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Argentina: Dívida, FMI e auditoria num contexto inédito

Macri não pôde transferir a crise para o próximo presidente e deixará uma economia em ruínas. Ele livrou-se da antecipação das eleições e de enfrentar uma rebelião popular semelhante à do Equador, mas desapareceu no final do mandato

por Claudio Katz | katz.lahaine.org

Esquerda.net - 22 de outubro, 2019

https://www.esquerda.net/dossier/argentina-divida-fmi-e-auditoria-num-contexto-inedito/63924

O decadente presidente despede-se com atos patéticos, promessas ridículas e uma gestão desorientada. Arriou as suas últimas bandeiras neoliberais com a intervenção nos preços, o controle cambial, a lei do abastecimento1 e o início do default2. Como implementa essas medidas com grande relutância, os resultados são negativos. Mas a grande incógnita é o alcance da bomba que está a adiar. Ninguém sabe se o pior já passou.

Improvisações por atacado

A fuga de capitais desencadeou a queda atual. A saída de fundos atingiu o pico mais elevado desde 2003 e acumula 20.000 milhões de dólares desde o início do ano. As reservas são sorteadas ao ritmo da desvalorização, entre dias de leilão furioso e jornadas de simples gotejamento.

Os próprios economistas ortodoxos exigiram a introdução do controle cambial e Macri atirou a toalha. Ele não conseguiu deter a hemorragia vertiginosa de dólares e recorreu ao denegrido controle. Improvisou disfarces dessa regulação, mas encaminha-se para redobrar todas as restrições cambiais.

Já se avizinham novas limitações à compra de moedas (turismo, escrituras, pagamento de importações) e é provável que o mercado seja dividido, num dólar turístico-financeiro e outro comercial. O chamado [dólar] “contado com liquidação” (que as empresas utilizam para comprar títulos no país e vendê-los no estrangeiro) é a antecipação dessa segmentação.

Os comunicadores adaptam-se ao novo cenário e arquivam os seus bordões contra o controle cambial. Mas como o governo o aplica tarde e sem nenhuma convicção, o controle da moeda naufraga rapidamente. Esta supervisão requer regulamentações e inspeções, que foram retirados pelos funcionários da Cambiemos3.

A mesma ineficiência se verifica na obtenção dos dólares retidos pelos exportadores. A obrigação de liquidar essas divisas foi ignorada pelas empresas de cereais. Elas sabem que o governo não quer, nem pode forçá-las a entregar os dólares e esperam por um pico superior de desvalorização para recolher os fundos. Observam atentamente a cotização do dólar azul4 e especulam com o melhor momento para vender.

O maior perigo em andamento é a reativação da corrida bancária. Os pequenos depositantes começaram a retirar os seus depósitos seguindo o comportamento dos grandes jogadores. A memória do Plano Bonex (1989)5 e do corralito (2001)6 mantém ativados todos os alarmes da classe média.

O governo respondeu com a extensão do horário de funcionamento dos bancos e a importação massiva de notas dos EUA. Também explicou que a contrapartida atual dos depósitos em dólares são empréstimos na mesma moeda aos exportadores e aos resseguros pelo Banco Central. Mas, como os decrescentes dólares desse organismo são reclamados por vários pedidos, aumentam as dificuldades para satisfazer os investidores.

Os bancos não enfrentam apenas a saída contínua de depósitos. Eles substituíram a sua função tradicional de crédito pela especulação com títulos públicos de alto rendimento. Por isso, incubaram a bomba dos Lebacs7, que acabou liquefeita com a última mega-desvalorização. O destino dos papéis substitutos (Leliqs) é mais incerto. Se o refinanciamento do Banco Central se esgotar, poderá ocorrer uma troca compulsiva. Os bancos já começaram a fugir para outros títulos, mas o círculo da sua louca bicicleta está a fechar-se.

