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EUA no Irã: preparar o ‘Campo de Batalha’

por Alastair Crooke | Strategic Culture Foundation

O Empastelador - 16 de maio, 2019

https://oempastelador.blogspot.com/2019/05/eua-no-ira-preparar-o-campo-de-batalha.html

Bernard Lewis, historiador britânico-norte-americano especializado em Oriente Médio, teve imensa influência nos EUA – e suas ideias políticas marcaram as convicções de presidentes, políticos e think-tanks, e assim continua até hoje. Lewis morreu ano passado, mas suas ideias nefastas ainda modelam o pensamento dos EUA sobre o Irã. Mike Pompeo, por exemplo, escreveu: “Só o encontrei uma vez, mas li muito do que ele escreveu. Devo ao trabalho dele grande parte da compreensão que tenho hoje do Oriente Médio (…) Foi homem que acreditava, como eu, que os norte-americanos têm de confiar mais, não menos, na grandeza de nosso país”.

O “plano Bernard Lewis”, como passou a ser conhecido, foi projeto para fraturar, literalmente, todos os países na região – do Oriente Médio até a Índia – seguindo linhas étnicas, sectárias e linguísticas – uma radical balcanização da região. Oficial aposentado do Exército dos EUA, Ralph Peters, veio na sequência, e produziu o mapa do aspecto que teria um Oriente Médio ‘balcanizado’. Ben Gurion também mostrou ambição similar para os interesses israelenses.

A influência de Lewis, contudo, caminhou diretamente até o topo: o presidente Bush foi visto levando artigos de Lewis para um encontro no Salão Oval, pouco depois do 11/9; e só oito dias depois dos ataques ao WTC e ao Pentágono, Lewis estava em reunião de briefing com o Gabinete Político de Richard Perle, na Defesa, sentado ao lado de seu amigo Ahmed Chalabi, líder do Congresso Nacional Iraquiano. Nessa reunião crucial de um gabinete político altamente influente na relação com o secretário da Defesa Donald Rumsfeld – os dois falaram a favor de os EUA invadirem o Iraque.

Lewis insistiu também na ideia mais ampla de um mundo muçulmano atrasado, que tremeria de ódio contra um ocidente modernizador e virtuoso. Foi Lewis, não Samuel Huntington, quem criou a fórmula “choque de civilizações”, – com a implicação extra de que o Islã e o ocidente estariam empenhados numa batalha existencial, pela sobrevivência.

Pelo prisma ‘evangélico’ dos políticos de hoje, como Pompeo e Mike Pence, aquele sinistro prognóstico foi metamorfoseado em ‘choque’ de civilizações na batalha cósmica entre o bem e o mal (com o Irã especificamente designado como fonte de todo o mal cósmico no mundo de hoje).

Esse é o ponto chave: levar a ‘mudança de regime’ ao Irã – ameaça primordial, em termos de Lewis – sempre foi fantasia cara a Lewis. “Devemos negociar com os aiatolás do Irã?” Henry Kissinger perguntou a Lewis. “Absolutamente não” – foi a resposta de Lewis, sem qualquer concessão. A posição geral que os EUA deveriam adotar para a região foi apresentada a Dick Cheney em formato compacto: “Uma das coisas que você tem de fazer aos árabes é acertá-los entre os olhos com um porrete bem grande. O poder, eles respeitam”. Esse conselho orientalista se aplicaria também ao Irã e a seus ‘aiatolás’, disse Lewis: “A pergunta que temos de fazer é: por que eles nem nos temem nem nos respeitam?”

OK. Agora, inspirados por seu herói intelectual (Lewis), Pompeo e John Bolton, seu colega no Projeto para o Novo Século Americano [ing. Project New American Century (PNAC)] de Richard Perle, mal se aguentam de ansiedade para tentar aplicar a receita de Lewis, e ‘acertar’ o Irã entre os olhos com um grande porrete (de sanções).

Nada disso é novidade. Os EUA não se limitaram a folhear os livros de Lewis: aquelas ideias viraram roteiros para a ação, ao longo de décadas. Já nos anos 1960s, Lewis publicou um livro no qual listava vulnerabilidades, e recomendava, portanto, que se usassem diferenças de religião, de classes e étnicas, como arma para extinguir os estados do Oriente Médio.

Seymour Hersh, escrevendo em 2008, noticiava:

“Ano passado [2007], o Congresso aceitou um pedido do presidente Bush, de mais verbas para escalar o plano de operações clandestinas contra o Irã, segundo fontes militares, de inteligência e do Congresso, daquele momento, e atuais. Aquelas operações, para as quais o presidente pedia 400 milhões de dólares, foram descritas em documento assinado por Bush (“Presidential Finding”), e mobilizadas para desestabilizar a liderança religiosa do país. As atividades clandestinas envolviam apoiar a minoria árabe ahwazi, grupos do Baluquistão e outras organizações dissidentes (…).

