Aviso de Brzezinski aos EUA
“Os índices de aprovação pública de Trump melhoraram, não porque ele tenha “drenado o pântano” como prometera, mas porque ele ainda é visto como um outsider, um não nativo de Washington, desprezado pela classe política, pelo establishment da política externa e pela mídia. Sua credibilidade repousa no fato de que ele é odiado pela coalizão de elites, a mesma coalizão das mesmas elites que os trabalhadores agora consideram como sua principal inimiga, jurada de morte” [vale também para Bolsonaro!]
por Mike Whitney | Unz Review
O Empastelador - 17 de abril, 2019
https://oempastelador.blogspot.com/2019/04/a-ordem-mundial-liberal-ja-entrou-em.html
A ordem mundial liberal, que durou do final da Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje, está entrando rapidamente em colapso. O centro de gravidade está mudando de oeste para leste, onde China e Índia passam por crescimento explosivo e onde uma Rússia revitalizada recompôs a antiga estatura como superpotência global crível.
Esses desenvolvimentos, juntamente com a superdistensão imperial e a crônica estagnação econômica dos EUA, prejudicaram severamente a capacidade dos EUA para formatar os eventos ou para perseguir com sucesso seus próprios objetivos estratégicos.
À medida que o controle de Washington sobre assuntos globais continua a se enfraquecer e mais países rejeitam o modelo de desenvolvimento ocidental, a ordem atual afrouxará progressivamente, abrindo caminho para um mundo multipolar que precisa desesperadamente de uma nova arquitetura de segurança.
As elites ocidentais, incapazes de aceitar essa nova dinâmica, continuam a emitir declarações frenéticas manifestando o medo que têm de um futuro no qual os Estados Unidos não mais ditem a política global.
Na Conferência de Segurança de Munique, em 2019, o presidente Wolfgang Ischinger ressaltou muitos desses mesmos temas. Aqui, um trecho de sua apresentação:
“Toda a ordem mundial liberal parece estar desmoronando – nada é como antes. Não só a guerra e a violência desempenham um papel mais proeminente: um novo confronto de grandes potências surge no horizonte. Em contraste com o início dos anos 90, a democracia liberal e o princípio dos mercados abertos não são mais incontestados.
Neste ambiente internacional, o risco de uma guerra interestatal entre as grandes e médias potências aumentou claramente (...) O que se observa em muitos lugares ao redor do mundo é aumento dramático na arrogância, isto é, ações altamente arriscadas à beira do abismo – do abismo da guerra (...).
Não importa para onde você olhe, há inúmeros conflitos e crises (...) as principais peças da ordem internacional estão-se desintegrando, sem que se veja com clareza se alguém pode reuni-las outra vez – ou se sequer deseja reuni-las.” (“Quem reunirá as peças?”, Conferência de Segurança de Munique, 2019)
Ischinger não está sozinho em seu desespero nem esses sentimentos o limitam-se às elites e intelectuais.
Hoje, já muita gente está familiarizada com as manifestações que abalaram Paris, o embate político que está destruindo a Inglaterra (Brexit), os grupos de direita anti-imigrantes que surgiram em toda a Europa e a surpreendente rejeição do candidato favorito nas eleições presidenciais de 2016 nos EUA. Por toda parte, o establishment e suas políticas neoliberais estão sendo rejeitadas pelas massas de trabalhadores que só recentemente começaram a se levantar contra um sistema que os ignorou por mais de 30 anos.
Os índices de aprovação pública de Trump melhoraram, não porque ele tenha “drenado o pântano” como prometera, mas porque ele ainda é visto como um outsider, um não nativo de Washington, desprezado pela classe política, pelo establishment da política externa e pela mídia. Sua credibilidade repousa no fato de que ele é odiado pela coalizão de elites, coalizão que os trabalhadores agora consideram como sua principal inimiga jurada de morte.
O presidente do prestigioso Conselho de Relações Exteriores (CRE, ing. CFR), Richard Haass, resumiu seus pontos de vista sobre o “enfraquecimento da ordem mundial liberal” em artigo publicado no site do CRE. Aqui está o que ele disse:
“Todas as tentativas para criar estruturas globais estão falhando. O protecionismo está em ascensão; a última rodada de negociações sobre comércio global nunca chegou a ser concretizada. (...) Ao mesmo tempo, recomeça uma grande rivalidade de poder (...)
