Cambodja: uma vítima da 'ajuda'
Por John Pilger
Resistir.info - 07/06/2005
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Visto do ar, parecia não estar ninguém ali, nenhum movimento, nem mesmo um animal, como se a imensa população asiática houvesse parado no rio Mekong. Mesmo a colcha de retalhos dos campos de arroz era quase indiscernível; nada parecia ter sido plantado ou estar a crescer, excepto a floresta e linhas de altas ervas selvagens. À beira de aldeias desertas, muitas vezes seguindo um padrão de crateras de bombas, a erva seguia linhas rectas; fertilizada por composto humano, pelos remanescentes de milhares e milhares de homens, mulheres e crianças, ela marcou sepulturas comuns num país em que até dois milhões de pessoas, ou seja, entre um terço e um quarto da população, estão "faltando".
Este foi o Cambodja que encontrei há 26 anos atrás, no rastro do Khmer Rouge, cujo domínio assassino foi seguido por um inferno de bombas americanas. Pouco tempo depois, Jim Howard, engenheiro senior e bombeiro da entidade de beneficência britânica Oxfam, chegou e enviou o seu primeiro telegrama: "Cinquenta a oitenta por cento de destruição material e humana é a realidade terrível. Cem toneladas de leite por semana necessárias, por ar e mar, durante os próximos dois meses a começar já, repito, já".
Então começou uma das mais arrojadas operações de ajuda do século XX, a qual ultrapassou um embargo americano e britânico destinado a punir o libertador do Cambodja, o Vietnam. Através da fina engenhosidade e visão política das suas acções e campanhas internas, o Oxfam salvou e recuperou incontáveis pessoas. Posteriormente, ao exigir que o ocidente parasse de apoiar o Khmer Rouge no exílio, a Oxfam incorreu na hostilidade dos governos Thatcher e Reagan e foi ameaçada com a perda do seu estatuto de entidade caritativa isenta de impostos. Isto era claramente destinado a servir de advertência às organizações de ajuda independentes, ou "ONGs", para que não se tornassem demasiado "radicais". Muitas desde então abraçaram uma versão de corporativo e uma aproximação ao governo britânico, cujas políticas comerciais neoliberais continuam a ser uma fonte de grande parte da pobreza do mundo.
Em 27 de Maio, a organização de vigilância ActionAid publicou um extraordinário relatório de condenação, RealAid : uma agenda para fazer a ajuda funcionar. Com a reunião do G8 em Gleneagles, na Escócia, em Julho, e o governo Blair (e outros governos europeus) a propagarem o disparate de que está ao lado dos pobres, o relatório revela que o governo está a inflar em um terço o valor da sua ajuda que já é mínima aos países pobres. E acrescenta que a maior parte de toda a ajuda ocidental é realmente "ajuda fantasma", o que significa que nada tem a ver com a redução da pobreza.
O estudo Action Aid descreve um regabofe de "assistência técnica" e "consultorias" com preços exagerados, de carreirismo e contabilização deficiente. Os britânicos frequentemente exageram os seus números da ajuda (com a inclusão de reduções na dívida); e os EUA atam a sua ajuda ao comércio e ideologia aos seus "interesses". A ajuda real, de facto, representa apenas 0,1 por cento do rendimento nacional combinado dos países ricos. Comparado ao "objectivo" mínimo das Nações Unidas de 0,7 por cento, isto mal chega a umas migalhas.
O Cambodja é um exemplo excelente. Apesar de ser um dos países mais pobres do mundo, nunca foi permitido ao Cambodja que se recuperasse do trauma infligido por Richard Nixon, Henry Kissinger e Pol Pot. Durante a década de 1980, depois de Pol Pot ser expulso pelos vietnamitas, um embargo americano e britânico tornaram a reconstrução quase impossível. Ao invés disso, foi inventada uma "resistência" pelos americanos, com a SAS britânica contratada para treinar os Khmer Rouge em campos secretos na Tailândia e na Malásia. Em 1990, quando as Nações Unidas finalmente chegaram aos Cambodja para organizar a "democracia", isto trouxe corrupção numa escala sem precedentes, bem como SIDA e "ajuda". Isto foi deturpado como um "triunfo" da "comunidade internacional".
O Cambodja hoje é uma vítima desta "ajuda". Tal como em África, os "doadores" (o ocidente e o Japão) perpetuaram os mitos de um "caso perdido": que os cambodjanos não podem fazer nada por si próprios e que ajuda genuína ao desenvolvimento e capitalismo predador são compatíveis. Não há símbolo mais adequado para o Cambodja do que as florescentes oficinas de exploração (sweatshops) que fabricam bens por uma fracção do seu preço de retalho no ocidente, fazendo vista grossa a lugares onde crianças brincam junto a esgotos a ceu aberto transmissores de malária.
