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Gaza, a solução final

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, escolheu a chamada «Cimeira da Paz» promovida por Emmanuel Macron, em Paris, para anunciar que «não há solução diplomática» para o problema de Gaza.

Por José Goulão

AbrilAbril - 15 de novembro, 2018

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Palestinianos entre destroços de edifícios bombardeados em Gaza. Créditos: Mohammed Asad / Middle East Monitor

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, escolheu a chamada «Cimeira da Paz» promovida por Emmanuel Macron, em Paris, para anunciar que «não há solução diplomática» para o problema de Gaza. Instantes depois, iniciou-se mais um período de ataques aéreos e invasão terrestre do exército israelita contra a martirizada faixa de terra cercada e bloqueada, na verdade um campo de concentração. Através das suas solenes palavras, ficou registado que o chefe do regime sionista já tem uma solução final para os dois milhões de habitantes de Gaza – e que não será alcançada por via negocial. O mundo ouviu e calou.

Não consta que algum governo ou presidente se tenha dado conta da gravidade deste acontecimento. Nem em Lisboa, onde o ministro Santos Silva costuma ter a verve afiada quando supõe que algo de mau aconteceu aos seus «bons», nem na Cochinchina. Tão-pouco se ouviram vozes, ao menos murmúrios, condenando os 150 raides aéreos realizados por aviões militares israelitas para protegerem os assassínios selectivos cometidos por soldados vestidos civilmente infiltrados em Gaza.

Já estamos habituados, não é…? Foram mais alguns palestinianos mortos pelas mesmas mãos que, sensivelmente na mesma ocasião, prenderam na região de Hebron, na Cisjordânia, um perigoso «terrorista» com oito anos de idade, de seu nome Omar Rabie Abu Ayyash. Uma entre as 8000 crianças palestinianas presas, torturadas, submetidas a arbitrários tribunais militares desde 2000. Procuremos compreender: para garantir a sobrevivência de um Estado tão «ameaçado» como de Israel, sem dúvida que a melhor defesa é o ataque; e os terroristas não têm idade.

Que solução final?

Fazendo fé nas palavras de Benjamin Netanyahu, sempre na primeira fila entre os democratas mundiais – só em Paris, ele já «foi Charlie» e agora uma das atracções da «Cimeira da Paz» –, se não há «solução diplomática» para Gaza, o que tenciona fazer para resolver o problema de dois milhões de pessoas que teimam em sobreviver amontoadas num território com pouco mais de 300 quilómetros quadrados – dimensão do concelho de Montijo –, mesmo sem electricidade, com 70% de desemprego, contidas por muros e cercas de arame farpado, sem medicamentos, com penúria de alimentos básicos, bebendo água salgada, rigorosamente vigiadas por um dos mais poderosos exércitos mundiais, usadas como cobaias para testes permanentes de novas armas de extermínio?

Porque o chefe sionista não se alongou em mais explicações, deixou espaço para algumas especulações através de um campo de hipóteses que não é muito vasto. O que resta então? Uma solução pela força: extermínio total? Ou parcial, abrindo depois as portas para uma limpeza étnica em direcção ao Egipto, cujo regime não pode sequer ouvir falar disso?

Tanto assim é que o Cairo faz a sua parte no cerco de Gaza na zona fronteiriça que lhe compete; e se apressa, sempre que necessário, a servir de intermediário na negociação de situações de cessar-fogo, como aconteceu nas últimas horas. Uma trégua precária não reconhecida publicamente pelo ex-porteiro de discoteca ucraniana e ex-ministro israelita da Defesa, o fascista Avigdor Lieberman.

Mas há o «Acordo do Século»!

Podemos admitir, com muito boa vontade, a existência de uma «terceira via» reservada para a população de Gaza, e que seria a passagem à prática do «Acordo do Século» sobre a questão palestiniana, congeminado entre Trump e Netanyahu, mas cujo anúncio oficial continua por fazer.

Segundo as fugas que tem havido em relação ao conteúdo desse projecto, Gaza seria um «mini-Estado» administrado conjuntamente pelo Hamas e o Egipto; em relação ao território actual, a entidade «autónoma» seria prolongada para o Egipto, na região do Sinai, onde funcionaria um polo industrial e tecnológico, naturalmente com trabalho escravo no estilo que já foi o dos «dragões asiáticos»; e onde seriam também construídos um porto e um aeroporto internacionais, a colocar sob administração egípcia.

O «mini-Estado» de Gaza ficaria incomunicável em relação à Cisjordânia, fragmentando-se assim a questão palestiniana.

Tanto quanto se sabe, o Egipto ainda não foi consultado sobre este arranjo; custa a crer que o regime do general al-Sisi, assente no antagonismo à Irmandade Muçulmana, admita cogerir uma entidade com o Hamas, um ramo dessa mesma organização.

Nada indica que o Hamas, agora dependente do Qatar, transferindo para este país as ligações preferenciais que tinha com o Irão, admita rever-se no projecto israelo-norte-americano. Sabe-se que este plano é igualmente apoiado pela Arábia Saudita – uma boa razão, nas circunstâncias actuais da região, para o Qatar se posicionar de maneira antagónica.

Os factos enunciados bastam para comprovar que a hipotética «terceira via» seria «diplomática» apenas na aparência – e só nessa condição soa como uma contradição perante a declaração de Netanyahu em Paris.

Pelo contrário, o normativo do «Acordo do Século» só poderia ser aplicado pela força, um passo que levaria, no mínimo, a um confronto directo entre Israel e o regime de al-Sisi, que conduz o primeiro aliado árabe do sionismo na esteira dos presidentes Sadat e Mubarak.

O «Acordo do Século» é, portanto, incompatível com qualquer solução diplomática; ou está ainda a anos de luz dela – o que vai dar no mesmo.

Silêncio grave e cúmplice

Posto isto, é muito grave o silêncio que se ouve no mundo em relação às palavras terroristas proferidas por Netanyahu num pretenso ambiente «de paz», em Paris. Não será necessário um grande e prolongado esforço intelectual para deduzir que o primeiro-ministro de Israel advoga uma estratégia de força como «solução final» para Gaza. E, como a desproporção das forças e meios militares em presença é esmagadora, uma guerra conduzida até às últimas consequências para ultrapassar o problema significaria o extermínio em massa da indefesa população do território. E as ofensivas recorrentes parecem integrar-se no processo de preparação, a anestesia da chamada «comunidade internacional» para o desfecho inevitável – a chacina ou, no mínimo, uma repugnante limpeza étnica susceptível de colocar mais dois milhões de refugiados à deriva pelo mundo.

O silêncio da dita «comunidade internacional», no qual não se escutam dissonâncias, não é apenas cúmplice; é um sinal assustador de que a anestesia já está a produzir efeito, tal a reverência submissa do mundo perante os desplantes terroristas da aberração sionista.

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José Goulão (26 de Junho de 1950) é um jornalista português. Iniciou a actividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Económico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi director. Foi também director de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na àrea de Política internacional , especialmente nas questões do Médio Oriente , sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP

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