Existem várias razões pelas quais tudo isso está acontecendo e por que acontece agora. A ascensão do populismo é, em parte, uma resposta à estagnação da renda e à perda de emprego, devido principalmente a novas tecnologias, mas amplamente atribuída a importações e imigrantes. O nacionalismo é ferramenta cada vez mais usada pelos líderes para reforçar a própria autoridade, especialmente em contexto de condições econômicas e políticas difíceis.
Mas o enfraquecimento da ordem mundial liberal deve-se, mais do que a qualquer outra coisa, à mudança de atitude dos EUA. Sob o comando do presidente Donald Trump, os EUA decidiram não aderir à Parceria Trans-Pacífico e se retirar do acordo climático de Paris. Ameaçou deixar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte e o acordo nuclear com o Irã. Introduziu unilateralmente tarifas sobre o aço e o alumínio, contando com a justificativa (segurança nacional) que outros poderiam usar esses produtos; e no processo pôs o mundo sob risco de vasta guerra comercial ... “América Primeiro” e a ordem mundial liberal parecem incompatíveis” (Descanse em Paz, Ordem Mundial Liberal”, Richard Haass, CFR).
O que Haass está dizendo é que a cura para a globalização é mais globalização, que a maior ameaça à ordem mundial liberal é impedir que as corporações-monstro obtenham cada vez mais do que querem; mais acordos que as autoengrandeçam cada vez mais, mais exportação de empregos, mais terceirização do trabalho, menos legislação de proteção ao trabalho e mais privatização de ativos públicos e de recursos críticos.
A liberalização do comércio não é liberalização, não fortalece a democracia nem cria ambiente no qual os direitos humanos, as liberdades civis e o estado de direito sejam respeitados. Essa política concentra-se quase exclusivamente na livre circulação de capital, a fim de enriquecer acionistas ricos e engordar a linha final dos balanços das empresas.
As revoltas esporádicas em todo o mundo – Brexit, Coletes Amarelos, grupos emergentes de direita – podem remontar a esses acordos comerciais unilaterais, favoráveis aos empresários, que precipitaram o constante declínio dos padrões de vida, o encolhimento das rendas e a redução de benefícios cruciais para a grande massa de trabalhadores nos EUA e na Europa. O presidente Trump não é responsável pelo surto de populismo e inquietação social: é apenas uma expressão da raiva do povo. O triunfo presidencial de Trump foi uma rejeição clara do sistema elitista completamente manipulado que continua a transferir a maior parte da riqueza da nação para a menor camada de pessoas, no topo da pirâmide social.
A crítica de Haass ilustra o nível da negação obsessiva que tomou conta das elites que agora estão dominadas pelo medo de um futuro incerto.
Como observamos anteriormente, o centro de gravidade mudou de oeste para leste – o único fato que ninguém pode negar nem contestar.
O breve momento unipolar de Washington – após o colapso da União Soviética em dezembro de 1991 – já passou, e novos centros de poder industrial e financeiro estão ganhando velocidade e ultrapassando gradualmente os EUA em áreas vitais para a primazia americana. Esse ambiente econômico em rápida mudança é acompanhado por um descontentamento social generalizado, um profundo ressentimento “de classe” e formas cada vez mais radicais de expressão política.
A ordem liberal está colapsando, não porque os valores adotados nos anos 60 e 70 tenham perdido seu apelo, mas porque a desigualdade está aumentando, o sistema político não responde às demandas do povo e porque os EUA não podem mais impor arbitrariamente sua vontade ao mundo.
A globalização alimentou a ascensão do populismo, ajudou a exacerbar as tensões étnicas e raciais e é em grande parte responsável pelo esvaziamento do núcleo industrial dos Estados Unidos. O antídoto de Haass só jogaria mais gás no fogo e aceleraria o dia em que liberais e conservadores se transformariam em campos rivais e se agarrariam com unhas e dentes numa sangrenta batalha até o fim.
Alguém tem que parar a loucura que avança nos EUA, antes que o país tombe numa segunda Guerra Civil.
