Só nós podemos ajudar Assange!
por Slavoj Žižek
Revista Fórum - 13 de abril, 2019
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Finalmente aconteceu: Julian Assange foi arrastado da embaixada equatoriana e preso. Não era surpresa alguma, muitos sinais apontavam nessa direção. Uma ou duas semanas atrás, o WikiLeaks previu a prisão e o Ministério de Relações Estrangeiras do Equador respondeu com o que agora sabemos ser uma mentira descarada (de que não há planos de revogar o asilo político de Assange), temperadas com mentiras adicionais (sobre o WikiLeaks ter publicado fotografias da vida privada do presidente equatoriano – por que Assange teria interesse em fazer algo desse tipo, arriscando comprometer seu asilo?). A recente prisão de Chelsea Manning (em larga medida ignorada pela mídia) também foi um elemento nesse jogo. Apesar de ter sido indultada pelo presidente Obama, ela foi presa novamente e está agora detida em confinamento solitário para forçá-la a divulgar informações sobre suas ligações com o WikiLeaks, como parte da acusação que aguarda Assange quando (e se) os Estados Unidos colocarem as mãos nele.
Outra dica foi a declaração dada pelo Reino Unido de que não extraditaria Assange a um país no qual ele poderia receber pena de morte (em vez de simplesmente dizer que ele não seria extraditado aos EUA por conta do WikiLeaks) – isso praticamente confirmou a possibilidade de sua extradição aos EUA. Sem mencionar a longa e lenta campanha bem-orquestrada de assassinar sua imagem, que chegou ao nível mais baixo imaginável alguns meses atrás com os rumores não-verificados de que os equatorianos queriam se livrar dele por conta de seu odor desagradável e suas roupas sujas. Na primeira etapa dos ataques a Assange, seus ex-amigos e colaboradores foram a público alegando que o WikiLeaks havia começado bem, mas que em seguida desandou por conta do viés político de Assange (sua obsessão anti-Hillary, suas ligações suspeitas com a Rússia…). A isso se seguiram difamações pessoais mais diretas: ele seria paranoico e arrogante, tomado por uma obsessão por poder e controle… E agora chegamos ao nível dos odores e das manchas corpóreas diretas.
Assange, um paranoico? Quando você vive permanentemente em um apartamento grampeado de cabo a rabo, vítima de uma constante vigilância organizada por serviços secretos, quem não seria? Megalomaníaco? Quando o (agora ex-) diretor da CIA afirma que sua prisão é prioridade, isso não implica que você constitui uma “grande” ameaça ao menos a certas pessoas? Se comportando como o líder de uma organização de espionagem? Mas o WikiLeaks é uma agência de espionagem, mas uma que serve ao povo, mantendo-os informados sobre o que ocorre nos bastidores.
Passemos então à grande questão: por que agora? Penso que há um nome que explica tudo: Cambridge Analytica – um nome que representa tudo o que Assange combate, ao revelar as ligações entre grandes corporações privadas e agências governamentais. Quanto não se falou e noticiou, obsessivamente, da suposta interferência russa nas eleições estadunidenses? Pois bem, agora sabemos que não foram os hackers russos (com ajuda de Assange) que influenciaram os eleitores na direção de Trump, mas sim nossas próprias agências de processamento de dados em conjunto com forças políticas. Isso não significa dizer que a Rússia e seus aliados sejam inocentes: eles provavelmente tentaram, sim, influenciar o resultado das eleições, da mesma forma que os EUA o fazem em outros países (só que nesses casos, diz-se que trata-se de ajudar a promover a democracia…). Mas significa, isto sim, que o grande lobo mal que distorce nossa democracia se encontra aqui, e não no Kremlin. E é isso que Assange vem dizendo desde sempre.
Mas onde, exatamente, está esse grande lobo mau? Para ter uma noção do verdadeiro escopo desse tipo de dinâmica de controle e manipulação, devemos ir além da ligação entre corporações privadas e partidos políticos (como é o caso da Cambridge Analytica), e prestar atenção na interpenetração entre empresas de processamento de dados, como o Google e o Facebook, e agências estatais de segurança. Não devemos nos chocar com o que ocorre na China, mas com nossa própria situação: afinal, experimentamos o mesmo tipo de regulação mas acreditamos que nossa plena liberdade está intacta e que as mídias só nos ajudam a realizar nossos objetivos (ao passo que na China as pessoas ao menos têm plena consciência de que são reguladas). Se combinarmos isso tudo com o que já sabemos sobre os vínculos entre os desenvolvimentos mais recentes na biogenética (conectar o cérebro humano ao computador etc.), temos uma imagem adequada e aterrorizante de como as novas formas de controle social da atualidade fazem o bom e velho “totalitarismo” do século XX parecer uma máquina de controle primitiva e desajeitada.