A tragédia social

A inflação, que Macri prometeu resolver facilmente, descontrolou-se. Já se aproxima de 60% ao ano e ainda falta a transferência para os preços de retalho dos efeitos da última desvalorização. Os capitalistas pressionam a um ritmo desenfreado, ignorando os remendos inconsistentes do governo. O regime de "preços essenciais" e a redução do IVA não contiveram a carestia.

A credibilidade dos funcionários que se despedem é tão reduzida quanto a eficácia das suas ações. Os próprios ministros esquecem os decretos que emitiram no dia anterior. O congelamento por três meses do preço da gasolina durou apenas 33 dias e o severo programa de emissão zero foi diretamente abandonado.

O partido no poder perdeu a gestão de todas as chaves da economia. A queda de 2,7% do PIB em 2019 impõe um ciclo recessivo, que desvaloriza as empresas a um nível comparável a 2002. A cotização bolsista das principais empresas caiu 80% e está cingida aos grandes investidores estrangeiros. Será necessário verificar se se consuma outra grande onda de desnacionalizações no aparelho produtivo.

Este gravíssimo contexto económico provocou uma grande tragédia social. As desvalorizações, os “tarifazos”8 e a penalização dos rendimentos populares fizeram disparar a pobreza para 35,4% e essa percentagem chegará aos 40% antes do final do ano. Num dos principais países exportadores de alimentos, existem cinco milhões de pessoas que não têm acesso ao consumo básico. Basta visitar as cantinas comunitárias para corroborar esta nova epidemia de insegurança alimentar.

A [lei da] emergência contra a fome aprovada no Congresso apenas redistribui itens de um orçamento subexecutado. De facto, incorpora uma quantia de dinheiro muito pequena que não assegura leite, carne ou almoços suficientes a milhões de indigentes. O drama desse segmento é complementado pela pauperização dos trabalhadores empregados, que perderam 30% do seu salário desde 2015. Esta dantesca herança de Macri pode até piorar, se surgirem novas convulsões cambiais, bancárias ou inflacionárias, antes da assunção do novo presidente.

Um default em expansão

A herança mais impactante de Macri é o novo default da dívida. O grande fantasma que o governo utilizou para denegrir a oposição e atemorizar os eleitores foi finalmente corporizado pelo próprio partido no poder. Por agora, o incumprimento é limitado, mas tem grandes hipóteses de se espalhar.

A extensão forçada dos prazos dos vencimentos afeta vários títulos de curto prazo. Trata-se de títulos internos que o governo não pôde saldar e prometeu refinanciar com um plano que continua a elaborar. Até agora, nem sequer se sabe quais são os papéis incluídos nessa reestruturação.

Macri implementa o default mais insólito dos oito que a história nacional arrasta. Com a "melhor equipa dos últimos cinquenta anos", ele deixou de pagar uma dívida emitida durante o seu próprio mandato. Essa decisão envolve um passivo em moeda nacional, que em muito poucos países fica sem controle.

Os títulos não pagos são geralmente usados pelas empresas para financiar os seus negócios diários. Essas empresas agora substituem esses documentos pelo elevado crédito bancário ou pelo simples corte na cadeia de pagamentos. Essa adversidade agrava a depreciação das empresas e o consequente colapso da economia. Mas, para encobrir o default, os propagandistas oficiais encontraram um novo eufemismo: “reperfilamiento de la deuda”9.

Com essa denominação chegou ao Congresso uma proposta de troca de outra parte do passivo de longo prazo, emitida sob jurisdição argentina. Os tubarões das finanças (que continuam a gerir o ministério das Finanças) aspiram à repetição do lembrado negócio de Cavallo ("megacanje")10. Eles pretendem inflacionar com taxas mais altas uma dívida que se encaminha para o default, para lucrar com futuros litígios de cobrança. Algumas notícias apontam para Caputo11 e para os grandes fundos (Templeton, BlackRock) ou bancos (J.P. Morgan) como estando por trás desta operação.

