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Gaza: uma pausa antes da tempestade

«Os EUA e os seus aliados vão continuar a apoiar a guerra de Israel em Gaza após uma breve trégua. Mas à medida que a identificação do “genocídio” se torna mais forte, as novas potências multipolares terão de enfrentar as velhas hegemonias e o seu Caos Baseado em Regras.» O que está em causa tem impacto global. O carácter criminoso do Estado sionista (e de quem o apoia) e o martírio do povo palestiniano são agora visíveis aos olhos de todo o mundo. Se uma maioria global hoje em vias de se formar agir com firmeza, pode sair desta dramática situação uma outra realidade. A protesto mundial e a solidariedade com o povo palestiniano desempenharão papel central nesse processo.

por Pepe Escobar (PT) | The Cradle

ODiario.info - 29 de novembro, 2023

https://www.odiario.info/gaza-uma-pausa-antes-da-tempestade/

Enquanto o mundo grita “genocídio israelita”, a Casa Branca de Biden está a gabar-se da trégua a chegar em Gaza que ajudou a mediar, como se estivesse realmente “à beira” da sua “maior vitória diplomática”.

Por detrás das narrativas de auto congratulação, a administração dos EUA não está nem remotamente “cautelosa em relação ao objectivo final de Netanyahu”, apoia-o totalmente - genocídio incluído - tal como acordado na Casa Branca menos de três semanas antes do Dilúvio de Al-Aqsa, numa reunião de 20 de Setembro entre o Presidente israelita Benjamin Netanyahu e os controladores de Joe “A Múmia” Biden.

As “tréguas” mediadas pelos EUA e Qatar, que deverão entrar em vigor esta semana, não são um cessar-fogo. É uma manobra de relações públicas para suavizar o genocídio de Israel e aumentar o seu moral, assegurando a libertação de algumas dezenas de prisioneiros. Além disso, o historial mostra que Israel nunca respeita cessar-fogos.

Previsivelmente, o que realmente preocupa a administração dos EUA é a “consequência não intencional” da trégua, que “permitirá aos jornalistas um acesso mais alargado a Gaza e a oportunidade de tornar ainda mais visível a devastação e virar a opinião pública contra Israel”.

Desde 7 de Outubro que jornalistas a sério trabalham em Gaza 24 horas por dia, 7 dias por semana - dezenas dos quais foram mortos pela máquina militar israelita, naquilo a que o Repórteres Sem Fronteiras chama “um dos mais mortíferos balanços num século”.

Estes jornalistas não se pouparam a esforços para ir até ao fim e “iluminar a devastação”, um eufemismo para o genocídio em curso, mostrado em todos os seus horríveis pormenores para o mundo inteiro ver.
Até a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), ela própria atacada sem tréguas por Israel, revelou – de algum modo docilmente - que esta foi “a maior deslocalização desde 1948", um “êxodo” da população palestiniana, com a geração mais jovem “forçada a viver os traumas dos antepassados ou dos pais”.

Quanto à opinião pública de todo o Sul Global/Maioria Global, “virou-se” há muito tempo contra o extremismo sionista. Mas agora a Minoria Global - as populações do Ocidente colectivo - assiste extupefacta, horrorizada e amargurada por, em apenas seis semanas, os meios de comunicação social os terem exposto ao que os meios de comunicação social mainstream esconderam durante décadas. Agora que a ficha caiu, não há volta atrás possível.

Um antigo Estado de Apartheid abre caminho

O governo sul-africano abriu o caminho, a nível mundial, para a reacção adequada a um genocídio em curso: o parlamento votou o encerramento da embaixada de Israel, a expulsão do embaixador israelita e o corte de relações diplomáticas com Telavive. Os sul-africanos sabem uma ou duas coisas sobre o apartheid.

É bom que eles, tal como outros críticos de Israel, sejam extremamente cautelosos no futuro. Pode esperar-se qualquer coisa: um surto de falsas bandeiras conduzidas por serviços secretos estrangeiros, calamidades meteorológicas induzidas artificialmente, falsas acusações de “abuso dos direitos humanos”, o colapso da moeda nacional, o rand, processos judiciais, apoplexias atlantistas variadas, sabotagem de infra-estruturas energéticas. E muito mais.

Várias nações já deveriam ter invocado a Convenção sobre o Genocídio - uma vez que os políticos e funcionários israelitas se têm gabado, oficialmente, de arrasar Gaza e de sitiar, matar à fome, matar e transferir em massa a sua população palestiniana. Até agora, nenhum ator geopolítico se atreveu a fazê-lo.

A África do Sul, por seu lado, teve a coragem de ir onde poucos Estados muçulmanos e árabes se aventuraram. Actualmente, no que diz respeito a grande parte do mundo árabe - em particular os Estados clientes dos EUA - ainda se encontram em território de Pântano Retórico.

As “tréguas” negociadas pelo Qatar chegaram na altura certa para Washington. Desviou a atenção da delegação de ministros dos Negócios Estrangeiros islâmicos/árabes que percorriam capitais seleccionadas para promover o seu plano para um cessar-fogo total em Gaza - mais negociações para um Estado palestiniano independente.

Este Grupo de Contacto de Gaza, que reúne a Arábia Saudita, o Egipto, a Jordânia, a Turquia, a Indonésia, a Nigéria e a Palestina, fez a sua primeira paragem em Pequim, onde se reuniu com o Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, e depois em Moscovo, onde se encontrou com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei Lavrov. Este foi, sem dúvida, um exemplo do BRICS 11 já em acção - mesmo antes de iniciar a sua actividade em 1 de Janeiro de 2024, sob a presidência russa.

