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Carta aberta a Barack Obama

A leitura desta carta de Pérez Esquível não é apenas uma denúncia do governo imperialista norte-americano e da nefasta acção de Barack Obama, ora presidente de turno em fim de mandato, sem honra nem glória. Este texto de Pérez Esquível lembra-nos também que os critérios que norteiam a atribuição do Prémio Nobel da Paz são por vezes incompreensíveis à luz de qualquer inteligibilidade, e contrários aos esforços que dizem premiar. É o caso do atribuído a Obama.

Pérez Esquivel

ODiario.info - 5 de Março, 2016

http://www.odiario.info/?p=3940

Sr. Barack H. Obama

(…) Há dias inteirámo-nos que farás uma histórica viagem a Cuba e depois virás à Argentina, para estreitar os laços de cooperação com o governo há pouco eleito.

Seguimos de perto os avanços positivos que através do Papa Francisco permitiram abrir as portas à esperança e ao diálogo entre o povo de Cuba e o dos Estados Unidos. Sabes bem que falta percorrer um longo caminho até se alcançar o levantamento do bloqueio e o encerramento da base militar que o teu país mantém em Guantánamo, onde são violados os direitos humanos dos prisioneiros, sem julgamentos e sem possibilidades de alcançar a liberdade. Esperamos que o faças, apesar da forte oposição que encontras no Congresso do teu país.

Na carta que me enviaste o ano passado, diferentemente de outros antecessores teus, reconheceste que o teu país viola direitos humanos e mencionaste a tua vontade «levar este capítulo da história dos Estados Unidos até ao seu final».

Por isso, é importante que saibas que não vens à Argentina num momento qualquer. Em 1976, quando tu tinhas apenas 14 anos e o teu país festejava dois séculos da sua independência, nós começávamos o período mais trágico da nossa história, com a instauração de um terrorismo de estado que submeteu o nosso povo à perseguição, à tortura, à morte e aos desaparecimentos para retirar o seu direito à liberdade, à independência e à soberania.

Escrevo-te como sobrevivente desse horror que, como muitos outros fomos vítimas de perseguição, prisão e torturas por defender os direitos humanos perante as ditaduras latino-americanas, que impuseram a doutrina da Segurança Nacional e da «Operação Condor» com o financiamento, doutrinação e coordenação dos Estados Unidos. Foi por essa luta colectiva que me outorgaram o Prémio Nobel da Paz e o assumi em nome dos povos da América Latina.

Enquanto os Estados Unidos formavam as Forças Armadas latino-americanas na Escola Das Américas (SOA) em tácticas de tortura e sequestros, aqui promovia-se com elites locais, políticas neoliberais que destruíram a capacidade produtiva do país e impuseram uma dívida externa ilegal e ilegítima. Ao mesmo tempo que denunciámos estas acções também registámos a solidariedade do povo dos Estados Unidos e, ainda que fossem uma excepção, do Presidente Jimmy Carter e da Secretária de Estado, Patricia Derian, que denunciaram as acções da ditadura.

Virás ao meu país no Dia Nacional da Memória, pela Verdade e a Justiça, o mesmo dia em que se cumprem 40 anos da última ditadura genocida da Argentina, e no ano em que se cumprem 200 anos da nossa independência nacional. Certamente, não podes ignorar que o teu país tem muitas dívidas pendentes com o nosso e com muitos outros países.

Se a tua atenção é vir aqui reconhecer em nome dos Estados Unidos da América reconhecer que o teu país foi cúmplice dos golpes de Estado do passado e do presente na região; a anunciar que o teu país vai assinar e ratificar o Estatuto de Roma e submeter-se ao Tribunal Penal Internacional [1], e que deixará de ser o único país da América que não ratifica a Convenção Americana dos Direitos Humanos; se nos gratificarás com a notícia de que vão encerrar o «Instituto de Cooperação para a Segurança Hemisférica» (WHINSEC) e a «Academia Internacional para o Cumprimento da Lei» (ILEA), herdeiras da Escola das Américas; e que encerrarás as bases militares que os EUA têm na América Latina, então serás bem-vindo à Argentina seja em que dia for.