Naturalmente, ajuda falsificada ou "fantasma" e capitalismo rapinante são compatíveis. O ActionAid menciona citações de Brad Adams do Human Rights Watch: "Na década de 1980, havia ali uma T-shirt popular que satirizava os anúncios de recrutamento do US Army com o slogan, 'Aliste-se no exército. Viaje para terras exóticas e distantes. Encontre pessoas estimulantes e inabituais. E mate-as'. Neste novo milénio, isto podia ser reformulado: 'Aliste-se na comunidade de ajuda. Viaje para terras exóticas e distantes. Encontre pessoas estimulantes e inabituais. E ganhe uma fortuna' ".
Cerca da metade de toda a ajuda ao Cambodja é gasta em "assistência técnica", ou AT. Entre 1999 e 2003 esta montou a 1,2 mil milhões de dólares. O que é AT? É uma invasão de "conselheiros internacionais" com os quais foram gastos mais de 70 milhões de dólares só em 2003. Some-os aos "consultores internacionais", cada um dos quais custam mais de 159 mil dólares. Em contraste, o custo de um trabalhador genuíno em ajuda externa numa ONG verdadeiramente independente é menos de 45 mil dólares, e o custo de recrutar um perito cambodjano é um oitavo disto.
Mais de 740 conselheiros e peritos estrangeiros ganham aproximadamente tanto quanto 160 mil funcionários civis cambodjanos, os quais recebem tão pouco como 25 dólares por mês. Em muitos ministérios, o pagamento de conselheiros estrangeiros excede todo o orçamento anual. É mais do que o dobro do orçamento do Ministério da Agricultura e quatro vezes aquele do Ministério da Justiça.
Os trabalhadores estrangeiros da ajuda queixam-se constantemente acerca da corrupção local, muitas vezes com razão. Mas eles raramente identificam e medem a sua própria corrupção legitimizada. "Não tem havido qualquer análise sistemática da efectividade da AT no Cambodja", afirma a ActionAid. "Responsáveis do governo do Cambodja sugeriram que isto é porque os doadores não querem reconhecer a ineficácia da sua ajuda". O Conselho para o Desenvolvimento do Cambodja diz que os estrangeiros criam sistemas paralelos ao governo. Eles não transferem capacidade. Os peritos apenas fazem relatórios que ninguém lê... os doadores queixam-se sempre acerca da falta de recursos humanos [mas] os cambodjanos são seres humanos..."
O relatório cita um esquema para proteger aldeões de inundações no qual está envolvido o Departamento de Desenvolvimento Internacional britânico. Apesar de ser promovido como "baseado na comunidade", três quartos do orçamento está a ser gasto com consultores estrangeiros, gabinetes e administração. O Cambodja tem três planos económicos nacionais distintos, cada um deles concebido por uma agência estrangeira diferente. Um dos maiores doadores é a agência USAID do governo americano, notória pelas suas sangrentas intervenções políticas por todo o mundo. A USAID financia grupos cambodjanos de oposição, "conselheiros de direitos humanos" e jornais que estão alinhados à ideia de Bush de "boa governação". Mesmo a ajuda humanitária mais básica está ligada aos negócios americanos. Os sais de rehidratação oral, por exemplo, que nos trópicos são essenciais, devem ser comprados nos Estados Unidos a um preço cinco vezes maior do que o do mesmo produto fabricado no Cambodja.
Há pessoas boas nas ONGs estrangeiras no Cambodja, e há um certo número de esquema efectivos. Mas "partenariado" com pessoas locais é uma palavra que tanto os governos como as agências de ajuda abusam. Os cambodjanos obtêm o que lhes é dado, tal como "empréstimos" do Banco Mundial e do FMI com a espécie de condições ultrajantes que prejudicaram países como a Zâmbia.
Mais de 600 mil cambodjanos foram mortos por bombas americanas na década de 1970. Como admitiu posteriormente a CIA, a devastação proporcionou um catalisador para o horror do Khmer Rouge. Milhares de mortes de crianças foram provocadas posteriormente por um bloqueio económico apoiado pelo governo britânico.
Vejo que Tony Blair, assim como locutores e outras celebridades, tem estado a usar a faixa da moda "Tornar a pobreza história". É perverso. Tal como aqueles países na África, Ásia e América Latina há muito pilhados em nome dos "interesses" ocidentais, o Cambodja tem direito a reparações incondicionais a fim de poder atender às necessidades urgentes do seu povo, não às exigências daqueles que dizem ajudar.
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