Existem muito poucos bons filmes sobre a guerra. “20 dias em Mariupol” é uma exceção
A face real da guerra é a dificuldade e a dor sofrida pelos civis apanhados no bucho da destruição
por Chris Hedges (pt-BR) | The Chris Hedges Report
Brasil 247 - 23 de julho, 2023
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Os filmes de guerra, despojados do medo que esmaga os ossos, do odor fétido dos cadáveres, do barulho ensurdecedor das explosões, a constante exaustão e a ansiedade nervosa que vem com tentar compreender o que está acontecendo no caos aterrorizante, são reflexões pálidas e inadequadas da vasta empresa da matança industrial. E estes são os bons filmes, dos quais há apenas uns poucos.
A maior parte dos filmes de longa-metragem e documentários, desde as Areias de Iwo Jima até Salvando o Soldado Ryan, são pornografias de guerra. Eles romantizam aqueles que empunham os terríveis instrumentos da morte. Eles justificam o injustificável. Eles prestam homenagem à máquina de guerra. Eles atraem jovens homens e mulheres inocentes a se tornarem buchas de canhão. Eles distorcem a percepção do público sobre a guerra, deixando alienados e ignorados aqueles que retornam da guerra e que tentam contar a horrível verdade.
Aqueles que fazem os combates na guerra, dotados com um poder divino para matar, são uma minoria. A face real da guerra é a dificuldade e a dor sofrida pelos civis apanhados no bucho da destruição. As estórias deles são difíceis de se ouvir. O destino deles é difícil de se ver; é por isso que as imagens da guerra sempre são higienizadas. Se nós víssemos a guerra de verdade, isso seria tão chocante, tão perturbador, tão nojento, que a guerra seria difícil de ser feita. Por estas razões, os melhores relatos de guerra evitam as cenas de combate.
O documentário “20 Dias em Mariupol”, uma crônica dos primeiros 20 dias da invasão russa na Ucrânia, captura aquilo que eu testemunhei como correspondente de guerra na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Balcãs. Ele falha, como todos os filmes sobre a guerra devem falhar, mas ele tem sucesso no que poucos filmes sobre a guerra tem sucesso. Ele rasga implacavelmente o véu sobre a guerra – crianças fatalmente feridas e mulheres grávidas dilaceradas por fragmentos de bombas; os esforços frenéticos e condenados ao fracasso de médicos para os salvarem; os berros e lamentos daqueles que embalam os corpos ensanguentados dos mortos; o colapso da ordem social uma vez que as frágeis estruturas de uma sociedade civil cessam de existir e o saque a pilhagem se tornam uma maneira de sobreviver. Na guerra, existem apenas predadores e presas.
A guerra é repulsiva e espalhafatosa. A violência nada cria. Ela só destrói – seres humanos, animais, escolas, lares e edifícios de apartamentos, hospitais, pontes. Ela é a mais pura expressão da morte. Todas as forças que nutrem e sustentam a vida – familiar, civil, social, cultural, ecológica – são programadas para a obliteração.
O jornalista de vídeo da Associated Press (AP) Mstyslav Chernov e seus colegas, o fotógrafo Evgeniy Maloletka e a produtora Vasilisa Stepanenko, documentaram as primeiras três semanas do ataque russo à cidade portuária de Mariupol. Os três repórteres ucranianos foram os únicos de uma agência de notícias estrangeira a permanecerem na cidade. O filme foi feito a partir de 25 horas de filmagens; apenas 40 minutos destes foram transmitidos para os editores da AP. Grande parte da metragem, mesmo se toda ela pudesse ter sido transmitida, jamais teria sido disseminada. Ela é gráfica demais.
