedidos. Fulgurante e acrobática, sua carreira política – iniciada na esquerda do Partido Trabalhista e concluída, na época da Guerra do Iraque, por uma demonstração de docilidade que lhe rendeu o apelido de “mascote de George Bush” – lhe abriria o futuro como divulgador da ideia de que bons sentimentos e bons negócios constroem uma boa administração.
O bem e o mal, os belos discursos e os grandes princípios são onipresentes no “sistema Blair”. A religião “sempre teve mais apelo que a política”, confessa em suas memórias.[2] Na galáxia das fundações e organizações de caridade fundadas por Blair, a Fundação pela Fé, “destinada a encorajar o respeito e a compreensão entre as religiões”, atua junto a outras com vocação mais política, como a Iniciativa para a Governança na África, cuja meta é “melhorar a eficácia dos governos locais”. O objetivo geral, contudo, é o mesmo: midiatizar as boas ações do antigo locatário da 10 Downing Street e assegurar-lhe o abastecimento constante de euros, dólares ou qualquer outra divisa.
Blair é mais discreto em outras atividades: a busca por contratos gordos e a sedução de grandes clientes. Entre duas reuniões destinadas a salvar as aves ou promover a fé, fundou empresas muito menos comprometidas, como a Tony Blair Associates, que visa “oferecer, com uma ótica comercial, conselhos estratégicos sobre as tendências políticas e econômicas e sobre a reforma dos Estados”, ou o banco de investimento Firerush Ventures Nº3. O antigo dirigente trabalhista dispensa seus bons conselhos a financeiras norte-americanas como o JP Morgan, à seguradora Zurich Financial Services, ao governo do Kuwait, ao fundo de investimento Mubadala, de Abu Dhabi, e a várias instituições financeiras internacionais e Estados – com uma predileção pelos oligarcas e cleptocratas do Oriente Médio, África e ex-União Soviética. As estimativas sobre o capital acumulado pelo ex-estadista variam entre R$ 63 milhões e R$ 194 milhões.
Quando chamado de financista de rapina, Blair se diz “ofendido”: “Consagro dois terços do meu tempo a atividades beneficentes”, antes de acrescentar que poderia “ganhar muito mais dinheiro”[3] se realmente quisesse.
O fundador do New Labour jamais deixou o cenário político. Em 27 de junho de 2007, o mesmo dia em que, segundo os termos de um acordo firmado um ano antes com seu ministro da Economia, Gordon Brown, apresentou sua demissão para que este lhe sucedesse, Blair tornou-se representante do “Quarteto” (Estados Unidos, União Europeia, Rússia e Nações Unidas) no Oriente Médio. Sua missão: acompanhar os “processos de paz entre Israel e Palestina” e melhorar as condições de vida nos territórios ocupados. Ele raramente aparece, e qualificar sua participação – essencialmente com conselhos lacrimejantes para que uns e outros demonstrem boa vontade – de “modesta” seria um eufemismo. A “marca Blair” se funda, assim, na mistura de estilos, a forma mais acabada de um capitalismo de relacionamentos altamente valorizado.
Um milhão a hora de trabalho
O Le Monde(19 set. 2012) relatava, por exemplo, como Blair interveio para facilitar a oferta pública de compra (OPC) da gigante de matérias-primas Glencore sobre a empresa de mineração Xstrata, cujo segundo acionário é o fundo soberano Qatar Holding. “Por favor, faça qualquer coisa para seduzir o Qatar”, implorou Ivan Glasenberg. “Rapidamente”, relata o jornal, Blair telefonou para seu amigo Hamad ben Jassim al-Thami, primeiro-ministro do emirado explorador de gás e diretor da Qatar Holding: “Em consequência dessa conversa, marcou-se um encontro em Londres entre as duas partes”. A OPC foi concluída no fim de novembro. Montante dos honorários de Blair pela intermediação? “Mais de R$ 3 milhões por três horas de trabalho.”
Os serviços de um homem que, no entanto, jamais trabalhou no setor privado também despertam o interesse de empresas que cobiçam contratos suculentos em mercados difíceis, como o de fundos especulativos ou de busca de informações confidenciais (em outras palavras, delitos de iniciados). Paradoxo suplementar: essa capitalização sobre o próprio nome mascara o trabalho de centenas de “pequenas mãos”, algumas certamente parte da equipe que trabalhou diretamente para o primeiro-ministro na 10 Downing Street, enquanto outras são certamente oriundas de Nova York ou Wall Street, ou ainda recrutadas de prestigiosos escritórios de consultoria.
Essa mistura de estilos de atuação, contudo, ainda não impede que ocorram inconvenientes. Quando primeiro-ministro, Blair se comportava de forma a garantir a “transformação” de Muamar Kadafi em homem de Estado tragável – com o sucesso que se sabe. Em seu novo papel de intermediário, viajou a Trípoli várias vezes como conselheiro financeiro da família do dirigente líbio e consultor do banco JP Morgan por uma remuneração estimada em quase R$ 7 milhões por ano. Mais recentemente, fez negócios com Nursultan Nazarbayev, que dirige o Cazaquistão com mão de ferro e foi reeleito recentemente com mais de 95% dos votos.
Como explicou o “superlobista” deposto Jack Abramoff, a melhor forma de uma empresa corromper um homem político é convencê-lo da perspectiva de um emprego futuro que lhe garantirá uma mina de dinheiro.[4] Em palestra recente sobre as virtudes da filantropia, Blair explicava que “trabalhar fora das limitações do governo é enriquecedor, estimulante e lhe permite potencialmente ter mais influência do que quando era político”.[5]
Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone - Le Monde Diplomatique, 2007.
[1] A propósito do conceito de “realinhamento político”, cf. John Judis e Ruy Teixeira, The emerging democratic majority [A emergente maioria democrata], Scribner, Nova York, 2002.
[2] Idem.
[3] Michael S. Lewis Beck, Charles Tien e Richard Nadeau, “Obama’s missed landslide: a racial cost?” [A perda da maioria de votos de Obama: um custo racial?], PS: Political Science and Politics, v.43, n.1, Washington, 2010.
[4] Congressional Budget Office, “Estimates for the insurance coverage provisions of the Affordable Care Act updated for the recent Supreme Court decision” [Estimativa de recursos para a cobertura da seguridade da Lei de Cuidado Acessível atualizado pela recente decisão da Suprema Corte], Washington, jul. 2012.
[5] Sobre o comportamento de Obama em relação aos industriais da saúde, cf. Paul Starr, Remedy and reaction [Remédio e reação], Yale University Press, New Haven, 2011, p.194-238.