Os media especializados só discordam da data ou do alcance de um default mais geral. A taxa de risco-país12 confirma essas previsões, dada a evidente ausência dos dólares necessários para liquidar os compromissos. Atribuir este colapso ao enterro eleitoral sofrido por Macri nas PASO13 é outro despiste do jornalismo cortesão [argentino]. Esse resultado apenas acrescentou outra anedota ao desmoronamento financeiro iniciado em abril de 2018. Nesse momento, o crédito foi cortado e apareceu a corda que o FMI enfiou no pescoço da Argentina, Macri bateu todos os recordes imagináveis: aumento da dívida a um ritmo de 4 milhões de dólares por hora, 90 milhões por dia, 3.000 milhões por semana e 35 mil milhões por ano. Deixa ao seu sucessor pagamentos de 223.000 milhões de dólares, equivalentes a 40% do produto, com 77% de juros e capital em moeda estrangeira.

Estes passivos asfixiam com a mesma intensidade as províncias, que desde 2016 multiplicaram por seis o seu endividamento. O encargo já explodiu em Chubut, que tem 70% das suas receitas comprometidas com os credores e paga os salários em parcelas. O mesmo drama está a chegar a outras províncias.

Suspender e reordenar os pagamentos

O default de Macri começa a modificar as banalidades do Cambiemos. A prioridade imutável do pagamento aos credores já empalidece perante outras urgências, como a fome gerada pelo ajuste. Também a cessação de pagamentos perdeu o seu estatuto de conceito proibido. Muitos percebem a necessidade de transformar a generalização do caos numa suspensão ordenada dos pagamentos. Essa gestão permitiria conter a devastação da economia.

Um alívio da dívida é imprescindível para recompor as receitas e reativar a produção. Sem essa pausa, é duvidoso que aconteça a recuperação esperada a seguir a uma recessão. Não basta o superávit comercial ou a elevada capacidade ociosa que provocou a crise. O torniquete continuará a causar um círculo vicioso de maiores quedas, se os financiadores continuarem a cobrar enquanto a Argentina definha.

As expectativas numa reativação espontânea a partir de dezembro baseiam-se na analogia com 2002. Mas convém lembrar que essa recuperação foi sustentada em cinco anos de parênteses total no pagamento da dívida. A mesma suspensão é mais necessária na conjuntura atual, face aos severos limites que a saída da recessão enfrenta.

Apesar do descomunal ajuste fiscal, Macri sairá com um desequilíbrio primário longe do superavit comprometido com o FMI. O défice secundário é enorme devido à acumulação de juros (que já engoliram 21,5% dos recursos tributários) e o buraco quase-fiscal criado pelos Leliqis14 é diretamente explosivo. Neste quadro, a utilização da despesa pública para “aquecer a economia” choca com as exigências de cortes fiscais, que os financiadores mantêm.

É verdade que o setor externo apresenta novamente superavites significativos, após uma tormentosa escalada de desvalorizações. Mas esse resultado deve-se à queda das importações e à significativa colheita que se seguiu à seca. Convém notar que a estagnação dos preços internacionais não augura cenários auspiciosos para o comércio externo.

Por outro lado, o investimento privado continua a ser esmagado pela altíssima inflação, pelas astronómicas taxas de juros e pela brutal contração do mercado interno. Para reativar o paralisado circuito fabril, há que neutralizar essas restrições.

A recomposição do consumo deveria ser o motor da recuperação, após a impressionante queda no poder de compra. Mas essa ressurreição não acontecerá, se a economia permanecer sujeita à cadeia da dívida.

Alternativas de renegociação

Alberto Fernández sublinhou a conveniência de renegociar a dívida, em vez de suspender o seu pagamento. Pretende lançar negociações que incluam o prolongamento dos prazos e (ou) uma eventual redução do montante. Em ambos os casos, preveem-se conversações muito duras.

