Julian Assange pode não viver até o final do processo de extradição
– O silêncio conivente dos media e dos jornalistas corporativos é ensurdecedor
– O caso de Assange é uma infâmia maior que o affaire Dreyfuss
– É uma tentativa de assinalar aos jornalistas as consequências de publicar informação relevante
por Craig Murray | Information Clearing House
Resistir.info - 22 de outubro, 2019
https://www.resistir.info/varios/julian_pode_morrer.html
Fiquei profundamente abalado ao testemunhar os acontecimentos no Tribunal de Magistrados de Westminster, segunda-feira 21 de Outubro. Todas as decisões foram tomadas às pressas, mal ouvindo os argumentos e objecções da equipa jurídica de Assange, por uma magistrada que nem sequer pretendia estar a ouvi-las.
Antes de entrar nesta ausência flagrante de um processo justo, a primeira coisa que devo observar foi a condição de Julian. Fiquei muito chocado com o peso que o meu amigo perdeu, com a velocidade com que o seu cabelo caiu e com a sua aparência de envelhecimento prematuro e muito rápido. Ele está também a coxear de forma muito pronunciada, o que nunca vi antes. Desde a sua prisão, ele perdeu mais de 15 kg de peso.
Mas sua aparência física não era tão chocante quanto sua deterioração mental. Quando lhe pediram para dizer o nome e data de nascimento, ele lutou visivelmente por alguns segundos para se lembrar de ambos. Chegarei ao conteúdo importante de sua declaração no final do processo no devido tempo, mas a sua dificuldade em fazê-la era muito evidente; foi uma verdadeira luta para ele articular as palavras e concentrar-se na sua linha de raciocínio.
Até então, sempre fui discretamente céptico em
relação àqueles que alegavam que o tratamento de Julian
representava tortura – mesmo
depois de Nils Melzer
, relator especial da ONU sobre tortura, o afirmar – e céptico em
relação àqueles que sugeriam que ele poderia estar sujeito
a tratamentos de drogas debilitantes. Porém, depois de ter participado
em julgamentos no Uzbequistão de várias vítimas de tortura
extrema e de ter trabalhado com sobreviventes da Serra Leoa e de outros
lugares, posso dizer que ontem mudei de ideias completamente: Julian exibiu
exactamente os sintomas de uma vítima de tortura trazida para a luz,
particularmente em termos de desorientação, confusão e
verdadeira luta para reivindicar o livre arbítrio através da
névoa de uma extrema debilidade adquirida.
Fiquei ainda mais céptico em relação àqueles que alegaram, como um membro sénior da sua equipa jurídica me fez na véspera da audiência, que estavam preocupados com o facto de Julian poder não viver até o fim do processo de extradição. Agora vejo-me não apenas a acreditar, mas assombrado por este pensamento. Todos no tribunal viram que um dos maiores jornalistas e dissidentes mais importantes do nosso tempo está a ser torturado até a morte pelo Estado, diante de nossos olhos.
Ver o meu amigo, o homem mais articulado, o pensador mais rápido que já conheci, reduzido àquele naufrágio e destruição incoerente, era insuportável. No entanto, os agentes do Estado, particularmente a insensível magistrada Vanessa Baraitser, não estavam apenas preparados, mas ansiosos por fazer parte desta força destruidora. Na verdade, ela disse-lhe que, se ele fosse incapaz de seguir os procedimentos, os seus advogados poderiam explicar-lhe mais tarde o que havia acontecido. A questão de saber por que um homem que, pelas próprias acusações contra ele era altamente inteligente e competente, fora reduzido pelo Estado a alguém incapaz de seguir um processo judicial, não lhe deu um milissegundo de preocupação.
A acusação contra Julian é muito específica: conspiração com Chelsea Manning para publicar documentos da Guerra do Iraque, da guerra do Afeganistão e telegramas do Departamento de Estado. As acusações não têm nada a ver com a Suécia, nada com sexo e nada com as eleições de 2016 nos EUA; seria uma simples clarificação que os grandes media parecem incapazes de entender.
