Os Estados Unidos mostram o dedo do meio para o Tribunal Penal Internacional
Enquanto o Tribunal Penal Internacional finalmente emite mandados de prisão para os líderes israelenses Netanyahu e Gallant, os Estados Unidos confirmam que não têm respeito pelo direito internacional ou por uma ordem genuinamente baseada em regras.
por Vijay Prashad (pt-BR)
thetricontinental.org - 28 de novembro, 2024
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Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Finalmente, antes que a história acabe, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão para o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e seu ex-ministro da Defesa Yoav Gallant por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A acusação declarou que “há motivos razoáveis para acreditar que ambos os indivíduos intencionalmente e conscientemente privaram a população civil em Gaza de objetos indispensáveis à sua sobrevivência, incluindo comida, água, remédios e suprimentos médicos, bem como combustível e eletricidade”. O tribunal concluiu que há razões suficientes para acreditar que os dois homens “têm responsabilidade criminal” pelo crime de fome como método de guerra, pelos crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos, e pelo crime de guerra de dirigir intencionalmente um ataque contra uma população civil. Quase imediatamente, o presidente dos EUA, Joe Biden, condenou as ações do tribunal, afirmando que “a emissão de mandados de prisão contra líderes israelenses pelo TPI é ultrajante”. Os Estados Unidos, disse Biden, “sempre estarão ao lado de Israel”.
A uma curta caminhada da Casa Branca de Biden fica a Freedom House, uma instituição criada em 1941 e financiada predominantemente pelo Departamento de Estado dos EUA. Todos os anos, a Freedom House divulga seu índice “Liberdade no Mundo”, que usa vários pontos de dados para julgar se um país é “livre”, “parcialmente livre” ou “não livre”. Adversários dos Estados Unidos — como China, Cuba, Irã, Coreia do Norte e Rússia — são consistentemente considerados “não livres”, mesmo que tenham processos eleitorais e órgãos legislativos de vários tipos (nas eleições legislativas de 2024 no Irã, por exemplo, 15.200 candidatos concorreram a 290 assentos na Assembleia Consultiva; enquanto no ano passado, em Cuba, os 470 assentos na Assembleia Nacional do Poder Popular foram eleitos por 75,87% dos eleitores qualificados). Enquanto isso, o índice de 2024 concede a Israel uma “pontuação de liberdade global” de 74/100 e o proclama o único Estado “livre” na região, apesar dos autores observarem que em Israel “a liderança política e muitos na sociedade discriminaram árabes e outras populações de minorias étnicas ou religiosas, resultando em disparidades sistêmicas em áreas como infraestrutura, justiça criminal, educação e oportunidades econômicas”. De acordo com as medições desse índice financiado pelo Departamento de Estado dos EUA, que é rotineiramente usado para menosprezar países ao redor do mundo que considera não livres, um sistema de apartheid construído a partir de uma ocupação e agora cometendo um genocídio é considerado uma democracia exemplar.
Índices, como o da Freedom House, não são tão inocentes quanto parecem. A concepção do índice — construída com base em avaliações subjetivas de analistas e consultores selecionados do mundo dos think tanks ocidentais — produz resultados que são frequentemente prescritos. Embora a Freedom House afirme basear-se no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), ignora o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). Este último exigiria uma compreensão de democracia muito mais ampla do que a mera realização de eleições e a existência de múltiplos partidos políticos. O artigo 11 do segundo pacto, sozinho, expandiria a ideia de democracia para incluir o direito à moradia e o direito de estar livre da fome. Como observa o Artigo 4, o objetivo do Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é promover “o bem-estar geral em uma sociedade democrática”. Democracia aqui é usada com um entendimento mais amplo, estendendo-se muito além do simples eleitoralismo. E mesmo no que diz respeito ao eleitoralismo, há pouca preocupação por parte do índice da Freedom House quanto às altas taxas de abstenção nas democracias liberais e quanto ao colapso de uma vibrante cultura midiática para responsabilizar os partidos e líderes políticos.
Mas então, o que importa para aqueles por trás desses índices? Eles se consideram mestres do universo. As reações dos Estados Unidos e da Alemanha — os dois países que mais transferiram armas para Israel durante este genocídio — às acusações do TPI eram esperadas, mas ainda assim são chocantes. A reação arrogante de Biden confirma que os Estados Unidos não entendem ou não se importam com a gravidade de sua insensibilidade e tampouco conseguem compreender que sua rejeição aos mandados do TPI é o último prego no caixão da “ordem internacional baseada em regras” dos EUA. Sobre a questão da insensibilidade: antes da eleição presidencial estadunidense deste ano, o governo Biden disse que Israel tinha que permitir a entrada de ajuda em Gaza dentro de 30 dias ou enfrentaria um congelamento de armas, mas esse prazo venceu sem muitas consequências. A “ordem internacional baseada em regras” sempre foi uma farsa. Em 2002, durante a Guerra ao Terror, liderada pelos EUA, o Congresso dos EUA debateu a possibilidade de um soldado estadunidense ou agente da CIA ser acusado de um crime de guerra. Para imunizar esse soldado ou agente, o Congresso dos EUA aprovou a Lei de Proteção aos Militares Americanos, que tem sido amplamente chamada de “Lei de Invasão de Haia”. Embora o ato não diga que os EUA podem invadir a Holanda para libertar seu pessoal do TPI, ele diz que o presidente dos EUA “está autorizado a usar todos os meios necessários e apropriados para promover a libertação de qualquer pessoa (…) que esteja detida ou presa por, em nome de, ou a pedido do Tribunal Penal Internacional”. Na época da aprovação desse ato, os Estados Unidos retiraram-se formalmente do Estatuto de Roma (1998) que criou o TPI.