Das diferentes opções em jogo, o futuro presidente ponderou o modelo uruguaio, que estendeu os prazos sem nenhuma penalização significativa do passivo. É a alternativa preferida pelos fundos de investimento, que ocultam o severo ajuste necessário para implementá-lo. Também omitem que o volume de títulos uruguaios era muito pequeno, em comparação com a montanha de obrigações que a Argentina enfrenta.

Quem observa com mais realismo o futuro da atual hipoteca destaca a alta probabilidade de um corte no montante da dívida. Nas últimas 10 reestruturações internacionais de passivos, seis delas registaram reduções desse tipo (Argentina, Iraque, Equador, Costa do Marfim, Grécia e Ucrânia). O corte médio foi de 40%, nas 187 recomposições de dívidas nacionais realizadas desde 1970.

O caso mais recente da Ucrânia (2015) ficou abaixo dessa média e a redução efetiva da Grécia é motivo de controvérsia. O que todos sabem sobre este país é o interminável pesadelo de ajustes que o seu povo sofre.

O maior corte recente registou-se na Argentina em 2002-2007. É o antecedente que Alberto propõe evitar. Ele argumenta que o país não pode repetir - em tão curto prazo - um corte tão drástico. Mas esquece que, com a mesma brevidade, se consumou outro escandaloso endividamento.

A grande novidade da próxima renegociação será o lugar do FMI, como principal credor do passivo. Esse organismo nunca esteve tão envolvido nessa condição. Desembolsou num brevíssimo prazo 45.000 milhões de dólares e subitamente converteu a Argentina no seu grande devedor. O único objetivo dessa monumental concessão de dinheiro foi o financiamento da fracassada reeleição de Macri pedida por Trump.

Atualmente, o FMI está muito dividido e aumenta o número de passagens de culpas, para dirimir quem carregará com a responsabilidade de semelhante aventura. A prioridade do organismo é cobrar e, portanto, incentiva a aplicação de um corte aos credores privados. Essa flagrante violação das suas normas é ditada pelas necessidades de cobrança. Por isso exige um corte nos pagamentos aos outros.

O Fundo procura evitar um default na própria carne, o que afetaria a instituição governante de todos os refinanciamentos mundiais. Além disso, os seus diretores percebem que a crise argentina pode gerar impactos globais. Se afetar diretamente o próprio Fundo, provocaria novas turbulências nos mercados.

De momento, o FMI tateia o terreno e lança um jogo duplo. Por um lado, manteve o bloqueio à concretização da última parcela do seu mega-crédito (5.400 milhões de dólares). Os favores de última hora de Macri eram insuficientes. Não bastou o decreto que autoriza a perigosa importação de resíduos reciclados. A raiva do FMI com o seu falhado fantoche do Cone Sul persiste, apesar da conversão da Argentina num aterro sanitário dos Estados Unidos.

Mas o Fundo autorizou, ao mesmo tempo, o uso de outros 7.000 milhões de dólares (que o Banco Central mantinha como reserva intocável), para abrir uma porta de negociação com Fernández. Essa piscadela evita a imediata ampliação do default a outros títulos.

O FMI precisa esconder as suas fraquezas para preservar a imagem de um organismo todo-poderoso, face ao buraco criado pela insolvência do seu último cliente. Como em qualquer grande dívida, o problema já se localiza na contabilidade do credor. O valor do passivo não é tão importante quanto o seu impacto. O caso argentino tende a renovar em várias latitudes, a crítica generalizada ao comportamento saqueador dos organismos financeiros internacionais.

Auditoria para conhecer os responsáveis

O esquema económico, o governo Macri e o FMI partilham a responsabilidade pelo dramático cenário atual. A incidência do modelo salta a vista e repete a nefasta conclusão de todas as experiências neoliberais. Esse colapso não foi um propósito deliberado do partido no poder, para disciplinar a população e enriquecer os seus sócios. Macri não queria imolar-se, nem acabar zangado com os grandes capitalistas. O que aconteceu tem uma explicação mais simples. Cambiemos repetiu a mesma sequência de todos os seus antecessores de direita.