O objectivo da audiência foi determinar o cronograma do processo de extradição. Os pontos principais em questão eram que a defesa de Julian solicitava mais tempo para preparar as suas evidências, argumentando que ofensas políticas fossem especificamente excluídas do tratado de extradição. Argumentaram que deveria haver, portanto, uma audiência preliminar para determinar se o tratado de extradição seria aplicável.
As razões apresentadas pela equipa de defesa de Assange por mais tempo para se preparar foram convincentes e surpreendentes. Eles tiveram um acesso muito limitado ao cliente na prisão e só haviam sido autorizados a entregar-lhe documentação uma semana antes. Ele também tinha acabado de ter autorização para um acesso limitado ao computador e todos os seus registos e materiais relevantes haviam sido apreendidos na Embaixada do Equador pelo Governo dos EUA; ele não tinha acesso aos seus próprios materiais com o objectivo de preparar a sua defesa.
Além disso, argumentou a defesa, entraram em contacto com os tribunais
espanhóis sobre um
caso jurídico em Madrid
muito importante e relevante que forneceria provas vitais. Mostraria que a CIA
estava a ordenar a espionagem directa a Julian na embaixada, através de
uma empresa espanhola, a UC Global, contratada para fornecer segurança
na embaixada. Fundamentalmente, isso incluía
espiar conversas privilegiadas
, entre Assange e seus advogados discutindo a sua defesa contra os processos de
extradição que estavam em andamento nos EUA desde 2010. Em
qualquer processo normal, esse facto seria suficiente para que o processo de
extradição fosse julgado improcedente. Aliás, soube no dia
anterior à audiência, que o material espanhol produzido em
tribunal, encomendado pela CIA, inclui especificamente uma cobertura em
vídeo de alta resolução de Julian discutindo vários
assuntos comigo.
As evidências para o tribunal espanhol também incluíam uma conspiração da CIA para sequestrar Assange, que representava a atitude de ilegalidade das autoridades dos EUA neste caso e ao tratamento que ele poderia esperar nos Estados Unidos. A equipe de Julian explicou que o processo legal espanhol estava em curso e que as evidências seriam extremamente importantes, mas poderiam não estar concluídas e, portanto, as evidências não serem totalmente validadas e disponíveis no tempo do cronograma proposto para as audiências de extradição de Assange.
Na acusação, James Leais QC
[1]
afirmou que o governo se opunha fortemente a qualquer atraso que a defesa
preparasse e se opunha fortemente a quaisquer considerações
diferentes da questão de saber se a acusação era uma
ofensa política excluída pelo tratado de
extradição. Baraitser aceitou a sugestão de Lewis e
afirmou categoricamente que a data da audiência de
extradição seria em 25 de Fevereiro e não poderia ser
alterada. Ela estava aberta a alterações nas datas para
apresentação de evidências e respostas antes disso, neste
sentido convocou um recesso de dez minutos para que a acusação e
a defesa concordassem com essas etapas.
O que aconteceu depois foi muito instrutivo. Presentes cinco representantes do governo dos EUA (inicialmente três e mais dois chegaram no decorrer da audiência), sentados em mesas atrás dos advogados no tribunal. Os advogados de acusação entraram imediatamente em contacto com os representantes dos EUA e depois saíram do tribunal com eles, para decidir como responder às datas.
Após o regresso, a equipa de defesa afirmou que, em sua opinião profissional, não poderia preparar-se adequadamente se a data da audiência de Fevereiro fosse mantida, mas, seguindo as instruções de Baraitser, delinearam um cronograma para a entrega de evidências. Em resposta a isso, o advogado júnior de Lewis correu para o fundo do tribunal a fim de consultar os americanos novamente, enquanto Lewis disse ao juiz que estava "recebendo instruções dos que estavam atrás".