“Não há novidade em operações clandestinas contra o Irã. Forças de Operações Especiais dos EUA já estão envolvidas em operações transfronteiras a partir do sul do Iraque (…) desde o ano passado. Mas a escala e o objetivo das operações no Irã, que envolvem a CIA e o Comando Conjunto de Operações Especiais [ing. Joint Special Operations Command (JSOC)], foram agora significativamente expandidas, segundo funcionários atuais e antigos. Muitas dessas atividades não aparecem especificada nos novos “Finding”, e alguns líderes no Congresso têm manifestado graves preocupações quanto à natureza delas”.

Desde então, essas operações só se ampliaram – como confirmou a atual diretora da CIA, Gina Haspel, que está redirecionando os recursos da Agência para os concentrar em Rússia e Irã. E os EUA assiduamente plantaram suas bases militares em pontos selecionados conforme as áreas habitadas por minorias étnicas em território iraniano.

Assim sendo qual é o jogo? Terá a ver com eleições nos EUA, orientado principalmente para consumo interno? Tem a ver com enfraquecer e conter o Irã? Visa a forçar o Irã a ceder um ‘melhor’ “Acordo Nuclear”? Ou visa a disparar uma mudança de regime?

Tudo sugere que se trate do seguinte: Pompeo recusou-se a renovar duas exceções chaves, no regime de sanções (além de várias exceções de petróleo). A recusa, nesses dois casos, parece ser a verdadeira ‘arma do crime’ – e aponta para a real intenção de Pompeo e Bolton. Uma das exceções diz respeito à exportação, pelo Irã, de urânio baixo enriquecido; a outra tem a ver com a exportação de ‘água pesada’ do reator Arak.

A questão é que, pelos termos do Tratado Nuclear, o Irã não pode acumular nenhuma dessas substâncias, no que exceda 300 kg e 300 litros respectivamente. Assim sendo, o Irã, nos termos do acordo, é obrigado a exportar qualquer possível excedente que ultrapasse aqueles limites. O urânio baixo enriquecido excedente vai para a Rússia (em troca de bolo amarelo cru [ing. raw yellow cake]); a ‘água pesada’ excedente é armazenada em Omã.

Para que não restem dúvidas: o Irã não aufere absolutamente nenhum benefício nuclear dessas exportações. Elas atendem exclusivamente aos interesses dos signatários do Acordo Nuclear. São detalhes que só interessam aos que advogam a favor da não proliferação de materiais relacionados a atividades físico-nucleares. A exportação desses excedentes foi objetivo do Acordo, e exigida do Irã.

Se esses itens a exportar representam precisamente o modo como o acordo nuclear opera, em torno dos quais foi construído, por que, afinal, Pompeo recusar-se-ia a renovar as exceções, tão estruturalmente associadas à não proliferação? Por elas só, as exceções absolutamente não têm qualquer significação econômica.

A única resposta parece ser que Pompeo e Bolton tentam encurralar o Irã e apanhá-lo na primeira oportunidade em que infrinja o Acordo Nuclear. Estão tentando provocar deliberadamente que o Irã cometa uma infração. Em outras palavras, estão empurrando o Irã na direção de o país buscar a proliferação de armas atômica. Porque, se essas substâncias não podem ser exportadas, o Irã terá de armazená-las, com o que estará infringindo o Acordo Nuclear (a menos que o procedimento de arbitragem pelo Conselho de Segurança da ONU, previsto no Acordo Nuclear, decida noutra direção).

Mas o projeto de empurrar o Irã para infringir formalmente o Acordo gera muitas possibilidades para que Bolton provoque ainda mais o Irã; talvez Bolton até consiga que o Irã ofereça aos EUA o tão buscado casus belli, para reduzir a pó as instalações iranianas para enriquecimento de urânio. Quem sabe?

E como as minorias étnicas iranianas entram nesse quadro? (A maioria da população iraniana é persa, estimada entre 51% e 65%. Os demais maiores grupos etnolinguísticos são: azerbaijanis (16-25+ %), curdos (7-10%), lurs (c. 7%), mazandaranis e gilakis (c. 7%), árabes (2-3), baloques (c. 2%) e turcomenos (c. 2%). Esses grupos são ‘o material’ que os EUA esperam converter em separatistas armados e em insurgentes anti-Irã, depois de passarem pelos ‘programas de treinamento e assistência humanitária’ da CIA. Quando esse plano foi cerebrado, em 2007, houve considerável oposição dentro do governo dos EUA (incluindo as objeções do secretário Gates e do general Fallon, os quais rejeitaram, ambos, a muito questionável substância desse modo de pensar). Como Seymour Hersh observou:

“Falhará, com certeza, qualquer estratégia que use minorias étnicas para minar o Irã – prevê Vali Nasr, que leciona política internacional na Tufts University e também é membro sênior do Conselho de Relações Exteriores. “Não é porque Líbano, Iraque e Paquistão têm problemas com suas diferentes etnias, que o Irã tenha de enfrentar problemas semelhantes” – disse Nasr. – “O Irã é país muito antigo – como França e Alemanha – e seus cidadãos são tão nacionalistas quanto franceses ou alemães.

