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O “crime de honra” contra jovem palestina Israa Ghrayeb deve ser para nós o toque de despertar

A morte de Israa Ghrayeb disparou reações furiosas relacionadas aos chamados “crimes de honra” na Palestina e em todo o mundo árabe. Também causou confusão quanto aos fundamentos jurisprudenciais de crimes desse tipo, frequentemente cometidos em nome de proteger a honra de alguma família.

por Ramzy Baroud | The Palestine Chronicle

TLAXCALA - 18 de setembro, 2019

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=27009

Israa, artista maquiadora de 21 anos, da cidade de Beit Sahour na Cisjordânia, foi, segundo o noticiário, espancada até a morte pelo próprio irmão por ter “desonrado” a família. O trágico episódio foi aparentemente desencadeado por um vídeo postado numa mídia social, que mostrava Israa e seu noivo.

Enquanto comunidades palestinas e outras comunidades árabes enfurecem-se sinceramente contra a violência contra mulheres, há também os que encontraram meios para acusar o Islã e condenar todas as sociedades árabes. Como se poderia prever, a questão rapidamente alcançou espaços políticos, de ideologia e de religião.

Nada mais distante da verdade histórica. Leis que favorecem os chamados “crimes de honra” no Oriente Médio (e em outras partes do mundo) não se originam da lei da Xaria Islâmica, mas do Código Penal da França Napoleônica, de 1810, que tolerava em grande medida os “crimes de paixão”. Na França e na Itália, leis sobre crimes de honra só foram revogadas em 1975 e 1981, respectivamente.

A exploração de fraquezas em sociedades árabes e muçulmanas é negócio antigo e próspero. A retórica antiárabes e antimuçulmanos sempre foi a linha de frente de muitas campanhas militares e políticas do ocidente, desde o início do período colonial até as recentes guerras no Afeganistão, no Iraque e na Líbia. Por muitos anos, discursos elaborados visaram a justificar a guerra e a racionalizar a intervenção, para desviar a atenção dos reais motivos da exploração econômica e violência.

“As mães e filhas no Afeganistão eram prisioneiras nas próprias casas” – disse o ex-presidente dos EUA George W. Bush em janeiro de 2002, celebrando a suposta “vitória” dos EUA no Afeganistão. “Hoje, as mulheres [afegãs] são livres”. Bush disse isso apenas poucas semanas depois que sua esposa, Laura, suposta defensora de mulheres pelo mundo, dissera que “a luta contra o terrorismo é também uma luta pelos direitos e dignidade das mulheres.”

O fato de centenas de milhares de meninas e mulheres terem sido mortas e tornadas viúvas ou órfãs na infindável “Guerra ao Terror” não parece intimidar, de modo algum, essa lógica falaciosa. A verdade triste, mas previsível, é que os direitos e o bem-estar das mulheres afegãs, árabes e muçulmanas foram duramente deteriorados, por efeito das intervenções militares norte-americanas e dos EUA.

Aqui está o xis do problema. Como intelectuais, educadores e ativistas de direitos humanos, frequentemente nos vemos apanhados na armadilha de um paradigma restritivo. Conhecendo os reais motivos da mídia ocidental e da propaganda oficial, nos engajamos numa batalha de autodefesa, tentando desesperadamente preservar nossas religiões, nossos países e nossas sociedades, contra ataques de críticos mal-intencionados. No processo de fazer o que fazemos, contudo, frequentemente deixamos de falar em nome dos oprimidos e vulneráveis; de Israa e de milhões como ela.

Descuidamos da responsabilidade de nos levantar pelos setores marginalizados de nossa sociedade e porque temos medo de ser mal compreendidos ou de que nossas palavras sejam mal interpretadas e mal usadas pelos propagandistas da extrema direita em ascensão, dos EUA à França e da Índia ao Brasil.

