Cinquenta anos atrás, um esquadrão de policiais de Chicago matou os líderes dos Panteras Negras Fred Hampton e Mark Clark em uma operação antes do amanhecer no apartamento onde estavam dormindo. Nas décadas seguintes, um conjunto de evidências reveladoras surgiu, mostrando que Hampton foi vítima de um assassinato político, sancionado nos níveis mais altos do governo dos EUA.
A história segue sendo importante hoje, mas não porque o FBI ainda se envolve em assassinatos. O Bureau tem como alvo os “extremistas da identidade negra” por motivos frágeis, mas não há evidências de que tenha matado nenhum deles. De fato, o diretor do FBI, Christopher Wray, diz que novos agentes são obrigados a estudar o famigerado COINTELPRO (Programa de Contrainteligência) precisamente para aprender o que não fazer.
O que Wray prefere não contar a seus funcionários ou ao público é que um de seus antecessores, J. Edgar Hoover, instigou o assassinato de um promissor líder político afro-americano e se safou. O assassinato de Hampton foi um exemplo de como as agências policiais e de inteligência dos EUA roubaram do país a esperança de uma mudança pacífica sem que nunca tenham sido responsabilizadas.
Ninguém nunca foi condenado pelo assassinato de Hampton. Até hoje, muitos jornalistas e historiadores não estão dispostos a afirmar que Hoover e outras altas autoridades americanas apoiaram o assassinato de inimigos domésticos. No entanto, evidências circunstanciais convincentes demonstram que eles fizeram exatamente isso no caso de Fred Hampton.
A história do assassinato de Hampton não é tão conhecida como a do presidente Kennedy, Martin Luther King, Robert Kennedy e Malcolm X. Em 2018, um grupo diversificado de cidadãos formou o Comitê de Verdade e Reconciliação, que pede a reabertura do investigações desses quatro assassinatos famosos. (Sou um membro.) A história de Fred Hampton mostra por que isso é necessário.
O terrível assassinato de Hampton tem muito em comum com as mortes de JFK, MLK, RFK e Malcolm. Trata-se de um crime político não resolvido, repleto de improbidade oficial e envolto em uma cobertura aduladora por parte da mídia.
Quem era Fred Hampton?
Aos 21 anos, Hampton era um estudante de honra do subúrbio de Chicago e um líder experiente. Ele começou como organizador da Associação Nacional Integracionista para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP). Ele ganhou destaque como líder do Partido dos Panteras Negras, que desprezava a NAACP como muito acomodadora para os brancos. Numa época em que muitos militantes negros preferiam dashikis e jaquetas de couro, Hampton usava uma camisa de botão e um pulôver.
Um auto-descrito “revolucionário”, Hampton imaginou o futuro do movimento dos direitos civis como uma “coalizão arco-íris” de pessoas brancas, pretas, marrons, amarelas e vermelhas. Jesse Jackson adotaria mais tarde o termo como o nome de sua organização e o tema de suas inovadoras campanhas presidenciais de 1984 e 1988. Em resumo, Hampton era um líder carismático com uma visão de casar o evangelho social de King ao nacionalismo militante de Malcolm X.
Não por acaso, Malcolm X, King e Hampton foram assassinados no espaço de quatro anos.
O FBI estava envolvido?
O ataque que matou Hampton foi o culminar do notório Programa de Contrainteligência do FBI. O COINTELPRO, como é conhecido, geralmente é identificado como um programa do FBI. Na realidade, o COINTELPRO se originou na CIA. Quando o chefe de contra-inteligência da CIA, James Angleton, lançou um programa secreto e ilegal para abrir as cartas dos norte-americanos em 1957, ele forneceu os resultados a Hoover, juntamente com as técnicas para “neutralizar” os inimigos. O COINTELPRO foi a implementação doméstica dos procedimentos operacionais padrão da CIA em outros países.
Como vice de Hoover (e amigo próximo de Angleton) William Sullivan explicou mais tarde aos investigadores do Senado, o “duro, duro negócio sujo” da contra-espionagem estrangeira foi “trazido para casa contra qualquer organização contra a qual fôssemos direcionados.”
