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Os bastidores econômicos do Acordo do Século

por Alastair Crooke | Strategic Culture Foundation

TLAXCALA - 1 de julho, 2019

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=26413

Não há novidade alguma em dizer que o ‘Acordo do Século’ é – e sempre foi – projeto, na essência, econômico. Na verdade, parece que a Casa Branca considera as ramificações políticas do tal ‘acordo’ como pouco além de consequências inevitáveis de uma arquitetura a priori econômica, com processo já em andamento.


Em outras palavras, o que se busca é que os fatos econômicos em campo modelem o resultado político – uma paisagem política atenuada que, seja como for, foi minimizada pela remoção preventiva, obra de Trump, de peças chaves de qualquer alavancagem que favorecesse os palestinos.

O arrocho financeiro final contra os palestinos está bem atestado. Por outro lado, a Autoridade Palestina (historicamente dependente da subvenção saudita) vai suavemente deslizando rumo à bancarrota; ao mesmo tempo, Gaza é mantida em dependência virtual a mais abjeta, mediante as subvenções do Qatar que gotejam sobre Gaza, com permissão dos israelenses – com as dimensões dessa derradeira ‘linha de socorro’ mensal cuidadosamente ajustada por Israel conforme o que o estado judeu defina como as normas ‘de boa conduta’ recomendáveis do Hamás (quase sempre).

Assim, por um lado, há o sítio financeiro que visa a manter os palestinos rendidos ao ‘pacote de qualidade de vida’ que há quem suponha que o ‘acordo’ gerará —, do qual a reunião no Bahrain, ainda esse mês, será a fachada comercial. Mas há outro lado menos reconhecido desse Acordo, que apareceu resumido no título de um artigo de McClatchy: Casa Branca vê o fórum egípcio de energia como um ‘mapa do caminho para a paz do Oriente Médio’.

Em artigo posterior, McClatchy publica o ‘mapa do caminho’ norte-americano de energia no Mediterrâneo Oriental, recentemente liberado para a opinião pública. E aqui se esclarece o quadro completo, incluindo o ‘fórum do gás’ patrocinado pelos EUA. “Segundo três altos funcionários do governo, aquele mapa que recentemente teve o sigilo levantado, obtido por McClatchy – motivou membros do Conselho de Segurança Nacional [dos EUA] a priorizar a formação de um fórum de gás no Mediterrâneo Oriental, que impulsionaria e simultaneamente entrelaçaria as economias de vários países que durante décadas estiveram em oposição”.

É preciso traduzir o eufemismo ‘impulsionaria e simultaneamente entrelaçaria’. Essa expressão diz que integrar Israel na esfera econômica regional é operação que se faz, principalmente, pela energia. Mas o objetivo não é integrar só Israel nessa esfera econômica egípcia, mas também tornar a Jordânia, a Autoridade Palestina (e talvez também o Líbano) parcialmente dependentes da energia israelense – ao lado de parceiros putativos, Itália, Grécia e (a parte ligada à Grécia) de Chipre — com os EUA oferecendo seu expertise, para dar corpo à estrutura do ‘fórum do gás’.

Esse é o coração do ‘acordo’. Não só a normalização política de Israel na região, mas a construção da dependência econômica de egípcios, palestinos, jordanianos (e possivelmente – mas não muito provavelmente – do Líbano) conectando todos esses países ao ‘eixo’ de geração-distribuição do gás norte-americano no Mediterrânio Oriental.

Fonte: McClatchy


E há uma inevitável subtrama em tudo isso (como McClatchy observa):

“Nesse front, o governo beneficia-se do apoio de aliados improváveis. Eliot Engel, presidente Democrata da Comissão de Relações Exteriores da Câmara de Deputados (...) disse que o projeto do fórum do gás mediterrâneo era oportunidade estratégica para que os EUA bloqueassem os esforços dos russos para influenciar a questão dos recursos locais de energia. “Creio que [o presidente russo Vladimir] Putin e a Rússia não podem nem conseguirão controlar a situação” – afirmou Engel”.


Assim sendo, o governo dos EUA está ativo em esforços bipartidários para bloquear esforços da Rússia na região: uma é a pauta para promover parcerias de energia no Mediterrâneo Oriental; e há outra pauta paralela, que ameaça com sanções empresas europeias que apoiam a construção do gasoduto Ramo Norte 2 que leve o gás russo até a Alemanha.

Mas há dois pontos nos quais tropeça, obviamente, essa noção de ‘barrar’ a Rússia, ao mesmo tempo em que se tenta normalizar Israel, em termos econômicos, na região.

