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Primeiro, Assange. Depois, todos nós

Os cidadãos e a imprensa têm direito de enfrentar o poder? Ataque ao criador do Wikileaks revela que o Ocidente rendeu-se às corporações e abandonou a bandeira da liberdade. É preciso descobrir como resgatá-la

por Chris Hedges | TruthDig

Outras Palavras - 11 de abril, 2019

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A prisão, nesta quinta-feira, de Julian Assange, desmente todo o discurso sobre o Estado de Direito e a liberdade de imprensa. As ilegalidades praticadas pelos governos do Equador, da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos na captura de Assange são sinistras. Elas pressagiam um mundo em que as ações internas, abusos, corrupção, mentiras e crimes – inclusive os de guerra – praticados por Estados corporativos e pela elite governante global serão escondidos do público. Elas pressagiam um mundo em que aqueles que mantêm coragem e integridade para expor o abuso de poder serão caçados, torturados, submetidos a julgamentos farsescos e condenados a penas perpétuas, em confinamento solitário. Elas pressagiam uma distopia orwelliana em que a informação é substituída por propaganda, banalidades e distração. A prisão de Assange, temo, marca o início oficial do totalitarismo corporativo que ameaça definir nossas vidas.

Sob que lei o presidente equatoriano, Lenin Moreno, liquidou de forma caprichosa os direitos de Julian Assange ao asilo, como refugiado político? Sob que lei Moreno autorizou a polícia britânica a entrar na embaixada equatoriana – que tem status diplomático de território soberano – para prender um cidadão equatoriano naturalizado? Sob que lei a primeira-ministra Theresa May ordenou que a polícia britânica agarrasse Assange, que nunca cometeu um crime? Sob que lei o presidente Donald Trump pediu a extradição de Assange, que não é cidadão norte-americano e cuja organização noticiosa não está situada em território dos Estados Unidos?

Estou certo de que advogados governamentais estão, agora, praticando os contorcionismos que se tornaram regra nos Estados corporativos, servindo-se de argumentos legais para extirpar direitos por meio de decisões no Judiciário. É assim que temos o direito à privacidade, mas nenhuma privacidade. É assim que temos eleições “livres” financiadas por dinheiro corporativo, narradas por uma mídia corporativa condescendente, tudo sobre férreo controle corporativo É assim que temos um processo legislativo em que lobistas das corporações escrevem as leis, e políticos contratados pelas empresas as votam. É assim que temos o direito ao devido processo judicial sem nenhum processo devido. É assim que temos governos – cuja responsabilidade fundamental é proteger os cidadãos – que ordenam e executam o assassinato de seus próprios cidadãos (como o clérigo Anwar al-Awlaki e seu filho de 16 anos, mortos por ordem de Barack Obama). É assim que há uma imprensa legalmente autorizada a publicar informação secreta vazada, e um editor numa cela na Inglaterra, aguardando extradição para os Estados Unidos, e uma autora de denúncias, Chelsea Manning, numa cela norte-americana.

A Grã-Bretanha usará, como cobertura legal para a prisão, o pedido de extradição de Washington, baseado em acusações de conspiração. Este argumento legal, num Judiciário autónomo, seria desprezado pela corte. Infelizmente, não há mais, nos EUA, um Judiciário autónomo. Muito em breve saberemos se ele ainda existe no Reino Unido.

Assange obteve asilo na embaixada equatoriana em 2012, para evitar extradição para a Suécia para responder questões sobre supostas ofensas sexuais, que ao final foram retiradas. Assange e seus advogados sempre argumentaram que, se colocado sob custódia sueca, ele seria extraditado para os Estados Unidos. Assim que ele obteve o asilo, e a cidadania equatoriana, o governo britânico recusou-se a garantir-lhe passagem segura para o aeroporto de Londres, aprisionando-o na embaixada por sete anos, durante os quais sua saúde deteriorou continuamente.

O governo Trump tentará julgar Assange por acusações de que conspirou com Chelsea Manning em 2010 para roubar os segredos de guerra sobre o Iraque e o Afeganistão obtidos pelo WikiLeaks. Meio milhão de documentos internos vazados por Manning do Pentágono e do Departamento de Estado, junto com o vídeo de 2007, de pilotos de helicóptero dos EUA atirando despreocupadamente em civis iraquianos, inclusive crianças, e em dois jornalistas da Reuters, ofereceram evidência abundante da hipocrisia, violência indiscriminada e uso rotineiro de tortura, mentiras, propinas e táticas cruas de intimidação pelo governo dos EUA em sua diplomacia e guerras no Oriente Médio. Assange e o WikiLeaks permitiram – é o trabalho mais importante da imprensa – que enxergássemos os trabalhos clandestinos do Império, e por isso tornaram-se presas deste Império.

Os advogados do governo norte-americano tentarão separar o WikiLeaks e Assange do New York Times e do The Guardian, que publicaram, ambos, o material vazado por Manning. Para fazê-lo, denunciarão Assange por “roubo” dos documentos. Manning foi pressionada, durante sua detenção e julgamento – repetidamente e muitas vezes com brutalidade – a implicar Assange na obtenção do material. Recusou-se repetidamente a fazê-lo. Está no momento encarcerada por sua recusa a testemunhar, sem a presença de seu advogado, diante do júri reunido para o caso de Assange. Barack Obama ofereceu a Manning, condenada a 35 anos, clemência, depois de ela ter cumprido sete anos numa prisão militar.