O que Haass não discute é a perversa confiança de Washington na força, para preservar a ordem mundial liberal. Afinal de contas não é como se os EUA tivessem assumido seu atual papel dominante, simplesmente competindo de forma mais eficaz nos mercados globais. Ah, não! Atrás da luva de seda está o punho de ferro, usado em mais de 50 operações de ‘mudança de regime’ desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Os EUA têm mais de 800 bases militares espalhadas por todo o planeta e destroem país após país em sucessivas intervenções, invasões e ocupações, até onde a memória alcança. Essa propensão à violência tem sido duramente criticada por outros membros das Nações Unidas, mas apenas a Rússia teve a coragem de se opor abertamente a Washington, no único espaço que Washington leva a sério: o campo de batalha.
A Rússia está atualmente envolvida em operações militares que ou impediram Washington de atingir seus objetivos estratégicos (como a Ucrânia) ou revogaram a guerra por procuração de Washington na Síria. Naturalmente, as elites liberais, como Haass, sentem-se ameaçadas por esses acontecimentos, já que estão acostumadas a uma situação em que “o mundo é ostra deles”. Mas, infelizmente, as ostras foram retiradas do cardápio, e os Estados Unidos ou cedem e fazem os ajustes necessários, ou arriscam mergulhar numa terceira guerra mundial.
O presidente russo Vladimir Putin opõe-se a esse unilateralismo de Washington, à quebra arrogante do direito internacional, para que os EUA persigam as próprias ambições imperiais. Ironicamente, Putin tornou-se o maior defensor do sistema internacional e, em particular, das Nações Unidas, ponto a que deu especial atenção, no lugar perfeito, em sua fala à 70.ª sessão da Assembleia Geral da ONU em Nova York, em 28 de setembro de 2015, apenas dois dias antes de os aviões de guerra russos iniciarem as missões de bombardeio na Síria. Eis um trecho daquela fala:
“As Nações Unidas são únicas em termos de legitimidade, representação e universalidade ... Consideramos qualquer tentativa de minar a legitimidade das Nações Unidas como extremamente perigosa. Pode resultar no colapso de toda a arquitetura das relações internacionais, não deixando regras, exceto a regra da força. O mundo será dominado pelo egoísmo e não pelo esforço coletivo; pelo ditador, não pela igualdade e liberdade; e em vez de nações verdadeiramente soberanas, teremos colônias controladas de fora.”(Vladimir Putin, presidente da Rússia, à 70ª sessão da Assembleia Geral da ONU)
O discurso de Putin, seguido do lançamento da operação russa na Síria, foi um aviso claro de que ali se estabelecia uma política externa pela qual os EUA não mais poderiam impunemente derrubar governos e destruir países. Assim como Putin dispôs-se a oferecer a vida de militares russos na Síria, a Rússia também ofereceria resistência na Venezuela, no Líbano, na Ucrânia e em outros locais onde a resistência fosse necessária ou útil. E embora a Rússia não tenha poder nem próximo do poder brutal dos militares dos EUA, Putin parece estar dizendo que, sim, os russos estarão na linha de frente para defender a lei internacional e a soberania das nações. Aqui, Putin, outra vez:
“Todos sabemos que, após o fim da Guerra Fria, o mundo ficou com um centro de dominação, e aqueles que se encontraram no topo da pirâmide ficaram tentados a pensar que, por serem tão poderosos e excepcionais, só eles saberiam o que seria melhor, o que precisaria ser feito. Sendo assim, não precisariam contar com a ONU a qual, em vez de se limitar a carimbar as decisões de interessem a eles, insiste em criar-lhes obstáculos.
Todos devemos nos lembrar das lições do passado. Por exemplo, lembramos exemplos de nosso passado soviético, quando a União Soviética exportou experimentos sociais, pressionando por mudanças em outros países, por razões ideológicas. Isso muitas vezes levou a consequências trágicas e causou degradação em vez de progresso.
Parece, no entanto, que em vez de aprender com os erros de outras pessoas, alguns preferem repeti-los e continuar a exportar revoluções, só que agora são revoluções “democráticas”.
Basta olhar para a situação no Oriente Médio e Norte da África já mencionada pelo orador anterior. … Em vez de promover reformas, a intervenção agressiva destruiu indiscriminadamente as instituições governamentais e o modo de vida local. Em vez de democracia e progresso, há agora violência, pobreza, desastres sociais e total desrespeito pelos direitos humanos, incluindo até o direito à vida.