O primeiro ponto, como observa Simon Henderson do Washington Institute, é a noção de que a geologia daquela área poderia contribuir a favor da Europa, ou até substituir o gás russo; essa noção “parece pouco crível, até inverossímil, considerado o estágio atual das descobertas. Vários novos campos dos mais gigantes, como o Leviathan ou o campo Zohr no Egito, teriam de descobertos, antes de se poder aceitar como verossímil alguma ‘nova’ realidade”:

“A ideia de que a energia do Mediterrâneo Oriental poderia impactar o equilíbrio da energia europeia, de tal modo que abalasse a fatia russa daquele mercado, é delirante – a sede da Europa por gás é tão gigante, que até imaginar aquela possibilidade já é delírio. E a capacidade da Rússia para fornecer todo aquele gás é tão imensa que também é delírio imaginar que se possa suprir todo aquele gás, com as reservas limitadas que se conhecem até agora” – disse Henderson. – “Ter esperança de encontrar gás é muito diferente de encontrar gás”.


Em resumo, o ‘eixo’ egípcio para exportação de gás só pode ‘funcionar’, no pé em que estão as coisas hoje, se se juntarem vários dos pequenos campos descobertos no Mediterrâneo Oriental – e acrescentar-se grande contribuição israelense – levados por gasodutos até as plantas egípcias de liquefação de gás, próximas de Port Said e Alexandria. Mas a disponibilidade global de Gás Natural Liquefeito é alta, os preços são tremendamente competitivos, e não é absolutamente ‘garantido’ que ‘o eixo’ egípcio venha a ser comercialmente viável.

E aqui está a parte mais difícil: a geopolítica. Qualquer movimento que vise a integrar Israel naquela região sempre será movimento sensível. Assim, por mais que funcionários dos EUA tenham-se mostrado otimistas quanto a o Egito realmente liderar o próprio ‘fórum do gás’, depois da reunião entre os presidentes Sisi e Trump, em abril, o Egito – um dos pilares do plano dos EUA para confrontarem o Irã –, imediatamente depois da visita retirou-se da aliança militar estratégica que o governo Trump tentava construir contra o Irã: a Middle East Strategic Alliance (MESA), para grande consternação dos norte-americanos.

Henderson observa que, quando se trata de acordos de energia, nada consegue reduzir a resistência popular contra Israel, sequer a ideia de haver um tratado. Apesar de qualquer ‘tratado de paz’ que se invente, muitos jordanianos continuam a se opor à ideia de usar o gás do campo (israelense) Leviathan, para gerar energia em grande escala a partir do próximo ano. Para tentar amainar a ira popular, Amman tem usado as expressões “gás do norte” ou “gás norte-americano”, destacando o nobre papel dos EUA na produção do gás.

Mas há também o outro lado da questão: bem claramente, o Egito não quer ser parte de uma aliança liderada pelos EUA contra o Irã (MESA). Simultaneamente porém, por qual razão o Egito – ou a Jordânia ou qualquer outro membro do ‘fórum do gás’ – se interessaria por se alinhar estreitamente aos EUA numa estratégia anti-Rússia para a região?

É fato que o Egito assinou inicialmente como membro do projeto dos EUA para seu ‘eixo do gás’. Mas ao mesmo tempo o Egito também está assinando um contrato de $2 bilhões para comprar mais de 20 jatos de combate Sukhoi SU-35 russos. Algum ‘parceiro’ de algum ‘eixo’ de gás dos EUA acredita mesmo que haveria ‘eixo’ egípcio capaz de disputar espaço com o gás russo na Europa?

Provavelmente não há. Porque, no final das contas, a mera ideia de que um ‘eixo’ putativo de energia consiga ‘impedir a Rússia’ já é fantasiosa que chegue. A União Europeia, por exemplo, não dá qualquer sinal de interesse no muito discutível gasoduto de $7 bilhões apoiado pelos EUA para conectar o Mediterrâneo Ocidental, por Chipre, à Grécia. O solo submarino é muito problemático e a costa, alta demais.

Claro que Israel também tem esperanças de descobrir mais gás. Mas o prazo final para propostas relacionadas a 19 dos seus blocos offshore acaba de ser adiado para meados de agosto – o que sugere pouco interesse dos investidores. Por enquanto, as majors do petróleo parecem mais interessadas pelos blocos cipriotas, no que tenha a ver com apresentar propostas.

Mas a política novamente se impõe: ser parte do ‘fórum do gás’ do qual o governo de Nicosia (ligado à Grécia) é membro-chave coloca o fórum e seus membros numa rota de colisão potencial com a Turquia, que não abrirá mão das próprias ambições sobre a bacia do Mediterrâneo Oriental (e acaba de anunciar que estabelecerá bases navais e aéreas no norte de Chipre). Tampouco o Líbano desistirá. Sisi e Erdogan são separados por forte antipatia pessoal, sim, mas e quanto aos demais? Aceitarão ser arrastados para esse tipo de disputa?

Seja como for, a Rússia não dá sinais de grande interesse nas possibilidades produtivas do Oriente Médio Mediterrâneo. Em vez disso, os russos mantêm-se focados num corredor-gasoduto do Irã e Iraque até a Europa, via Turquia ou, eventualmente, a Síria.

Em resumo, pois, a parte do ‘Acordo’ Kushner-Trump que tenta integrar Israel à economia regional da energia parece estar sendo recebida por todos os lados com ceticismo e desconfiança, tanto quanto as demais partes do ‘Acordo’.

Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=26413


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