O filme focaliza exclusivamente nas autoridades russas. Ele ignora aquelas que foram cometidas por ucranianos. Eu cobri guerras suficientes para saber que houve algumas. O regimento neonazista Azov e outras milícias inspiradas pelo fascismo desempenharam um papel importante no combate em Mariupol. Estas milícias foram acusadas de aterrorizar e de executar russos étnicos e aqueles suspeitos de simpatizarem ou de trabalharem com os separatistas. O símbolo do Regimento Azov é uma “Wolfsangel” [Anjo-Lobo] negro, um emblema usado pelas unidades nazistas na Segunda Guerra Mundial. O regimento assume a ideologia fascista de sangue e terra. As milícias fascistas estão ausentes do filme. Isto foi planejado. Os jornalistas não abordam a difícil situação dos russos étnicos, apesar de Mariupol ser uma cidade com uma maioria de falantes da língua russa. Porquanto a maioria na cidade se considera como sendo ucranianos, quase metade deles também se identificam como russos. Estes russos étnicos geralmente culpam o governo de Kiev pela guerra no Donbass, que está sendo combatida desde 2014 e onde a cidade se localiza.O que aconteceu com os russos étnicos e os separatistas que os ucranianos consideravam como colaboradores? As unidades militares ucranianas estavam usando hospitais como bases de operações, em violação das Convenções de Genebra? Ocorreram cenas de soldados ucranianos armados nos corredores dos hospitais. O documentário deixa estas perguntas sem respostas.
Não é que o que vemos no filme não seja verdade. Ao invés disso, é que o filme omite aquilo que não ficaria bem para a Ucrânia. Quando você depende de unidades militares para proteção e logística, você censura a sua reportagem. Se os repórteres tivessem reportado sobre os abusos e atrocidades executadas pelas unidades ucranianas, a proteção que eles tiveram teria sido retirada. Por mais que eu admire o documentário, a mentira da omissão ainda segue sendo uma mentira. Esta é a mentira mais comum contada na guerra. Apenas repórteres que ousam relatar sem estarem incorporadas por unidades militares ficam livres para reportar a verdade. Mas isto é um trabalho muito perigoso e solitário. Esta auto-censura voluntária é uma falha séria do filme, mas não distrai do poder visceral da filmagem, nem da coragem dos repórteres.
Não há quase nenhuma cena de combate, a não ser da queima dos restos de uma bateria anti-aérea, o estrondo e a explosão de bombas russas, as colunas de fumaça negra, o rugido dos jatos russos, o barulho distante de metralhadoras e um ocasional soldado ucraniano disparando numa rua deserta.
O filme, como todos os filmes sobre guerras devem fazer, focaliza-se nos detritos humanos. Vemos homens e mulheres idosos que perderam os seus lares e suas posses, fervendo neve para ter água. Vemos cidadãos perplexos amontoados em porões. Vemos o bombardeio de um hospital de maternidade e cenas gráficas de mulheres grávidas feridas e mortas. Vemos os esforços frenéticos, que não funcionam, para salvar crianças gravemente feridas , incluindo uma menina de 4 anos de idade chamada Evangelina. Vemos mães e pais pranteando, segurando os corpos das suas crianças mortas, beijando-as pela última vez antes de cobrirem os seus pequenos cadáveres pálidos. Vemos filas de cadáveres no porão do hospital. Vemos as lágrimas dos enfermeiros e médicos que lutam inútilmente para salvar vidas. Vemos o trabalho heróico dos bombeiros e depois vemos alguns dos seus corpos empoeirados e sem vida nas ruínas bombardeadas da sua estação de bombeiros. Vemos as trincheiras recém cavadas nas quais os mortos, incluindo crianças, são empilhados um sobre o outro, no início sendo cobertos por sacos de lixo verdes e depois jogados sem cerimônias na vala como cadáveres expostos.
“A guerra é como uma radiografia: todas as entranhas humanas são visíveis”, diz um médico no filme, “Boas pessoas se tornam melhores. Pessoas más se tornam piores”.
Também vemos a vida cotidiana dos repórteres de guerra. Os repórteres invadem as vidas daqueles que passaram por tragédias e traumas indescritíveis. Muitas pessoas são filmadas como se estivessem sendo tratadas como animais exóticos num zoológico, sendo exibidos para as câmeras e audiências estrangeiras. Elas cospem veneno nos repórteres. “Prostitutos”, vocifera um pai enraivecido aos jornalistas. Há uma qualidade mercenária no nosso trabalho, por mais que seja importante contar a estória. Enquanto nós fazemos a crônica do horror, nós geralmente ficamos dormentes, apesar do que vemos e ouvimos volta para nos atormentar, especialmente durante a noite, pelo resto das nossas vidas.