A reunião com Lavrov em Moscovo decorreu em simultâneo com uma sessão extraordinária online do BRICS sobre a Palestina, convocada pela actual presidência sul-africana. O Presidente do Irão, Ebrahim Raisi, cujo país lidera o Eixo de Resistência da região e recusa quaisquer relações com Israel, apoiou as iniciativas sul-africanas e apelou aos países membros do BRICS para que utilizem todos os instrumentos políticos e económicos disponíveis para pressionar Telavive.

Foi também importante ouvir o próprio Presidente chinês, Xi Jinping, afirmar que “não pode haver segurança no Médio Oriente sem uma solução justa para a questão da Palestina”.

Xi Jinping sublinhou mais uma vez a necessidade de “uma solução com dois Estados”, a “restauração dos legítimos direitos nacionais da Palestina” e “o estabelecimento de um Estado independente da Palestina”. Tudo isto deveria começar através de uma conferência internacional.

Nada disto é suficiente nesta fase - nem estas tréguas temporárias, nem a promessa de uma negociação futura. A administração norte-americana que, na melhor das hipóteses, se debate com uma inesperada reacção global, fez um braço de ferro com Telavive para decretar uma curta “pausa” no genocídio. Isto significa que a carnificina continua ao fim de alguns dias.

Se esta trégua fosse um verdadeiro “cessar-fogo”, em que todas as hostilidades parassem e a máquina de guerra de Israel se retirasse totalmente da Faixa de Gaza, as opções para o dia seguinte continuariam a ser bastante desanimadoras. O especialista em realpolitik John Mearsheimer já foi directo ao assunto: uma solução negociada para Israel-Palestina é impossível.

Basta um rápido olhar para o mapa actual para demonstrar graficamente como a solução dos dois Estados - defendida por todos, desde a China-Rússia até grande parte do mundo árabe - está morta. Uma colecção de bantustões isolados nunca poderá fundir-se num Estado.

Vamos apropriar-nos de todo o gás deles

Tem havido um ruído estrondoso em todo o espectro de que, com o advento do petroyuan cada vez mais próximo, os norte-americanos precisam urgentemente da energia do Mediterrâneo Oriental comprada e vendida em dólares americanos - incluindo as vastas reservas de gás ao largo da costa de Gaza.

Entra em cena o conselheiro da administração americana para a segurança energética, destacado para Israel para “discutir potenciais planos de revitalização económica para Gaza centrados em campos de gás natural offshore não desenvolvidos”: que belo eufemismo.

Mas enquanto o gás de Gaza é, de facto, um vector crucial, Gaza, o território, é um incómodo. O que realmente interessa a Telavive é confiscar todas as reservas de gás Palestinianas e atribuí-las a futuros clientes preferenciais: a UE.

O Corredor Índia-Médio Oriente (IMEC) - na verdade, o Corredor UE-Israel-Arábia Saudita-Emirados-Índia - foi concebido por Washington como o veículo perfeito para Israel se tornar uma potência energética de encruzilhada. Imagina, de forma fantasiosa, uma parceria energética EUA-Israel que negoceia em dólares americanos - substituindo simultaneamente a energia russa para a UE e travando um possível aumento da exportação de energia do Irão para a Europa.

Regressamos aqui ao principal tabuleiro de xadrez do século XXI: o Hegemon contra os BRICS.

Até agora, Pequim tem mantido relações estáveis com Telavive, com investimentos avultados nas indústrias e infra-estruturas de alta tecnologia israelitas. Mas o ataque de Israel a Gaza pode mudar esse cenário: nenhum verdadeiro Soberano se pode alhear quando se trata de um verdadeiro genocídio.

Paralelamente, seja o que for que o Hegemon possa inventar nos seus vários cenários de guerra híbrida e quente contra os BRICS, a China e a sua Iniciativa de muitos biliões de dólares “Uma Faixa, Uma Rota” (BRI), isso não alterará a trajectória racional e estrategicamente formulada por Pequim.

Esta análise Eric Li é tudo o que é preciso saber sobre o que está para vir. Pequim traçou todas as vias tecnológicas relevantes a seguir nos sucessivos planos quinquenais, até 2035. Neste quadro, a BRI deve ser considerada uma espécie de ONU geoeconómica sem o G7. Quem está fora da BRI - e isso diz respeito, em grande medida, aos velhos sistemas e elites compradoras - está a isolar-se do Sul Global/Maioria Global.

Então, o que resta desta “pausa” em Gaza? Na próxima semana, os cobardes apoiados pelo Ocidente recomeçarão o seu genocídio contra mulheres e crianças, e não pararão durante muito tempo. A resistência palestiniana e os 800.000 civis palestinianos que ainda vivem no norte de Gaza - agora cercados por todos os lados por tropas israelitas e veículos blindados - estão a provar que estão dispostos e são capazes de suportar o fardo da luta contra o opressor israelita, não só pela Palestina mas por todos, em todo o lado, com consciência.

Apesar do terrível preço a pagar em sangue, acabará por haver uma recompensa: a lenta mas segura evisceração da construção imperial na Ásia Ocidental.

Nenhuma narrativa dos principais meios de comunicação social, nenhuma manobra de relações públicas para suavizar o genocídio, nenhuma contenção da “opinião pública a virar-se contra Israel” poderá alguma vez encobrir os crimes de guerra em série perpetrados por Israel e pelos seus aliados em Gaza. Talvez seja isto mesmo que o Doutor - metafísico e não só - encomendou para a humanidade: uma tragédia global imperativa, a ser testemunhada por todos, que também nos transformará a todos.

Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan.

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