Pegando de volta as nossas universidades dos apparatchiks corporativos
As universidades estadunidenses são apêndices do estado corporativo
por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report
Brasil 247 - 17 de abril, 2023
https://www.brasil247.com/blog/pegando-de-volta-as-nossas-universidades-dos-apparatchiks-corporativos
Eis aqui alguns dos administradores seniores que eu não vi se juntarem a nós nos piquetes montados pelos professores e funcionários grevistas na Rutgers University. Brian Strom, o chanceler das Ciências Biomédicas e de Saúde da Rutgers, cujo salário é de US$ 925.932 por ano. Steve Libutti, o vice-chanceler dos Programas de Câncer das Ciências Biomédicas e de Saúde da Rutgers, que ganha US$ 924.411 por ano. Patrick Hobbs, o Diretor da Atlética, que ganha US$ 999.688 por ano. O presidente da universidade, Jonathan Holloway, recebe US$ 1,2 milhão por ano. Stephen Pikiell, o treinador-chefe de basquetebol da universidade, que ganhou um aumento de 445% desde 2020 e atualmente ganha US$ 3 milhões por ano. Gregory Schiano, o treinador-chefe de futebol americano, que ganha US$ 4 milhões por ano.
Eis quem eu vi. Leslieann Hobayan, uma poeta e mãe solteira com três filhas adolescentes que ganha US$ 28.000 por ano ensinando escrita criativa como professora-adjunta e que não conseguiu pagar um seguro de saúde no ano passado. Hank Kalet, que, ensinando sete cursos por semestre na Rutgers, na Faculdade Comunitária Brookdale e na Faculdade Middlesex como professor-adjunto (normalmente, a carga máxima para um semestre é de quatro cursos), bem como ensinando nos cursos de verão, algumas vezes ganha US$ 50.000 por ano. Porém, mesmo ele só tem seguro de saúde através do empregador da sua esposa. Josh Anthony e Yazmin Gomez, estudantes de mestrado/doutorado no departamento de história, que trabalham como assistentes de ensino e que lutam para sobreviver com US$ 25.000 por ano cada um — US$ 1.300 do que é deduzido pela universidade para as taxas de biblioteca, ginásio de esportes e computador.
A Rutgers, como a maioria das universidades estadunidenses, funciona como uma corporação. Os administradores seniores, que frequentemente têm um diploma de Mestre em Administração de Negócios (MBA) e têm pouca ou nenhuma experiência na educação superior, juntamente com os treinadores de esportes que têm o potencial de fazer a universidade ganhar dinheiro, são altamente compensados, enquanto são negados a milhares de educadores e funcionários mal pagos a segurança no emprego e benefícios. Professores-adjuntos e trabalhadores graduados são frequentemente obrigados a usar Medicaid (seguro de saúde público). Eles frequentemente têm um segundo emprego dando aulas em outras faculdades, ou sendo motoristas de Uber, trabalhando como caixas, entregando comida para o Grubhub ou o DoorDash (serviços de entrega de comida a domicílio), ou levando cachorros para passear, ou cuidando de casas, ou servindo mesas em restaurantes, trabalhando como bartenders e vivendo em quatro ou seis pessoas num apartamento, ou acampando no sofá de um amigo. Esta inversão de valores está destruindo o sistema educacional da nação [EUA].
Numa campanha questionável para tornar-se uma potência nacional em esportes, tem uma dívida no departamento de atlética de mais de US$ 250 milhões — sendo que metade disso são empréstimos para cobrir déficits, segundo uma investigação feita por NorthJersey.com.
“Mesmo que o departamento de atletismo da Rutgers continue a acumular déficits operacionais US$ 73 milhões por ano — em parte cobertos pelos contribuintes de impostos e pelas taxas de matrícula — o departamento de atletismo demonstrou pouca contenção quando pagou milhões com cartões de crédito para pagar por shows na Broadway, viagens para Disney, refeições em restaurantes caros de Manhattan e outras regalias para os seus treinadores, atletas e recrutas, incluindo um luau e ioga ao pôr do sol nas praias do Havaí, uma excursão de mergulho em Porto Rico, lançamento de machados no Texas, hotéis de luxo em Paris e Londres e lagosta gelada, torres de frutos-do-mar e filés Delmonico na sede de New Brunswick”, se lê no relatório da NorthJersey.com. “Por mais de um ano, os jogadores de futebol americano da Universidade Rutgers desfrutaram de uma regalia cara a qual poucos outros estudantes tiveram acesso — entregas grátis de comida da DoorDash a domicílio de restaurantes, lojas de conveniência e farmácias, pagos pela universidade e, em última análise, pelos pagadores de impostos e os estudantes. E os custos se acumularam. Os jogadores de futebol americano encomendaram mais de US$ 450.000 da DoorDash entre maio de 2021 e junho deste ano, segundo uma revisão de faturas e outros documentos obtidos pela NorthJersey.com”.