Mas isso não faz justiça a Israa e a milhões de outras mulheres. Mulheres palestinas e árabes sofrem duas injustiças que não ferem os homens. São vítimas da guerra, da instabilidade política e da marginalização econômica, mas também são vítimas de sociedades patriarcais e leis antiquadas.

É de enfurecer e é imperdoável, por exemplo, que as mulheres palestinas na Cisjordânia e em Gaza, por exemplo, estejam expostas e sofram formas multifacetadas de violência, que emanam seja da ocupação israelense seja das próprias famílias e da sociedade em que vivem. A ocupação justifica a própria violência em nome da “segurança”; as famílias e a sociedade, em nome da “honra” e da tradição.

Mas onde está a honra no fato de que quase 30% de todas as mulheres casadas na Cisjordânia e 50% em Gaza “foram submetidas a alguma forma de violência dentro da própria casa?” Segundo a ONU-Mulheres, a maioria dessas mulheres opta pelo silêncio, para proteger as respectivas famílias e tentar evitar novos abusos.

Mulheres palestinas e árabes (e muitos homens) não estão iradas e indignadas com os assassinatos ‘de honra’ e as leis tolerantes que tornam possível não apenas que criminosos escapem da condenação pelos crimes mais brutais; também estão iradas e indignadas porque a prática simboliza fenômeno muito mais amplo, de que as mulheres são marginalizadas e vitimadas, de fato, em todos os aspectos da sociedade.

Segundo a Anistia Internacional, 21 mulheres e meninas palestinas foram vítimas desses assassinados ditos ‘de honra’, em 2018. São números que impõe atenção imediata para completa reforma das leis palestinas que permitem que criminosos safem-se completamente livres, depois de cumprir penas brevíssimas. Mas a luta não pode terminar nisso. As mulheres palestinas são mais educadas que os homens; mesmo assim, têm número muito menor de oportunidades. Apesar do papel crucialmente decisivo das mulheres na resistência contra a ocupação israelense e o apartheid, elas continuam marginalizadas na política e na tomada de decisões.

Os que assassinaram Israa e centenas de mulheres como ela em nome da “honra” devem saber que os gritos de suas irmãs e filhas agonizantes não são diferentes dos gritos de dor de Razan Al-Najjar depois que recebeu os tiros de atiradores israelenses, que a mataram durante a Grande Marcha do Retorno para Gaza; que a mesma dor que essas mulheres sofreram é a dor que hoje sofrem, todos os dias, todas as horas, Israa Ja’abis e suas irmãs nas prisões de Israel; e que o abuso de mulheres nas mãos das próprias famílias é o mesmo abuso que sofrem nos postos militares israelenses de fronteira e dos colonos israelenses judeus sempre impunes.

A justiça é indivisível, e é tempo de quebrarmos nosso silêncio e de respeitar essa máxima. Falar contra a violência, a discriminação e a marginalização das mulheres em nossas sociedades deve ser parte de qualquer luta genuína contra abusos de direitos humanos, não importa quem seja o abusador nem os motivos que o movam.

Que os gritos de Israa que pedem ajuda e mercê nos guiem na luta contra a injustiça em todas as suas formas e manifestações.

Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga

Ramzy Baroud , nascido num campo de refugiados em Gaza e vivendo em Seattle (EUA), é jornalista, autor e editor de The Palestine Chronicle. Ele é o autor de The Second Palestinian Intifada: A Chronicle of a People’s Struggle e My Father Was a Freedom Fighter: Gaza’s Untold Story (Pluto Press, London). Seu livro mais recente é The Last Earth: A Palestinian Story [A última terra: uma história palestina] (Pluto Press, London) e está concluindo o próximo livro, These Chains Will Be Broken: Palestinian Stories of Struggle and Defiance in Israeli Prisons’ [Esses grilhões serão quebrados: histórias palestinas de luta e desafio em prisões israelenses] (Clarity Press, Atlanta). Baroud é Ph.D. em Estudos Palestinos, da University of Exeter.

http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=27009


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