Mas se vens com a intenção de nos impores os Tratados de Livre Comércio, em defesa dos privilégios das corporações transnacionais que despojam os nossos povos e a Mãe Terra; ou se vens para avalizar as ilegítimas reclamações dos fundos financeiros «Vulture Funds», ou «abutres» como nós dizemos por aqui, que pretendem espoliar-nos através da justiça do teu país; ou se tens a intenção de recomendar a fracassada receita de intervenção das Forças Armadas nos assuntos de segurança interna, e com a desculpa da luta contra o narcotráfico reprimem os movimentos populares, nesse caso, no mínimo, tenho que recordar-te as palavras do libertador Simón Bolívar que já alertava: «Os Estados Unidos parecem destinados pela providência para disseminar a miséria pela América Latina, em nome da liberdade».

A potência mundial que representas esteve e está por trás de todas as tentativas de desestabilização de governos populares no nosso continente, particularmente na Venezuela, Equador, Bolívia, Honduras, entre outros casos. A 200 anos da nossa independência devo informar-te que não aceitaremos nem velhos nem novos colonialismos, não aceitaremos novos Consensos de Washington que impulsionem reformas de fome e exclusão. Nós, povos latino-americanos já derrotámos o projecto imperial da ALCA e voltaremos a enfrentar tudo perante intenções semelhantes. Se a tua intenção não é anunciar nenhuma destas reparações, nem evitar novos padecimentos, lamentavelmente, a tua visita será considerada pela maioria do povo argentino como um gesto provocatório para com um dos eixos centrais da nossa identidade nacional: a defesa dos direitos humanos dos povos.

A muito de nós chamou-nos a atenção que o comunicado oficial da tua visita menciona que virás para reconhecer as contribuições de Mauricio Macri para a defesa dos Direitos Humanos na região. A primeira vez que Macri defendeu publicamente os direitos humanos foi para se referir a um país que ele não conhece, uma manipulação política contra a Venezuela que banaliza as políticas dos Direitos Humanos. Esperamos que esse presumível reconhecimento não envolva uma ofensiva desestabilizadora contra a irmã República Bolivariana.

Enquanto a Venezuela recentemente aprovou a «Lei Especial para Prevenir e Sancionar a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes» aumentando as penas dos que recorram a tais práticas, na Argentina preocupa-nos que, apenas em 2014, tivemos 6.843 casos de tortura nos cárceres e o agora presidente não tenha ainda dito nem uma só palavra. Nem antes nem agora.

Menciono isto porque sei que é uma preocupação tua em relação ao teu país, que regista a maior quantidade de presos em todo o mundo (um em cada quatro presos do mundo está na América do Norte), além de saberes melhor que ninguém o que são os centros de detenção e tortura que os EUA têm noutros países, como demonstrou o relatório muito completo do «Programna de Detenção e Interrogatório da CIA» do Congresso dos EUA do ano 2014.

Para nós é urgente lutar contra estas práticas em todo o mundo.

A Paz é fruto da Justiça e para tornar realidade continuamos a trilhar o nosso caminho de compromisso com os que têm fome e sede de Justiça, para garantir a vigência plena dos Direitos das Pessoas e dos Povos, de ontem e de hoje. E isto permite-nos que na Argentina se julgue e condene os que cometeram crimes contra a humanidade.

Por isso é importante que saibas que no dia 24 de Março nenhum presidente nem personalidade pode representar o povo argentino que, em toda a sua diversidade sempre se representa a si mesmo, através das suas consignas e da sua mobilização pacífica em todas as ruas e praças deste país.

Como bem notou o Papa Francisco no Encontro de Movimentos Sociais na Bolívia: «O futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos Povos».

Por isso, se não decides adiar a tua visita para outra data, poderás escutar o que o povo da Argentina tem para dizer ao mundo.

Te reitero uma saudação de Paz e Bondade, desejando-te força e esperança ao serviço dos povos…

Buenos Aires, 2 de marzo de 2016

N. do T.: [1] Os EUA não subscreveram o Tratado que criou o Tribunal Penal Internacional, como declararam que não lhe reconheciam capacidade de julgamento de cidadãos norte-americanos. Apesar disso não se coíbem de no uso da maior arbitrariedade propor o julgamento de pessoas de outra nacionalidade, particularmente patriotas que se opõem ao domínio norte-americano.

Este texto foi publicado em:http://www.adolfoperezesquivel.org/?p=3866#more-3866

Pérez Esquivel foi Prémio Nobel da Paz em 1980.

Tradução de José Paulo Gascão

http://www.odiario.info/?p=3940
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