O maior feito do novo complexo cognitivo-militar é que a opressão direta e escancarada não é mais necessária: controla-se e influencia-se muito melhor os indivíduos quando eles continuam a se experimentarem como agentes livres e autónomos de suas próprias vidas… Essa é outra lição chave do WikiLeaks: nossa falta de liberdade é mais perigosa quando é experimentada como o próprio meio de nossa liberdade – o que poderia ser mais livre do que o fluxo incessante de comunicações que permite que qualquer indivíduo popularize suas opiniões e forme comunidades virtuais à revelia? Na medida em que nossas sociedades elevam a permissividade e a livre escolha a valores supremos, o controle social e a dominação não podem mais aparecer como elementos que infringem as liberdades do sujeito: precisam manifestar-se como (e serem sustentadas por) a própria auto experiência de liberdade dos indivíduos. O que poderia ser mais livre do que nossa navegação irrestrita na web? É assim que opera hoje o “Fascismo que cheira à democracia”.
É por isso que é absolutamente imperativo manter a rede digital fora das garras do capital privado e do poder estatal, isto é, torná-la totalmente acessível ao debate público. Assange estava certo em seu livro fundamental e curiosamente ignorado, Quando o Google encontrou o WikiLeaks (Boitempo, 2014): para compreender como nossas vidas são reguladas hoje, e como essa regulação é experimentada como nossa própria liberdade, precisamos focar na relação oculta entre as corporações privadas que controlam nossos comuns e as agências estatais secretas.
Agora vemos por que Assange precisa ser silenciado: depois que o escândalo da Cambridge Analytica veio à tona, todo o esforço daqueles em poder volta-se para reduzir o caso a um “uso indevido” particular por parte de algumas corporações privadas e partidos políticos – mas onde está o próprio Estado, os aparatos semi-invisíveis do chamado “Estado profundo”? Não é de se espantar que o Guardian, que cobre extensivamente o “escândalo” da Cambridge Analytica, publicou recentemente um ataque nojento a Assange, caracterizando-o como um fugitivo da justiça megalomaníaco. Escreva quanto quiser sobre Cambridge Analytica e Steve Bannon, só não comente aquilo para o qual Assange estava chamando nossa atenção – a saber: que os aparatos estatais que agora devem investigar o “escândalo” são eles próprios parte do problema.
Assange caracteriza a si mesmo como o espião do e para o povo: ele não está vigiando o povo para quem está no poder, ele está vigiando quem está no poder, para o povo. É por isso que os únicos que realmente podem ajudá-lo agora somos nós, o povo. Somente a nossa pressão e nossa mobilização pode aliviar este seu impasse. Lemos, com frequência, sobre como o serviço secreto soviético não apenas punia seus traidores, ainda que isso levasse décadas, mas também lutava ferrenhamente para libertá-los quando eram capturados pelo inimigo. Assange não possui nenhum Estado por trás dele, apenas nós, as pessoas – então façamos ao menos o que o serviço secreto soviético fazia: lutemos por ele custe o que custar!
O WikiLeaks é só o início, e nosso lema deveria ser maoísta: que centenas de WikiLeaks florescam. O pânico e a fúria com a qual os poderosos, e aqueles que controlam nossos comuns digitais, reagiram a Assange é prova de que esse tipo de atividade atingiu em cheio um ponto chave. Haverá muitos golpes baixos nessa luta: nosso lado será acusado de jogar o jogo do inimigo (assim como a campanha que acusava Assange de estar a serviço de Putin), mas precisamos nos acostumar com isso e aprender a revidar em dobro, colocando um lado contra o outro, sem dó, a fim de derrubar todos.
Traduzido por Artur Renzo
Slavoj Žižek (Liubliana, 21 de março de 1949) é um filósofo, sociólogo, teórico crítico e cientista social esloveno. É professor da European Graduate School e pesquisador sénior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais estão a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan.
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