A equipe de futebol americano da Rutgers, que teve um recorde péssimo de vitórias-derrotas na última década, raramente enche os 52.454 assentos do seu estádio.Os membros da Rutgers American Association of University Professors–American Federation of Teachers (AAUP-AFT), Rutgers Adjunct Faculty Union (PTLFC-AAUP-AFT) e a Rutgers American Association of University Professors–Biomedical and Health Sciences of New Jersey (AAUP-BHSNJ) (sindicatos de professores da universidade) representam mais de 9.000 docentes, palestrantes de tempo parcial, trabalhadores graduados (mestres/doutorandos), associados com pós-doutorado e médicos. Os sindicalistas, que paralisaram 70% das aulas da universidade, exigem aumentos de salários, melhor segurança no emprego e benefícios de saúde para palestrantes de meio-período e assistentes graduados. Eles também pedem que a universidade congele os aluguéis nos alojamentos para estudantes e funcionários e a extensão dos financiamentos para pesquisa de graduados para estudantes que foram afetados pela pandemia. Os professores catedráticos, numa importante demonstração de solidariedade, concordaram em não aceitar um acordo, exceto caso as exigências dos trabalhadores acadêmicos de menores salários sejam atendidas. No sábado, os sindicatos anunciaram uma pausa na greve, pendente de um possível acordoEu tenho ensinado há uma década como palestrante em tempo parcial ou professor adjunto no programa de bacharelado da faculdade Rutgers nas prisões de New Jersey, sou membro do sindicato e participei da greve. Estamos sem contrato há oito meses. Os 2.700 professores-adjuntos, que são usualmente informados apenas com poucas semanas de antecedência se estarão ensinando um curso, são responsáveis por 30% das aulas da universidade. Os adjuntos ganham cerca de US$ 6.000 por curso.
Um pouco mais de 10% dos postos de catedráticos nos EUA estavam em vias de ter estabilidade em 2019 e 26,5% deles eram catedráticos, segundo um estudo feito no ano passado pela Associação Americana de Professores Universitários (AAUP — American Association of University Professors). Cerca de 45% eram empregados contingentes de tempo parcial ou adjuntos. Um em cada cinco trabalhavam em cargos de tempo integral, sem estabilidade. Ao reduzirem drasticamente os percursos para posições de estabilidade e pagos adequadamente, as universidades estão se tornando extensões da economia 'bico'.
A universidade Rutgers demitiu 5% dos seus trabalhadores durante a pandemia, deixando muitos em sofrimento extremo, apesar de posição financeira líquida da universidade — os ativos totais, menos os passivos “aumentaram em mais de meio bilhão de dólares, chegando a US$ 2,5 bilhões, um aumento de 26,7% num único ano”, segundo a revisão dos registros financeiros da universidade, realizada pelo sindicato AAUP-AFT da Rutgers. As economias da universidade, que podem ser usadas para emergências financeiras, cresceram em 61,9%, chegando a US$ 818,6 milhões.
Estão sendo realizadas greves em outras universidades, incluindo a Governor’s State University em Illinois, a University de Michigan, e a Chicago State University, e está prestes a ocorrer na Northeastern Illinois University. A University of California, a New York University e a Temple University também tiveram greves. As greves fazem parte da luta para pegar de volta as universidade dos apparatchiks corporativos.
Estas instituições, incluindo a Rutgers, frequentemente têm fundos para pagar salários mínimos de subsistência e prover benefícios. Ao manterem os docentes mal pagos e recusando-se a prover segurança no emprego, aqueles que levantam questões que desafiam a narrativa dominante — seja sobre a desigualdade social, o abuso corporativo, a situação difícil dos palestinos que vivem sob ocupação e apartheid dos israelenses, ou a guerra permanente do nosso regime [EUA] — podem ser imediatamente demitidos. Os administradores seniores das universidades, que recebem bônus por “reduzir despesas” ao aumentarem as matrículas e taxas, cortando funcionários e suprimindo salários, pagam a si mesmos, pagam a si mesmos salários obscenos. É assegurado aos doadores ricos que a ideologia neoliberal que está devastando o nosso país não será questionada por acadêmicos temerosos de perderem os seus trabalhos. Os ricos são louvados. Os trabalhadores pobres, incluindo aqueles empregados pelas universidades, são esquecidos.
“Os programas de esportes da Rutgers perdem mais dinheiro do que qualquer outra das dez maiores universidades”, disse Kalet, que ensina escrita e jornalismo. “Isto diz muito sobre as prioridades desta administração e das administrações prévias. Isto é uma parte grande do argumento que nós temos apresentado: 'nós sabemos que vocês têm o dinheiro, vocês estão ganhando um excedente grande, vocês têm uma conta de reserva enorme de 818 milhões de dólares, que está crescendo'. Eles estão ganhando mais dinheiro do que estão gastando. Eles têm um fundo crescente. Eles estão dando dinheiro aos treinadores ao recusarem de pagar os adjuntos e os trabalhadores-mestrandos que ganham salários de pobreza”.
