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EUA x Rússia e China: agitação no front

por Pepe Escobar

TLAXCALA - 2 de junho, 2019

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=26173

Comecemos em meados de maio, quando aconteceu em Nur-Sultan (ex-Astana), o 3º Fórum de Especialistas Rússia-Cazaquistão [ing. Russia-Kazakhstan Expert Forum] organizado em conjunto pelo importante think-tank Valdai Club e pelo Conselho de Relações Internacionais do Cazaquistão.

No centro dos debates estava a interconexão trabalhosa e crucial, em andamento, das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE), com a União Econômica Eurasiana (UEE). O Cazaquistão [cuja importância ‘vê-se’ no mapa abaixo, de Wikipedia (NTs)] é membro das duas organizações, ICE e UEE.


Cazaquistão

Como me disse Yaroslav Lissovolik, analista destacado no Valdai Club, houve muita discussão “sobre o estado do jogo em mercados emergentes, à luz dos desenvolvimentos associados ao impasse comercial em que estão presos EUA e China.” Das discussões emergiu a necessidade de abraçar “o regionalismo declarado”, como fator capaz de neutralizar “as tendências protecionistas negativas na economia global.”

Traduzida, a frase significa blocos regionais ao lado de um vasto eixo Sul-Sul para extrair máximo rendimento do imenso potencial “para opor resistência a pressões protecionistas”, com destaque para “diferentes formas de integração econômica além da liberalização do comércio”. Entra a “conectividade” – foco sempre principal na ICE.

Segundo Lissovolik, a UEE, que esse ano celebra o 5º aniversário, está toda empenhada no paradigma do regionalismo aberto, com memorandos de entendimento já assinados com Mercosul, ANSA (Associação das Nações do Sudeste Asiático, ing. ASEAN) e outros acordos de livre comércio a serem assinados ainda esse ano, incluindo Sérvia e Singapura.

As sessões do Fórum Rússia-Cazaquistão produziram insights sensacionais sobre o relacionamento trilateral Rússia-China-Ásia Central e colaboração aprofundada Sul-Sul. Deve-se dedicar especial atenção ao conceito de Movimento dos Não Alinhados 2.0 (MNA 2.0). Se estiver surgindo nova bipolaridade, que ponha EUA contra a China, o MNA 2.0 determina que vastos setores do Sul Global muito terão a ganhar se se mantiverem neutros.

Na complexa parceria estratégica Rússia-China, com incontáveis camadas e estratos, estabeleceu-se por hora que Pequim considera Moscou uma espécie de retaguarda estratégica, na ascensão [dos chineses] ao status de superpotência. Mas persistem dúvidas em Moscou, em setores das elites pró “pivô para o Ocidente”, sobre como lidar com Pequim.

É fascinante observar o modo como analistas cazaques neutros veem o processo. Tendem a interpretar percepções negativas quanto a uma possível “ameaça chinesa” como ideias implantadas na Rússia, inclusive na mídia russa, por seus notórios “parceiros” ocidentais; da Rússia, por essas vias, as percepções negativas teriam “passado ao Cazaquistão e a outros países pós-soviéticos.”

Os cazaques destacam que o desenvolvimento da UEE está permanentemente sob tremendas pressões exercidas pelo ocidente, e preocupam-se muito com o risco de a guerra comercial EUA-China vir a ter consequências sérias sobre o desenvolvimento da integração eurasiana. Temem a possibilidade de que se abra novo front da luta EUA-China no Cazaquistão, tão estrategicamente localizado. Mesmo assim, esperam que a UEE expanda-se, principalmente por causa da Rússia.

Andrei Sushentsov, diretor de programação do Valdai Discussion Club, ofereceu explicação mais leniente. Para ele, o caos atual não é Guerra Fria, mas “Guerra Fria ‘de araque’” [ing. “Phony Cold War” [link acrescentado pelos tradutores] – sem agressor principal, sem componente ideológico na confrontação e, mesmo, com “desejo de aliviar a tensão”.

MNA 2.0 ou integração da Eurásia?

Em fala crucialmente importante ao Valdai Club, o presidente deixou claro, mais uma vez, que a interconexão ICE-UEE é prioridade absoluta. E o único mapa do caminho para avançar é rumo à integração da Eurásia.

Isso se interconecta com o avanço da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), cuja reunião anual acontece mês que vem, no Quirguistão. Um dos objetivos chaves da OCX, desde quando foi fundada em 2001, é criar uma sinergia que envolva Rússia-China-Ásia Central.

Não é absurdo ou excessivo considerar que o que aconteça a seguir pode incluir um confronto entre a lógica incorporada no Movimento dos Não Alinhados (MNA) 2.0 e o impulso rumo à integração da Eurásia. Moscou, por exemplo, estará em posição insustentável, se tiver de escolher entre se alinhar ou com Pequim ou com o MNA 2.0.

Putin já entrevê uma via para resolver o problema.

“A experiência histórica mostra que a União Soviética manteve relações construtivas, baseadas na confiança mútua, com muitos países do Movimento dos Não Alinhados. É também claro que, se seguida de modo radical demais, sem qualquer concessão, a lógica do ‘novo movimento não alinhado’ pode vir a ser um desafio à consolidação e à unidade da Eurásia – que é a mais alta prioridade da OCX – e de outros projetos.”