Ao 11º dia do ataque, com os russos bloqueando a cidade por três lados, os jornalistas da AP tiveram que desafiar, correndo graves riscos, o toque de recolher para conseguirem uma conexão sem-fio. A vida de um repórter de guerra é consumida por estes tipos de logística, tentando ir de um local para outro, tentando descobrir o que está acontecendo, tentando encontrar uma conexão de satélite ou de telefone celular, de modo que as imagens e as reportagens possam ser enviadas.
Os repórteres de guerra têm um status privilegiado. Nós temos instituições poderosas que nos dão suporte. Nós não passamos fome. Nós temos armaduras corporais e veículos blindados. Aqueles que têm menos proteção e recursos asseguram que estejamos protegidos e sejamos evacuados, de modo que a estória possa ser contada. Obviamente, os repórteres e fotógrafos podem ser feridos e mortos. Mas as nossas chances de sobrevivência são aumentadas pelo nosso status. Volodymir, um oficial de polícia, assume riscos tremendos para ajudar a extrair os jornalistas da AP de um hospital cercado por forças russas. Ele assiste os jornalistas para escaparem da cidade com as suas filmagens. Nós aceitamos este status. Nós racionalizamos conosco mesmos que nós o merecemos. Mas nós também estamos agudamente cientes de que estas estórias que nós contamos são muitas vezes abandonadas e que, não importando os riscos, não importando quantas atrocidades nós documentamos, a maior parte do mundo fica indiferente. Quando os russos terminaram a ocupação de Mariupol, estima-se que 25 mil pessoas estavam mortas.
“Milhares morreram”, diz Chernov, o narrador do filme. “Nós seguimos filmando, mas tudo fica igual”. Ele se refere à esperança perdida de Volodymir, que disse que “a imagem de uma criança morta mudará a guerra, mas nós vimos tantas mortes, como é que podemos mudar alguma coisa?”
Os repórteres de guerra vivem com uma profunda vergonha e culpa, como Chernov admite no filme. Muito poucos repórteres de guerra são observadores neutros. Nós assumimos os riscos que assumimos porque queremos justiça. Nós queremos que aqueles que ordenaram e cometeram estes crimes sejam responsabilizados. As estórias que eu escrevi para o The New York Times, documentando as atrocidades bósnias-sérvias foram usadas como evidências no Tribunal Internacional de Haia para processar judicialmente os criminosos de guerra. É por isso que eu as escrevi. Chernov diz no filme que ele espera que, um dia, as suas imagens também levem os perpetradores à justiça.
Há um curto corte de filme do Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, alegando que as imagens transmitidas pelos repórteres da AP, do hospital-maternidade bombardeado em Mariupol foram encenadas por atores.
Mentiras descaradas sempre são as respostas oficiais para os crimes que expomos. O governo israelense transformou a mentira em uma forma de arte. Os soldados israelenses matam indiscriminadamente civis palestinos, incluindo crianças, e culpam os palestinos pelas suas próprias mortes, ou o Hamas por os usarem como escudos humanos, ou insistindo que os civis eram combatentes. Durante a guerra em Sarajevo, os sérvios bósnios tentaram espalhar a mentira que os franco-atiradores em Sarajevo estavam matando os seus próprios civis para angariar apoio internacional, como se a cidade pulverizada com fogo constante de franco-atiradores e centenas de bombas por dias tivesse uma escassez de feridos e mortos.
Na sua maior parte, o filme é cronológico. Cada dia é documentado, à medida que as forças russas apertavam o cerco. Pessoas que foram entrevistadas nas partes iniciais do filme, aparecem mais tarde, algumas vezes como cadáveres. A morte é uma companheira constante. Você procura alguém, até mesmo um amigo, e descobre que ele não existe mais. O filme faz um trabalho magistral em documentar a aleatoriedade da morte, a fúria indiscriminada das armas modernas e o desamparo daqueles capturados pelo abraço sanguinolento da guerra. Isto não é a guerra. Mas é o mais próximo possível que se pode chegar dela.
Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o www.brasil247.com
Chris Hedges é jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.
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