Hoover considerava todos os líderes afro-americanos, exceto os mais quiescentes, como defensores do “ódio”. Era a projeção bizarra de um homem odioso, não muito diferente da retórica da descendência política de Hoover – Rush Limbaugh e Donald Trump – que zomba de Barack Obama como um “racista”.
O significado de “neutralizar”
Um dos primeiros alvos do COINTELPRO foi Martin Luther King, um defensor religioso da não-violência e da integração. Em 1964, agentes do FBI enviaram a King uma carta dizendo que “seu fim está se aproximando…. Acabou para você…. Existe apenas uma saída para você.” Os colegas de King entenderam a carta como um convite não muito sutil para cometer suicídio.
Quando o movimento pelos direitos civis floresceu na década de 1960, Hoover se tornou mais explícito sobre suas técnicas de repressão. Em um memorando de agosto de 1967, disponível no site do FBI, Hoover disse que o objetivo do COINTELPRO era “expor, interromper, desviar ou neutralizar as atividades de nacionalistas negros, organizações e grupos de ódio, suas liderança, porta-vozes, associações e apoiadores”.
Quando o Partido dos Panteras Negras (BPP) explodiu como um movimento popular entre afro-americanos impacientes com a abordagem de “dar a outra face” de King, Hoover enviou outro memorando ordenando aos escritórios do FBI que submetessem “medidas de contra-inteligência imaginativas e contundentes destinadas a incapacitar o BPP.”
A linguagem era um convite à violência política: imaginativa, contundente, incapacitante. O propósito, enfatizou o diretor racista, era “prevenir a violência … identificar os causadores de problemas e neutralizá-los antes que eles exercessem seu potencial de violência”. O objetivo, ele explicou, era impedir o surgimento de líderes que pudessem “unificar e eletrificar” a comunidade negra, como Malcolm X e King aspiravam fazer.
A maioria dos policiais brancos com armas e distintivos entendeu muito bem o que Hoover pretendia quando usou a palavra “neutralizar”. Mas muitos jornalistas e historiadores brancos ainda não o fazem.
Em um memorando de janeiro de 1969, Hoover reiterou que os Panteras eram um alvo principal do COINTELPRO porque o grupo estava tentando melhorar sua imagem. Não por acaso, Hampton estava nas manchetes, com seus esforços para forjar uma trégua entre as gangues de rua e ativistas revolucionários de Chicago.
Na época, os agentes da COINTELPRO regularmente infiltravam informantes e provocadores nas gangues e nos Panteras com o objetivo de provocar violência entre eles. Essa tática foi letalmente bem-sucedida. E qualquer um que ousasse dizer que o FBI se envolvia em tais táticas certamente seria descrito pela grande imprensa como um “teórico da conspiração”.
Diante de uma terrível violência, os Panteras se recusaram a se render (o que é uma das razões pelas quais a Hollywood negra sonhou com um super-herói chamado “Pantera Negra”). O FBI saqueou a sede dos Panteras em Chicago em julho e outubro de 1969. Em novembro de 1969, um dos Panteras foi emboscado e morto em um tiroteio que deixou dois policiais de Chicago mortos.
Àquela altura, o FBI tinha um informante pago, William O´Neal, dentro da organização dos Panteras Negras. De acordo com advogados da família de Hampton, O´Neal deu uma planta baixa do apartamento onde Hampton morava para seu contato da polícia. O plano foi passado a um esquadrão especial de policiais de Chicago que trabalhavam para o Ministério Público do Condado de Cook. O escritório era chefiado por Edward Hanrahan, um promotor politicamente ambicioso. Em 3 de dezembro de 1969, o escritório de Hanrahan notificou Hoover de um plano para invadir o apartamento de Hampton para buscar por armas ilegais.
O que aconteceu em 4 de dezembro?
Os Panteras e a polícia deram versões diametralmente opostas da morte de Hampton. A polícia disse que, quando se anunciaram, foram recebidos com um tiro de espingarda. Os Panteras disseram que os policiais abriram fogo primeiro. Hampton morreu em sua cama, ao lado de sua esposa grávida. Outro líder dos Panteras, Mark Clark, foi morto em outra sala. Quatro pessoas no apartamento ficaram feridas e três saíram ilesas.