Quando os documentos e vídeos que Manning entregou a Assange e ao WikiLeaks foram publicados e disseminados por publicações como o New York Times e o Guardian, a mídia voltou-se contra Assange, de modo insensível e louco. Organizações que haviam publicado o material do WikiLeaks em várias edições, logo aceitaram ser veículos de propaganda obscura para desacreditar Assange e sua publicação. Esta campanha coordenada foi detalhada num documento do Pentágono, também vazado, preparado pelo Setor de Contra-inteligência Digitale datado de 8 de março de 2008. O documento pedia que os EUA destruísse o “sentimento de confiança” que é o “centro de gravidade” do Wikleaks e a reputação de Assange.

Assange, que graças aos vazamentos de Manning havia exposto os crimes de guerra, as mentiras e as manipulações do governo de George W. Bush, atraiu a ira do establishment do Partido Democrata ao publicar 70 mil e-mails hackeados, que pertenciam ao Comité Nacional e a dirigentes partidários. Os e-mails foram copiados da conta de John Podesta, o chefe de campanha de Hillary Clinton. Eles expuseram a doação de milhões de dólares, à Fundação Clinton, pela Arábia Saudida e o Qatar, dois dos grandes financiadores do Estado Islâmico. Também expuseram os 657 mil dólares que a Goldman Sachs pagou a Hillary Clinton por palestras – uma soma tão alta que só pode ser considerada suborno. Expuseram as incessantes mentiras de Hillary. Os e-mails mostraram, por exemplo, que ela dizia às elites financeiras desejar “comércio e fronteiras abertas”, além de acreditar que os executivos de Wall Street estavam melhor posicionados para dirigir a economia – uma afirmação que contradizia toda a sua campanha. O material expôs os esforços da campanha de Hillary para influenciar as primárias do Partido Republicano e garantir que Trump fosse o escolhido pelo partido. Revelou que ela foi informada previamente das questões que lhe seriam dirigidas num debate. Demonstrou que a candidata foi a principal arquitecta da intervenção dos EUA na Líbia – um conflito que ela julgava capaz de selar suas credenciais para a disputa presidencial. Alguns jornalistas podem argumentar que tais informações, assim como os arquivos de guerra, deveriam permanecer escondidas – mas não podem, nesse caso, continuar considerando a si próprios como jornalistas.

Os dirigentes do Partido Democrata, interessados em culpar a Rússia pela derrota eleitoral, acusa hackers do governo russo de terem obtido os e-mails de Podesta. Mas James Comey, ex-diretor do FBI, admitiu que eles foram provavelmente entregues ao WikiLeaks por um intermediário. Assange sustenta que os e-mails não foram recebidos de “agentes de Estado”.

O WikiLeaks fez mais para expor os abusos do poder e os crimes do império norte-americano que qualquer outra publicação. Além dos arquivos de guerra, e dos e-mails de Podesta, ele tornou públicas as ferramentas de hackeamento usadas pela CIA e pela Agência Nacional de Segurança (a NSA), e sua interferência conjunta em eleições de outros países – inclusive as francesas. Ele revelou a conspiração interna contra Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista inglês, por parlamentares do partido. Quando Edward Snowden apontou a vasta vigilância exercida pelas agências de espionagem norte-americanas sobre seus cidadãos, o Wikileaks interveio para salvá-lo de extradição aos Estados Unidos, ajudando-o a fugir de Hong Kong para Moscou. Os vazamentos de Snowden também revelaram que Assange estava numa “lista de alvos de caçada humana” dos Estados Unidos.

Aparentemente abatido, quando era arrastado para fora da embaixada equatoriana pela polícia britânica, Assange balançou seu dedo e gritou: “O Reino Unido precisa resistir a esta ação do governo Trump… O Reino Unido precisa resistir”!

Todos nós precisamos resistir. Devemos, de todas as maneiras possíveis, pressionar o governo britânico para interromper o linchamento judicial de Assange. Se ele for extraditado aos EUA e julgado, isso criará um precedente legal que liquidará a capacidade da imprensa – a quem Trump repetidas vazes chama de “inimigo do povo” – para fiscalizar o poder. Os crimes financeiros e de guerra, a perseguição de dissidentes, minorias e imigrantes, a pilhagem, pelas corporações, na sociedade e dos ecossistemas e o empobrecimento incessante dos homens e mulheres que trabalham, para engordar as contas bancárias dos ricos e consolidar o controle total do poder pelos oligarcas globais não vão apenas se agigantar. Eles não serão mais parte do debate público. Primeiro Assange; depois, todos nós.

Tradução: Antonio Martins

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Chris Hedges, repórter laureado com Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Formou-se na Harvard Divinity School e foi durante quase duas décadas correspondente no exterior do The New York Times. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais War Is A Force That Gives Us Meaning, What Every Person Should Know About War, e American Fascists: The Christian Right and the War on America o best-seller (New York Times), Days of Destruction, Days of Revolt (2012), do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. Seu livro mais recente é Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle.

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