Sou forçado a perguntar àqueles que criaram esta situação: vocês ao menos percebem agora o que fizeram? “ (Vladimir Putin, presidente da Rússia, na 70ª sessão da Assembleia Geral da ONU)
Aqui Putin desafia abertamente o conceito de uma “ordem mundial liberal” que, na verdade, é um rótulo útil para esconder a pilhagem implacável de Washington, pelo planeta. Nada há de liberal em derrubar regimes e mergulhar milhões de pessoas em anarquia, pobreza e desespero.
Putin está simplesmente tentando dizer aos líderes dos EUA que o mundo está mudando, que as nações da Ásia estão ganhando força e impulso, e que Washington terá que abandonar a ideia de que qualquer restrição em seu comportamento é uma ameaça aos interesses de segurança nacional.
O ex-assessor de segurança nacional de Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, parece concordar com este ponto e sugere que os EUA comecem a repensar sua abordagem da política externa, agora que o mundo mudou fundamentalmente e outros países exigindo um lugar mais confortável à mesa.
O que a maioria das pessoas não percebe sobre Brzezinski é que ele mudou drasticamente sua visão sobre a hegemonia global, alguns anos depois de publicar sua obra-prima de 1997, O Grande Tabuleiro de Xadrez: A Primazia Americana e seu Imperativo Geoestratégico. Em seu livro de 2012, Visão Estratégica, Brzezinski recomendou uma abordagem mais ponderada e cooperativa que facilitaria a inevitável transição (declínio?) dos EUA, sem criar um vácuo de poder que poderia levar ao caos global.
Aqui, está um pequeno trecho de um artigo que Brzezinski escreveu em 2016 para American Interest, intitulado “Toward a Global Realignment”[1]:
“O fato é que nunca houve um poder global verdadeiramente dominante até o surgimento da América no cenário mundial (...). Essa era agora está terminando (...). Com o fim da era em que foi potência global dominante, os EUA precisam assumir a liderança no realinhamento da arquitetura global de poder (...). Os Estados Unidos ainda são a entidade política, econômica e militarmente mais poderosa do mundo, mas, dadas as complexas mudanças geopolíticas nos equilíbrios regionais, ela não é mais a potência globalmente imperial.
A América só pode ser eficaz no trato da violência atual no Oriente Médio se forjar uma coalizão que envolva, em vários graus, também Rússia e China (...).
Uma política construtiva dos EUA deve ser pacientemente guiada por uma visão de longo alcance. Deve buscar resultados que promovam a realização gradual na Rússia (...) único lugar com potência mundial para influenciar, em última análise, dentro da Europa. O crescente papel da China no Oriente Médio deve refletir a percepção recíproca dos Estados Unidos e da China de que uma crescente parceria EUA-RPC para lidar com a crise do Oriente Médio é teste historicamente significativo de sua capacidade para modelar e melhorar a estabilidade global.
A alternativa a uma visão construtiva e, especialmente, a busca por um resultado unilateral militar e ideologicamente imposto, só pode resultar em futilidade prolongada e autodestrutiva.
Como os próximos vinte anos podem ser a última fase dos alinhamentos políticos mais tradicionais e familiares com os quais nos sentimos à vontade, a resposta precisa ser moldada agora (...) E essa acomodação deve basear-se numa visão estratégica que reconheça a necessidade urgente de um novo quadro geopolítico.” (“Rumo a um Realinhamento Global “, Zbigniew Brzezinski, The American Interest)
Parece-me artigo especialmente bem fundamentado e perspicaz. Vê-se que Brzezinski entendeu que o mundo havia mudado, que o poder havia andado para o oriente e que o único caminho para os EUA será cooperar, acomodar-se, integrar-se e construir parcerias. A tragédia está em que não há base de apoio para essas ideias em Capital Hill, na Casa Branca ou no establishment de política externa dos EUA.
Toda a classe política e seus aliados na mídia apoiam unanimemente uma política de beligerância, confronto e guerra. Os EUA não prevalecerão em um confronto com a Rússia e a China; tampouco conseguirão fazer o tempo retroceder até a era do pós-guerra, quando os EUA, a Superpotência, reinou supremamente.
O confronto só acelerará o ritmo do declínio dos EUA e o colapso final da ordem mundial liberal.
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