O governo tenta diluir essa culpabilidade direta com despeitadas críticas a todos os argentinos ("somos irresponsáveis"). Acusa o conjunto da sociedade ("ela não nos acompanhou") e remete os males para a história nacional ("sempre endividados"). Mas nenhuma dessas desculpas dissolve a responsabilidade dos funcionários que assinaram a concretização da hipoteca.

Esses indivíduos devem responder por obrigações concertadas com infinitas irregularidades. A partir do momento em que a dívida não passou pelo Congresso, a sua legalidade é altamente questionável. Foi consumada através de decretos simples e incongruentes. A ilegitimidade desta operação é sublinhada por vários movimentos e personalidades, que exigem a publicidade de todos os termos do acordo com o FMI. Esse conhecimento permitiria promover a sua nulidade.

A responsabilidade do Fundo é óbvia. O organismo violou a sua própria carta orgânica ao conceder um empréstimo enorme (que renovou várias vezes), sem considerar os incumprimentos do devedor. Mais grave foi o aval concedido à fuga de capitais, que é explicitamente penalizado neste tipo de créditos.

O FMI argumenta que ajudou um requerente de auxílio, mas esconde que o fez por exigência de Trump para sustentar Macri. Esquece, além disso, que prometeu atuar com sensibilidade social e deixou uma terrível sequela de indigência.

A dívida com o FMI é uma grande fraude. Todo o país assume um compromisso por dinheiro que se esfumou vertiginosamente. Nem um só dólar dos 50.000 milhões emprestados se traduziu em investimentos. Esses recursos foram capturados por grupos financeiros que consumaram a maior fraude da história recente. Eles devem enfrentar as consequências dessa apropriação. É a dívida de um punhado de milionários e não a obrigação de todos os argentinos.

A fuga de capitais consumou-se nessa ocasião, à vista de todos os cidadãos. Envolve especialmente os 80.000 milhões de dólares expatriados nos últimos quatro anos. Como existem dados muito precisos dessas transferências, uma rápida auditoria identificaria os beneficiários dessa operação. Antes de discutir quanto e como se paga a dívida, é necessário esclarecer quem se apropriou desse dinheiro.

As experiências de auditoria da Grécia e do Equador poderiam servir de modelos para a investigação da Argentina. Não é necessário voltar ao passado ditatorial, nem lidar com a documentação perdida. Há que pôr a lupa em funcionários como Caputo, que emitiram insólitos títulos a 100 anos e fizeram negócios com as suas próprias consultoras.

A imediata repatriação de todo o património do alto funcionário público do Cambiemos constituiria um simbólico início do novo tratamento da dívida. Também seria apropriado investigar como foi devastado o Fundo de Garantia das pensões de reforma, que Macri recebeu com 67.000 milhões de dólares e devolve com menos de 22.000 milhões.

Há vários instrumentos para concretizar uma auditoria acelerada. O branqueamento de capitais oferece uma base de dados para entrecruzar informações. Esta operação revelou 116.800 milhões dos 300.000 milhões de dólares liquidados no estrangeiro.

A auditoria também é uma necessidade política para qualquer governo que pretenda legitimar a sua gestão. É imprescindível saber o que aconteceu com a dívida. Essa clarificação seria o ponto de partida de um verdadeiro "nunca mais" (como aconteceu com a CONADEP15). Isso introduziria uma quebra definitiva na fraude recorrente de que a Argentina sofre.

Reconstituir desmobilizando?

Alberto Fernández ignora a ilegitimidade da dívida e sugere "fechar a brecha" com um borrão e uma nova conta. Mas a sua mensagem de reconstruir o país "entre todos" (e sem que ninguém pague) carece de realismo. Não há forma de recompor a economia se a impunidade do país for consagrada. A ilusão de reconstruir a Argentina com os seus destruidores será aproveitada pela direita para reconstruir as suas fileiras. Utilizará o alívio para preparar outro retorno.