Os senadores estadunidenses Tom Cotton e Lindsey Graham invocaram a Lei de Invasão de Haia em resposta à emissão de mandados de prisão pelo TPI para Netanyahu e Gallant, com Graham chegando a dizer que o Senado dos EUA deveria impor sanções, mesmo a aliados como o Canadá, por terem a ousadia de sugerir que apoiariam os mandados. Se os EUA jogarem os mandados do TPI ao vento, então estarão dizendo ao mundo, com firmeza, que não acreditam nas regras, ou que as regras são feitas apenas para disciplinar os outros e não a si mesmos. É notável ver a lista de tratados internacionais que os Estados Unidos nunca assinaram ou nunca ratificaram. Alguns exemplos são suficientes para demonstrar o seu desrespeito por uma ordem internacional genuinamente baseada em regras:
- Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem (1949, nunca assinada).
- Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951, nunca assinada).
- Convenção contra a Discriminação na Educação (1960, nunca assinada).
- Convenção sobre Consentimento para Casamento, Idade Mínima para Casamento e Registro de Casamentos (1962, assinada, mas nunca ratificada).
- Convenção sobre a Não Aplicabilidade de Limitações Estatutárias aos Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade (1968, nunca assinada).
- Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982, nunca assinada).
- Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu Descarte (1989, assinada, mas nunca ratificada).
- Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006, assinada mas nunca ratificada).
Ainda mais assustadoras são as convenções de controle de armas que os Estados Unidos se recusaram a assinar ou das quais se retiraram unilateralmente:
- Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM, na sigla em inglês) (1972, retirado em 2002).
- Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês) (1987, retirado em 2019).
- Tratado de Proibição de Minas (1997, nunca assinado).
- Convenção sobre Munições de Fragmentação (2008, nunca assinada).
- Tratado sobre Comércio de Armas (2013, assinado, mas retirado em 2019).
É porque os EUA abandonaram unilateralmente o Tratado ABM e o Tratado INF que o conflito sobre a Ucrânia se tornou tão inflamado. A Rússia deixou claro em diversas ocasiões que a ausência de qualquer regime de controle de armas para mísseis nucleares de médio alcance representaria uma ameaça às suas principais cidades, caso seus vizinhos aderissem à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em 18 de novembro, em um movimento provocativo e perigoso, Biden permitiu que a Ucrânia usasse mísseis de alcance intermediário para atingir território russo, o que provocou uma resposta poderosa da Rússia contra a Ucrânia. Se a Rússia tivesse decidido disparar um desses mísseis contra uma base estadunidense na Alemanha em retaliação, por exemplo, já poderíamos estar no meio de um inverno nuclear. O desrespeito dos EUA pelo regime de controle de armas é apenas parte de seu absoluto desrespeito a qualquer lei internacional, selado pelo seu dedo do meio erguido para o TPI.
Em 1982, o lutador pela liberdade e poeta sul-africano Mongane Wally Serote (nascido em 1944), que viveu em Botsuana e trabalhou com o Medu Art Ensemble (sobre o qual escrevemos um dossiê no ano passado), publicou “O tempo acabou” em seu livro épico The Night Keeps Winking [A noite segue piscando]. “Muitos de nós enlouquecemos”, escreveu ele, porque “somos humanos e esta é a nossa terra”. Serote estava escrevendo sobre a África do Sul, mas podemos expandir sua visão agora para a Palestina e, na verdade, para todo o planeta. E então Serote escreve:
Muito sangue foi derramado
Por favor, meus compatriotas, alguém pode me dizer uma palavra de sabedoria…
Ah, nós nos familiarizamos com o horror
o coração do nosso país
quando faz seu pulso
o tempo está passando
nos fere
Meus compatriotas, alguém que entenda que agora é tarde demais
alguém que saiba que exploração e a opressão são cérebros que sendo
insanos só conhecem violência
Alguém pode nos ensinar como curar as feridas e lutar?
É hora de revisitar a “grande ferida”, como escreveu Frantz Fanon em 1959, para cuidá-la e lutar.
No início deste ano, Serote escreveu um poema para a Palestina, parte do qual reproduzo para o Dia Internacional em Solidariedade com a Palestina (29 de novembro); para este dia, nós do Instituto Tricontinental organizamos uma exposição apresentando as obras do artista palestino Ibraheem Mohana e 20 crianças para as quais ele tem ensinado arte em Gaza, em meio ao genocídio de Israel.
Ouvimos em nossos olhos os sons da sirene e da explosão
Enquanto isso explodem nossos olhos e ouvidos
e as chamas do fogo vermelho
estão chegando no ar com o poder de uma tempestade
O fogo incandescente segura a carne humana em sua dança incandescente
Foi precedido por uma espessa fumaça preta
Que berra e se
enfurece
Oh
Raça humana
E então acaba…
Ah Palestina!
seja.
Cordialmente,
Vijay
Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
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