As autoridades de Chicago então deram a O´Neal um bônus de 300 dólares e acusaram os sete sobreviventes da invasão por tentativa de assassinato contra os policiais. No julgamento, um examinador da cena do crime do FBI testemunhou que a polícia havia disparado pelo menos 89 tiros e as pessoas no apartamento haviam disparado exatamente um. E ele não veio do quarto de Hampton.
À medida que a indignação pública aumentava, o Departamento de Justiça dos EUA começou a investigar, e Hanrahan retirou as acusações. Um promotor especial do estado indiciou mais tarde ele e outros 13 policiais por obstrução da justiça. Eles foram absolvidos em 1972.
O COINTELPRO foi exposto por um bando valente de assaltantes de esquerda que invadiram um escritório do FBI na Pensilvânia e de lá saíram com um tesouro de documentos secretos do FBI, que compartilharam com repórteres. Em 1975, o Comitê de Inteligência do Senado para as atividades da CIA, conhecido como “Church Comittee“, investigou e documentou uma série de crimes do COINTELPRO. O diretor do FBI, Clarence Kelley, emitiu um pedido de desculpas formal.
Mas o “desculpe” não pagou nenhuma conta pela viúva de Hampton, pelo seu filho pequeno e pelos outros sobreviventes. As famílias das vítimas entraram com uma ação civil de 47 milhões de dólares contra Hanrahan e os policiais, que foram demitidos e reintegrados. Treze anos depois, em 1982, a cidade de Chicago, o Condado de Cook e o Departamento de Justiça dos EUA concordaram em pagar um acordo de 1,85 milhão de dólares, uma admissão tardia de que Hampton havia sido alvejado ilegalmente. Para o sofrimento de sete vítimas e suas famílias, foi um pagamento bem-vindo, mas relativamente parcimonioso.
Hanrahan concorreu duas vezes a prefeito de Chicago; ele perdeu em ambas as vezes. Ele morreu em 2009.
Um assassinato sancionado pelo Estado
O relatório final do Church Comittee denunciou o COINTELPRO, mas se absteve de usar a palavra “assassinato.”
“O COINTELPRO foi mais do que simplesmente violar a lei ou a Constituição. No COINTELPRO, o FBI secretamente tomou a lei em suas próprias mãos, indo além da coleta de informações e além da função de aplicação da lei para agir completamente fora do processo legal e para disfarçar, desacreditar e assediar secretamente grupos e indivíduos.”
Isso foi muito caridoso com o FBI. É verdade que Fred Hampton e seus colegas Panteras foram perturbados, desacreditados e perseguidos. É verdade que alguns Panteras Negras, em outras ocasiões, cometeram crimes ou provocaram encontros violentos com a polícia. Hampton não era um deles. A verdade simples, ainda em grande parte indizível em Washington, é que Hampton foi assassinado – assassinado por razões políticas. Ele foi, em uma palavra, “neutralizado” a pedido dos líderes do governo dos EUA.
É certo que J. Edgar Hoover e James Angleton não conspiraram para matar Fred Hampton em sua cama. Eles apenas incentivaram e permitiram que outros fizessem o “duro, duro negócio sujo” da repressão política, em casa e no exterior. Homens de poder nos EUA sabiam como manter suas impressões digitais longe dos crimes resultantes.
A perda é dolorosa de se contemplar. Se ele tivesse vivido, Fred Hampton teria 71 anos, mais velho que Barack Obama, Kamala Harris e Cory Booker, mais jovem que Donald Trump, Elizabeth Warren, Bernie Sanders e Joe Biden. Talvez ele tivesse feito a revolução. Talvez ele tivesse concorrido à presidência. Talvez ele tivesse feito as duas coisas. Só podemos imaginar as possibilidades que foram extintas naquela noite, há 50 anos.
Traduzido por Pedro Marin para a Revista Opera
Jefferson Morley é o editor do blog JFK Facts e autor de ""The Ghost: The Secret Life of CIA Spymaster James Jesus Angleton.". É membro do Independent Media Institute.
https://revistaopera.com.br/2019/12/04/fred-hampton-um-visionario-negro-assassinado-pelo-fbi/