Pode-se supor que Putin já tenha pensado muito sobre “o caso de nova ruptura nas relações Rússia-China, rumo à qual muitos nos empurram”. Putin reconhece que:

“Parte bem grande da sociedade russa receberá isso como desenvolvimento natural e, até, positivo. Assim sendo, para evitar esse cenário (para reiterar, o valor chave da OCX e da associação UEE-ICE é a consolidação e a unidade da Eurásia Expandida [ing. Greater Eurasia]), é indispensável não só o trabalho diplomático fora da Rússia (...) mas, além dele, também muito trabalho dentro do país. Nesse caso, o trabalho tem de ser feito menos com as elites, mediante estudos em periódicos dirigidos a especialistas, mas diretamente com o povo, em mídias de formatos inteiramente diferentes (trabalho que, falando nisso, nem todos os especialistas tradicionais estão capacitados para fazer).”

Mas o alvo final permanece gravado na rocha – “Alcançar o objetivo declarado de consolidar a Eurásia Expandida [ing. Greater Eurasia].”

EUA e sua guerra em três fronts

O Excepcionalistão não aliviará a pressão máxima. Por exemplo, a “Lei das Sanções” [ing. Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act, CAATSA] – agora ampliada, depois de adotado um Programa de Incentivo para Recapitalização da Europa [ing. European Recapitalization Incentive Program], continuará a castigar países que comprem armas russas e chinesas.

A lógica dessa “diplomacia militar” extrema é visível: se você não se armar à moda EUA, você sofrerá. No centro do alvo, dentre outros, Índia e Turquia – ainda dois polos da integração eurasiana, pelo menos em teoria.

Ao mesmo tempo, da think-tank-e-lândia norte-americana, vem o mais recente relatório da RAND Corporation sobre – e o que poderia ser?! – como fazer Guerra Fria 2.0 contra a Rússia, total, com legiões de bombardeiros estratégicos e novos mísseis nucleares de alcance intermédio estacionados na Europa para resistir contra “a agressão russa”. A RAND de Santa Monica é, pode-se dizer, o principal think-tank do Estado Profundo [também chamado “Estado Permanente” (NTs)[1]].

Assim sendo, não surpreende que a estrada adiante esteja marcada por cenários de ‘corredor da morte’ [orig. Desperation Row (sic)[2]]. A guerra econômica dos EUA contra a China – pelo menos, por enquanto – não é tão hardcore quanto a guerra econômica dos EUA contra a Rússia, a qual não é tão hardcore quanto o sítio, ou bloqueio, dos EUA contra o Irã. E ainda nem se falou da forte possibilidade de mais uma guerra econômica extra do governo Trump contra a União Europeia.

Não é por acaso que as guerras econômicas em curso visem aos três nodos chaves da integração eurasiana. A guerra contra a União Europeia talvez não aconteça, porque os principais beneficiários seriam o triunvirato Rússia-China-Irã.

Obviamente, não restam ilusões em Pequim, Moscou e nos corredores do poder em Teerã. Reina a diplomacia mais frenética. Depois do fórum ICE em Pequim, os presidentes Putin e Xi reúnem-se novamente no início de junho no Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo – no qual a interconexão ICE-UEE será tema obrigatório, além da questão de conter os EUA na Ásia Central.

Depois, Rússia e China encontram-se outra vez na cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, em Bishkek. O chefe de Serviço de Segurança Federal da Rússia [ing. Federal Security Service (FSB), Alexander Bortnikov, informou pela mídia, abertamente, que cerca de 5 mil jihadistas ligados ao ISIS/Daesh, saídos diretamente do grupo de jihadistas sírios “rebeldes moderados”, estão agora concentrados na fronteira do Afeganistão com Tadjiquistão e Uzbequistão, com possibilidade de atravessarem para o Paquistão e para a China.

É gravíssima ameaça à segurança de todos os membros da OCX – e será discutida em detalhes em Bishkek, ao lado da necessidade de incluir o Irã como novo membro permanente.

O vice-presidente chinês Wang Qishan está visitando o Paquistão, país-membro chave da ICE, pelo Corredor Econômico China-Paquistão [ing. CPEC]; e visitará Holanda e Alemanha. Pequim quer diversificar sua complexa estratégia de investimento global.

Entrementes, de Istanbul a Vladivostok, permanece a questão chave: como fazer funcionar o Movimento dos Não Alinhados 2.0 a favor da integração da Eurásia.

NTs

[1] Deep State – A term used to describe the people in the government that usually serve very long tenures and have a considerable amount of power, but are largely unaccountable to the people.
Also known as the “Permanent State” [Estado Permanente] or “Shadow Government”[Governo Sombra] [by tumelo January 08, 2019, in Urban Dictionary, Deep State (4) (Aqui anotado, porque “Estado Permanente” é excelente expressão, muuuuuuuito mais precisa e menos ‘assustadora’ que “Estado Profundo”. Afinal, nem é profundo (é raso), mas permanente, sim, é.)]

[2] Impossível não pensar em Desolation Row...

Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga

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Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..

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