“Os EUA estão superestimando a tensão étnica no Irã.” Os grupos minoritários aos quais os EUA querem recorrer são bem integrados, ou são muito pequenos e marginais, sem influência no governo, ou sem capacidade para impor qualquer desafio político” – disse Nasr.

“Claro que sempre se pode encontrar grupos ativistas que atacam e matam um policial. Seja como for, trabalhar com as minorias será tiro pela culatra e alienará a maioria da população”.

E, como o professor Salehi-Isfahani da Brookings Institution demonstrou, os elementos mais pobres da sociedade iraniana foram, de certo modo, protegidos do impacto mais violento das sanções (foram mais protegidos que a classe média) – de modo que se pode concluir acertadamente que o Irã consegue sobreviver ao sítio econômico.

Sim, sim, mas… Já ouvimos essa conversa, com outros atores:

Iraque e ‘Curveball’ (codinome do agente iraquiano da inteligência alemã que forneceu inteligência falsa sobre as armas de destruição em massa que haveria, mas nunca houve, no Iraque); exilados iraquianos que garantiram aos norte-americanos que seriam recebidos em Bagdá como “libertadores” e andariam por ruas atapetadas de flores; e o ‘Team B’ (a unidade alternativa de inteligência, criada pelo então vice-presidente Cheney para fornecer inteligência ‘favorável’, que confirmasse o que interessava a Cheney e desqualificasse informação trazida pela CIA). O produto dessa desconexão entre EUA e a realidade em campo no Iraque foi, claro, completo desastre.

Pois cá estamos outra vez, e parece que a história se repete: O antigo ‘Team B’ deixou de ser unidade implantada no Departamento da Defesa, e é hoje uma rede de ex-funcionários da inteligência, que operam com amargurados exilados iranianos – ‘pescando’ dentro do MEK e da preconceituosa e ressentida comunidade de exilados, para em seguida ‘soprar’ seus achados para dentro das salas da Fundação para a Defesa das Democracias [ing. Foundation for the Defense of Democracies] e dali para a Casa Branca – espectros de Chalabi e da Saga do Iraque, tudo outra vez.

É sempre aquele velho, velho conto da inteligência: comece com arraigados preconceitos orientalistas e opiniões preconcebidas sobre a natureza ‘do outro’. Convença-se, você mesmo, que nenhum homem ou mulher ‘modernos’ jamais admitirão ‘aiatolás’… Adivinhe o que vem depois: cada um verá o que deseje ver. E não faltará quem veja que o Irã estaria à beira de “colapso imanente”. Que as minorias estariam maduras para se levantar contra uma autoritária elite persa. E que a intervenção pelos EUA, que remova o tal regime ‘odiado’, seria declarada bem-vinda e recebida ‘com flores e grãos’.

Perfeito nonsense, claro. Mas basta boa dose de capacidade para se autoenganar, só isso, para começar guerras.

A história norte-americana do ‘Team B’ original serve como sombrio sinal de advertência: Cheney não gostava, ou não confiava, no que ouvia dos serviços formais de inteligência. Então inventou um ‘serviço alternativo de inteligência’, que chamou ‘Team B’, de gente que ‘pensava como Cheney’ e ‘encontrava’ o que Cheney queria ver sobre o Iraque (e a Rússia).

Trump, precisamente por causa da experiência que tem com o Estado Profundo, não confia nos altos escalões dos serviços de inteligência norte-americanos. – Por isso, como todos sabem, Trump nem lê o que a inteligência lhe traz. Como Cheney, Trump não vê a inteligência como gente ‘que vê como deve ver’, porque são ‘globalistas; de modo geral, Trump despreza avaliações da inteligência e sempre prefere ouvir gente de zeitgeist mais próximo do dele). Isso, sim, é vulnerabilidade real!

Embora seja verdade que Trump, em dias recentes, tenha admitido que Bolton quer arrastá-lo “para uma guerra”, e tenha manifestado a preocupação de que, como registrou o Washington Post, “Bolton prendeu o presidente num canto do ring, já bem longe da área onde [Trump] sente-se confortável”, os preconceitos de Trump contra o Irã são profundos e têm sido atentamente alimentados por outros – inclusive da própria família –, não só por Bolton.

Trump, sobretudo, age, em política exterior, como magnata do mercado imobiliário de New York, atento só ao ‘negócio’ e à própria imagem, e engajamento zero, moral ou emocional. É provavelmente verdade também, para o envolvimento dos EUA na Síria e no Afeganistão. Mas será o caso, para o Irã? Ou será o Irã a exceção – precisamente porque o Irã está no caminho do ‘projeto do legado’ de Trump – de dar vida a uma ‘Grande Israel’ (também chamado “O Negócio do Século”)?

É possível que Bolton tenha ouvido de Trump alguma suave repreensão por ter errado na Venezuela, sim. Mas é possível que, no caso do Irã, quando Pompeo e Bolton chegarem para chutar a porta, já encontrem a porta semiaberta.

Traduzido por Vila Mandinga

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

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