É importante observar que, ao dizer isto, não foi o gabinete do procurador-geral do Reino Unido que estava sendo consultado, mas a embaixada dos EUA. Lewis recebeu as instruções dos americanos e concordou que a defesa poderia ter dois meses para preparar as suas evidências (eles disseram que precisavam de um mínimo absoluto de três), mas a data da audiência de Fevereiro não foi alterada. Baraitser pronunciou a sua decisão concordando com tudo o que Lewis havia dito.
Nesta fase, não era claro por que estávamos participando nesta farsa. O governo dos EUA ditava as suas instruções a Lewis, que as transmitia a Baraitser, que as tomava como sua decisão legal. A farsa poderia ter sido evitada e o governo dos EUA simplesmente ocupar o lugar na barra do tribunal para controlar todo o processo. Ninguém poderia, estando naquele tribunal, acreditar que se estava num processo legal genuíno ou que Baraitser estava por um momento a ter em conta os argumentos da defesa. As suas expressões faciais nas poucas ocasiões em que ela olhou para a defesa, variaram de desprezo a tédio e sarcasmo. Quando ela olhava para Lewis, estava atenta, aberta e calorosa.
A extradição está sendo levada a cabo rapidamente de acordo com um cronograma ditado por Washington. Além do desejo de antecipar-se ao tribunal espanhol no fornecimento de provas da actividade da CIA para sabotar a defesa. O que torna a data de Fevereiro tão importante para os EUA? Muito gostaria de receber quaisquer ideias sobre isso.
Baraitser rejeitou o pedido da defesa de uma audiência prévia
separada para considerar se o tratado de extradição se aplicava,
sem se preocupar em dar qualquer razão para isso (possivelmente ela
não memorizou adequadamente as instruções que Lewis tinha
estado a dar-lhe para concordar). No entanto, este é o artigo 4º
Tratado de Extradição UK/US de 2007
.
Em face disto, aquilo de que Assange é acusado é a própria
definição de ofensa política – se não
é, então o que é? Não está coberto por
nenhuma das excepções listadas
[2]
. Há todas as razões para considerar se esta
acusação está excluída pelo tratado de
extradição e fazê-lo antes do longo e muito dispendioso
processo de considerar todas as evidências, no caso de o tratado se
aplicar. Mas Baraitser simplesmente pôs de imediato o argumento de parte.
No caso de alguém ter alguma dúvida sobre o que estava acontecendo ali, Lewis levantou-se e sugeriu que a defesa não deveria perder o tempo do tribunal com muitos argumentos. Todos os argumentos para a audiência substantiva devem ser apresentados por escrito com antecedência e uma "guilhotina deve ser aplicada" (suas palavras exactas) a argumentos e testemunhas em tribunal, talvez de cinco horas para a defesa. A defesa sugeriu que precisariam de mais do que os cinco dias programados para apresentar seu caso. Lewis respondeu que toda a audiência deveria terminar em dois dias. Baraitser disse que esse não era o momento correcto para concordar com isso, mas ela o considerará assim que receber os pacotes de evidências. (NOTA: Baraitser fará o que Lewis instruí e interromperá a audiência substantiva).
Baraitser limitou tudo dizendo que a audiência de Fevereiro será realizada, não no Tribunal de Magistrados de Westminster, relativamente aberto e acessível, onde estávamos, mas no Tribunal de Magistrados de Belmarsh, o sombrio mecanismo de alta segurança usado para o processamento legal preliminar de terroristas, anexo à prisão de segurança máxima onde Assange está detido. Existem apenas seis cadeiras para o público mesmo na maior sala de tribunal de Belmarsh, o objectivo é claramente evitar o escrutínio público e garantir que Baraitser não seja novamente exposta em público a um relato genuíno de seus procedimentos, como este que está a ler. Provavelmente não poderei participar na audiência substantiva de Belmarsh.
Claramente, as autoridades ficaram desconcertadas com as centenas de pessoas boas que apareceram para apoiar Julian. Eles esperam que muito menos cheguem a Belmarsh, muito menos acessível. Estou bastante certo (e recordo ter tido uma longa carreira como diplomata) de que os dois funcionários extras do governo americano que chegaram no meio do processo eram agentes de segurança armados, trazidos por causa do alarme provocado pelo número de manifestantes em torno de uma audiência na qual estavam presentes altos funcionários dos EUA. A mudança para Belmarsh pode ter sido uma iniciativa americana.