Alberto espera enfrentar um cenário semelhante ao predominante durante a administração de Néstor Kirchner. Parte do pressuposto de que a reativação do consumo e da produção se seguirão ao Pacto Social e estima que os empresários vão relegar a rentabilidade para facilitar a recuperação da economia. Mas esquece que os capitalistas respondem sempre com o seu bolso a estas mensagens do coração. Desconhece, além disso, que esse contexto idílico pode ser diluído se for repetido o turbulento cenário que, por exemplo, Menem enfrentou no início do seu mandato. Naquela ocasião, uma crise não resolvida demorou dois anos para chegar ao fundo.

Na campanha eleitoral, Alberto transmite a cada público o que ele quer ouvir. Por um lado, sugere mensagens progressistas de melhoria salarial, recuperação dos rendimentos, penalização dos banqueiros, impostos sobre o património e planos de caderneta alimentar.

Ao establishment fala com outra linguagem de garantia nos negócios. Os atraídos pela exploração de Vaca Muerta16 com relações externas de confiança são a contrapartida do modelo boliviano de captura estatal da renda. Os candidatos a ocupar o Ministério da Economia são mais fortes. Ponderam o dólar competitivo e exigem o adiamento da redistribuição da renda.

O mais preocupante é a imediata cogestão de uma transição que avalize uma inflação galopante. Essa carestia poderia consumar o "trabalho sujo" que a última mega-desvalorização iniciou. Apresentar essa agressão como um dado alheio ("governa Macri") é tão enganador como exigir que "se cuidem os dólares das reservas", omitindo as consequências de desvalorização desta mensagem.

Alberto promete um alívio que chegaria com as ruas vazias, através das urnas. Ao enfatizar a conveniência da desmobilização popular, ele pediu o abandono das manifestações sociais e o levantamento da greve aeronáutica. Os seus porta-vozes afirmam que é um apelo transitório para aumentar a base eleitoral. Mas preparam uma mensagem semelhante para os próximos meses, que se oporá às reivindicações ativas a um governo recém-eleito.

Neste terreno da mobilização joga-se a possibilidade de recompor a renda popular. Sem luta social, triunfos por baixo e mudanças nas relações de forças, não haverá melhorias significativas para a maior parte da população. Convém recordar que as conquistas alcançadas durante o Kirchnerismo foram um eco tardio da rebelião de 2001. Qualquer confronto com o FMI sem o povo nas ruas será uma batalha perdida.

A gravitação da mobilização verificou-se nas últimas semanas. As marchas e os acampamentos dos movimentos sociais impuseram a sanção acelerada da lei de emergência alimentar, com o evidente propósito de descomprimir a rua. Não se obteve tudo o que foi pedido (reabertura dos planos para os novos desempregados e aumento da AUH17), mas a agenda virou para o problema da fome.

O alto nível de organização dos movimentos sociais constitui uma diferença com 1989 e 2001 que assusta as classes dominantes. Essa força abre caminhos para impor as reivindicações populares. O mesmo ocorre com o reforçado movimento sindical, se emergir da letargia imposta pela liderança. A ação direta define o futuro do país. É o grande dilema atual. Ocupar as ruas para recuperar conquistas ou aceitar a desmobilização e renunciar ao que se perdeu.

Resumo

Macri deixa uma herança catastrófica, com improvisações finais opostas ao seu credo neoliberal. Ele iniciou um insólito default, que deveria transformar-se em suspensão e na reordenação de todos os pagamentos. Outras alternativas de renegociação não permitirão recompor o rendimento popular. O FMI partilha com o modelo económico e o governo a responsabilidade pelo colapso atual. Enfrenta, além disso, severos questionamentos que afetam o seu estatuto de credor privilegiado. Para esclarecer como a fuga de capital foi financiada, é apropriado implementar uma auditoria, que surgirá da mobilização popular. Essa presença na rua é indispensável para recuperar o que foi perdido.