E depois há a hipocrisia da classificação, com as universidades como a Rutgers pretendendo defender valores de igualdade, diversidade e justiça, enquanto esmagam os seus docentes e funcionários na sujeira. Holloway, o primeiro presidente negro da universidade e um historiador do trabalhismo, chamou a greve de “ilegal, num e-mail distribuído em toda a universidade antes da greve começar. Ele ameaçou usar o poder liminar para punir, impor multas e aprisionar aqueles que participarem na greve. O principal negociador da parte da universidade é David Cohen, que foi o chefe de relações trabalhistas quando o então governador de New Jersey Chris Christie estava engajado em uma guerra aberta contra os sindicatos de professores do estado. Christie se referiu aos sindicatos dos professores como “a versão de New Jersey dos Corleones”, a família mafiosa do filme “O Poderoso Chefão” (The Godfather), e sugeriu que os líderes da Federação Americana de Professores “mereciam um soco na cara”.
As universidades da nação foram deformadas em um parque infantil para os gerentes de fundos de hedging bilionários e doadores corporativos. A Universidade de Harvard renomeará a sua Escola com o nome do executivo de fundos de hedging bilionário e doador republicano de direita Kenneth Griffin, em honra da sua doação de US$ 300 milhões. Há uma década, Harvard renomeou o Instituto W.E.B. Du Bois de Pesquisas Africanas e Afro-Americanas para o nome de Glenn Hutchins, um oligarca de fundos de private equity que doou US$ 15 milhões para o instituto. Para salvar a cara, Harvard disse que o famoso Instituto Du Bois foi absorvido pela nova entidade; mas o fato é que Du Bois, um dos maiores estudiosos e intelectuais estadunidenses, teria o seu nome substituído por um magnata branco das equities, e isso desnuda as prioridades de Harvard e da maioria das faculdades e universidades.
O desfinanciamento público das universidades, juntamente com a sua captura pelas corporações e dos hiper-ricos, faz parte do golpe de estado corporativo em câmera-lenta. A meta é aplicar a conformidade e a obediência, treinar pessoas jovens a preencher os lugares na máquina corporativa e manter o status quo não questionado. A acumulação de vastas riquezas, não importando quão nefasta seja, é valorizada como o bem maior. Aqueles que moldam, configuram, inspiram e educam os jovens, são negligenciados. Rutgers, assim como a maioria das grandes universidades, despeja recursos em programas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM — Science, Technology, Engineering and Math) que os “EUA Corporativos” valorizam. O objetivo fundamental de uma educação, de ensinar as pessoas a pensar criticamente, de compreender e compreender os sistemas de poder que dominam nossas vidas, de fomentar o bem comum, de construir uma vida de sentido e de propósito, são postos de lado, especialmente com o definhamento das humanidades.
“Quando eu me candidatei ao mestrado e conversei com os meus professores sobre fazer um doutorado, a maioria deles me disseram para não fazê-lo”, me disse Anthony — um barbudo vestindo uma camiseta com a palavra Solidariedade e um logotipo de um punho cerrado agarrando um lápis. “Quase todos eles disseram, 'Esta profissão está morrendo' e que ‘Você jamais conseguirá um trabalho, você ganhará tão pouco enquanto estiver fazendo o mestrado' e 'Assegure-se que você tenha o seu próprio financiamento, o que mais importa é o seu pacote de financiamento'. Eu pensei muito, muito seriamente em não fazer isto, mas eu estava apaixonado por História. Eu sou bom nisso, esta é a coisa que eu estou destinado a fazer”.
“Isto é realmente duro”, ele adicionou. “Há muitas vezes quando você olha para a sua conta bancária e tenta decidir o que você pode abrir mão para pagar o aluguel”.
A maioria os professores adjuntos e trabalhadores-mestrandos seguem adiante por causa dos seus estudantes, aguentando a instabilidade econômica e a insegurança no trabalho por aqueles momentos sagrados na sala de aula
“Eu sinto que preciso ser internado num hospital psiquiátrico, porque eu continuo ensinando, apesar destes salários de pobreza”, disse Hobayan quando ela inspecionou os piquetes onde os grevistas estavam cantando “Nós não somos uma corporação! Nós estamos aqui pela educação!”
“Eu amo compartilhar o conhecimento que eu obtive com outras pessoas”, ela prosseguiu, “Eu amo ver o que ocorre quando a lâmpada se acende nas cabeças deles. Você pode vê-lo nas caras deles. Estão assim: 'oh, isto é possível! É isto que pode existir do lado de fora da minha bolha de conhecimento!' Eu converso muito com eles sobre a bolha de conhecimento deles, porque todos estão nos seus silos, certo? E eu digo, 'Você já considerou esta perspectiva, ou considerou tentar fazer isso?”
Ela contou sobre um estudante que era um escritor talentoso, mas que estudava engenharia porque ele queria ter um trabalho com o qual pudesse ganhar dinheiro. Hobayan o dirigiu à sua paixão. Ele se tornou um estudante de inglês, fez um mestrado e agora é um professor de Inglês Como Uma Segunda Língua no norte de New Jersey.
“Ele é feliz”, ela disse. “É uma merda que não somos recompensados pelas coisas que amamos, as coisas que mudam as vidas das pessoas, que mudam o mundo”.
Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Chris Hedges, repórter laureado com Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.
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