A equipe de defesa de Assange opôs-se vigorosamente à mudança para Belmarsh, principalmente porque não há salas de conferência disponíveis para consultar seu cliente e têm acesso muito inadequado a ele na prisão. Baraitser rejeitou a objecção de imediato com um sorriso muito pronunciado.
Finalmente, Baraitser virou-se para Julian, ordenou-lhe que se levantasse e
perguntou se ele havia entendido o processo. Ele respondeu negativamente, disse
que não conseguia pensar e deu toda a aparência de
desorientação. Então ele pareceu encontrar uma
força interior, levantou-se um pouco e disse:
Não entendo como este processo pode ser equitativo. Esta
super-potência teve 10 anos para
se preparar para este caso e eu nem consigo ter acesso aos meus escritos.
É muito difícil, onde estou, fazer qualquer coisa. Essas pessoas
têm recursos ilimitados.
O esforço pareceu tornar-se demasiado, sua voz caiu e ele ficou cada vez
mais confuso e incoerente. Ele falou de denunciadores de irregularidades e
editores sendo rotulados inimigos do povo, depois falou sobre o DNA de seus
filhos ser roubado e espionado nas suas reuniões com o seu
psicólogo. Não estou sugerindo de maneira alguma que Julian
estivesse errado sobre esses pontos, mas ele não conseguiu
enquadrá-los nem articulá-los adequadamente. Ele claramente
não era ele mesmo, muito doente e era terrivelmente doloroso de
assistir. Baraitser não mostrou nem simpatia nem a menor
preocupação. Ela observou com veemência que, se ele
não conseguia entender o que havia acontecido, seus advogados poderiam
explicar-lhe isso e ela saiu do tribunal.
Toda a experiência foi profundamente perturbadora. Era muito claro que
não havia nenhum processo genuíno de considerações
legais a acontecer. O que tivemos foi uma demonstração nua do
poder do Estado e um desbragado ditar de procedimentos pelos americanos. Julian
estava numa caixa atrás de vidro à prova de balas, e eu e os
trinta outros membros do público que nos espremíamos
estávamos numa caixa diferente atrás de mais vidro à prova
de balas. Não sei se ele podia ver-me ou a seus outros amigos no
tribunal, ou se era capaz de reconhecer alguém. Ele não deu
nenhuma indicação de que sim.
Em Belmarsh, ele é mantido em isolamento completo durante 23 horas por
dia, tendo 45 minutos de exercício. Se tiver que ser movido, desimpedem
os corredores antes que ele desça e trancam todas as portas das celas
para garantir que não tenha contacto com nenhum outro prisioneiro fora
do período de exercício curto e estritamente supervisionado.
Não há justificação possível para que esse
regime desumano, usado para grandes terroristas, seja imposto a um editor
prisioneiro em prisão preventiva.
Venho catalogando e protestando há anos contra os poderes cada vez mais
autoritários do Estado do Reino Unido, mas um abuso tão grave,
tão aberto e sem disfarces ainda é um choque. A campanha de
demonização e desumanização contra Julian, baseada
nas mentiras do governo e dos media, levou a uma situação em que
ele pode ser morto lentamente à vista do público e processado
criminalmente com a acusação de publicar a verdade sobre
irregularidades do governo, sem receber qualquer assistência da sociedade
"liberal".
A menos que Julian seja libertado em breve, ele será destruído.
Se o Estado puder fazer isso, quem será o próximo?
NT
[1] Queen's Counsel: advogado com competência para discutir casos em
tribunais de nível superior
[2] Delitos que não são considerados crimes políticos.
Craig Murray é
Ex-diplomata britânico. Ver
en.wikipedia.org/wiki/Craig_Murray
https://www.resistir.info/varios/julian_pode_morrer.html
Veja também:
DOSSIÊ: Julian Assange