Notas do tradutor:

1 Lei de emergência alimentar prolongada até 2022 em 18 de setembro de 2019 (ver notícia aqui (link is external))

2 Ver notícia: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/segunda-agencia-de-risco-fala-em-default-argentino.shtml (link is external)

3 Cambiemos é coligação de direita da Argentina que foi encabeçada por Mauricio Macri e o levou à presidência da República em 2015.

4 Cotação do dólar no mercado paralelo.
5 Plano Bonex (1989) – Plano do governo de Carlos Menem, impondo a troca compulsiva dos depósitos a prazo por títulos públicos, denominados Bonex 89. (ver wikipedia em espanhol (link is external))

6 Corralito - Restrição aos levantamentos bancários, perante uma corrida aos bancos. Foi imposto na Argentina, em Dezembro de 2001, pelo governo de Fernando de La Rúa.

7 “Leliqis” são títulos de dívida de curto prazo com elevadas de juro, negócio altamente favorável aos bancos. “Lebacs” são títulos de dívida de curto prazo em pesos ou dólares. (veja em esquerda.net o artigo: Argentina: o peronismo e a esquerda face ao ocaso de Macri)

8 “Tarifazos” são brutais aumentos de tarifas de transportes e serviços públicos, impostos pelo governo de Macri.

9 “Recriação do perfil da dívida”, envolvendo ampliar prazos, reduzir dívida e juros.

10 “Megacanje” (“megatroca”, operação financeira feita pelo governo argentino em 2001, no governo de Fernando de la Rúa, tendo como ministro da Economia Domingo Cavallo. A operação consistia no adiamento por três anos do vencimento de diversas dívidas que venciam antes de 31 de dezembro de 2010, aumentando os juros da dívida em 7% por ano. As taxas de juro efetivas foram entre 14,5% e 16% ao ano e a dívida aumentou 2.255 milhões. (ver wikipedia em espanhol (link is external))

11 Luis Andrés Caputo é um economista argentino, que foi ministro das Finanças da Argentina, entre janeiro de 2017 e junho de 2018, e presidente do Banco Central da Argentina, entre junho e setembro de 2018. (ver Luis Caputo wikipedia em espanhol (link is external))

12 Risco-país é um conceito económico-financeiro que pretende relacionar a possibilidade de mudanças políticas, sociais ou económicas num país poderem provocar impactos negativos no valor dos ativos nesse país. (ver wikipedia (link is external))

13 PASO – eleições primárias realizadas em 11 de agosto de 2019.

14 Leliqis títulos de dívida de curto prazo com elevadas de juro, negócio altamente favorável aos bancos.

15 CONADEP – Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, criada em dezembro de 1983 pelo presidente Raúl Alfonsín para investigar os desaparecimentos de pessoas e violações dos direitos humanos durante o período da ditadura militar argentina dos anos 70 e 80 do século XX. (ver wikipedia em espanhol (link is external))

16 Vaca Muerta formação geológica de petróleo de xisto e gás de xisto, com 30.000 quilómetros quadrados. (ver wikipedia em espanhol (link is external))

17 AUH - Asignación Universal por Hijo, subsídio por cada filho menor ou incapacitado que beneficia pessoas desempregadas ou que ganham abaixo do salário mínimo. (ver wikipedia em espanhol (link is external))

18 Claudio Katz é economista, investigador do CONICET (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina), professor da UBA (Universidade de Buenos Aires) e membro dos EDI (Economistas de Izquierda). A sua página na internet é: www.lahaine.org/katz (link is external)

Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net

Claudio Katz é um economista argentino, militante e ativista dos direitos humanos. Nascido em 1954. Cursou seus estudos de Economia na Universidade de Buenos Aires (UBA), onde também é doutor. Publicou em mídias da Argentina, Brasil, México e países da Europa. É o professor associado regular da cátedra "Economia para historiadores" da Faculdade de Filosofia e Letras.

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