Os últimos ataques de Israel foram demasiado longe
por Andre Vltchek | The Unz Review
Resistir.info - 28 de agosto, 2019
https://www.resistir.info/moriente/libano_28ago19.html
Após os recentes ataques israelenses contra o Líbano, a
Síria e o Iraque, o Oriente Médio foi envolvido numa guerra
não declarada.
Quase todo a gente no Líbano parece concordar.
"Desta vez, Israel foi longe demais. Em apenas dois dias, bombardeou
três países",
disse-me um funcionário local da ONU com sede em Beirute.
No mesmo dia, meu barbeiro local dizia como via as coisas, com voz cheia de
sarcasmo e determinação:
"O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu enfrenta
eleições difíceis em casa, enquanto sua esposa está
a ser julgada por fraude. Um bocado de excitação durante o
noticiário da noite só pode ajudar suas probabilidades de
recuperar a atenção de seu eleitorado. Mas nós aqui
já tivemos o quanto baste; estamos prontos para combater pelos nossos
países. "
Mas "combater pelos seus países" pode demonstrar-se letal,
pois Netanyahu ameaçou atacar o Líbano como um todo se o
Hezbollah decidir retaliar.
Meu barbeiro não é apenas barbeiro. Ele é um engenheiro
sírio, exilado no Líbano. Toda a região está
dispersa, descarrilada e entrelaçada, após ataques da NATO e de
Israel, ocupações e campanhas de desestabilização.
Em 25 de Agosto, Hassan Nasrallah, o chefe do Hezbollah, falou sem rodeios
durante seu discurso televisionado no Líbano:
"O ataque suicida da madrugada é o primeiro ato de agressão
desde 14 de Agosto de 2006. A condenação do Estado libanês
do que aconteceu e o encaminhamento do assunto ao Conselho de Segurança
é bom, mas estes paços não impedem o andamento de
acções a serem empreendidas. Desde 2000, temos permitido drones
israelenses por muitas razões, mas ninguém se mexeu. Os drones
israelenses que agora entram no Líbano já não estão
mais a colectar informação, mas sim [a executar] assassinatos. A
partir de agora, enfrentaremos os drones israelenses quando entrarem nos
céus do Líbano e trabalharemos para deitá-los abaixo. Digo
aos israelenses que Netanyahu está a arriscar o seu sangue".
O presidente do Líbano, Michel Aoun, foi ainda mais longe, classificando
o ataque de drones contra o seu país como uma "
declaração de guerra".
Enquanto isso, um bloco poderoso no Parlamento do Iraque a
Coligação Fatah insiste em que os EUA são "
totalmente responsáveis
" pelos ataques israelenses, "os quais
consideramos uma declaração de guerra contra o Iraque e o seu povo
". A Coligação Fatah quer todas as tropas dos EUA fora do
Iraque, o mais rápido possível.
Não há dúvida de que Netanyahu, com suas recentes
incursões e bombardeios de drones de combate, lançou toda a
região numa grande e inesperada turbulência.
Há décadas que Israel ataca regularmente a Síria e
bombardeia a Palestina. Mas o Líbano é uma história
totalmente diferente: só seu espaço aéreo vinha sendo
violado habitualmente pelos jactos israelenses a voarem rumo a alvos
sírios. Bombardear o Iraque também é claramente uma
escalada da estratégia belicosa de Israel. Uma escalada bizarra,
considerando que o Iraque ainda é de facto um estado ocupado pelo aliado
mais próximo de Israel os Estados Unidos.
Tudo o que é xiíta menos o próprio Irão (por
enquanto) subitamente se tornou um 'alvo legítimo' para Israel.
Durante muitos anos, o islão xiita foi sinónimo de
resistência ideológica ao imperialismo ocidental no Médio
Oriente: o próprio Irão, várias facções no
Iraque, o Hezbollah, entre outras.
O Líbano está profundamente dividido
O Líbano é um dos países mais 'estratégicos' do
Médio Oriente e o mais dividido. Ele baseia-se num sistema
"confessional". Seu governo é sempre pelo menos
"instável", mas muitas vezes totalmente disfuncional. Em
comparação com a do seu homólogo israelense, a sua
força aérea consiste em aviões de brinquedo, como os
Cessnas convertidos.
Os mais recentes carros Maserati e Ferrari passam por algumas das mais
miseráveis favelas do Médio Oriente. Restaurantes e cafés
elegantes muitas vezes estão a poucos metros de mendigos. Existem
centenas de milhares de refugiados neste pequeno país, de toda a
região: palestinos, a viverem em campos perigosos e superlotados, com
muito pouca esperança; Iraquianos em fuga da guerra e da
ocupação da NATO; e vítimas da guerra síria.
O governo libanês e as elites estão
a lucrar
com a crise dos refugiados, supostamente embolsando dinheiro da "ajuda
externa". Quase nada resta para os serviços sociais, ou mesmo para
a defesa, muito menos para os pobres e a classe média baixa.
O Hezbollah, ao contrário, está a providenciar serviços
sociais, incluindo alimentos, assistência médica e
educação a todas as pessoas residentes no território
libanês, independentemente de raça ou religião. Além
disso, está a combater invasões israelenses, tomando nas suas
fileiras todos os cidadãos libaneses que quiserem ingressar.
Também combate terroristas na Síria. Está intimamente
ligado ao Irão. Tudo isso, é claro, enfurece os Estados Unidos,
Israel e Arábia Saudita. O Hezbollah está firmemente na
"lista terrorista" do Ocidente e dos seus associados.
Israel está a usar a luta contra o Hezbollah e contra
posições de aliados iranianos para justificar o bombardeamento de
vários países da região. Continua "a descobrir novas
tramas" e executa "ataques antecipativos" com o pleno apoio do
governo estado-unidense.
Durante a escalada mais recente, consta que Israel
teria
efectuado três ataques com drones no Vale do Beqaa, no Líbano, a
uma base pertencente ao grupo laico, marxista-leninista e
pró-sírio, a Frente Popular para a Libertação da
Palestina, qual é, como era de esperar, aliado do Hezbollah.
Linha Azul
Há poucos dias consegui dirigir-me à fronteira entre o
Líbano e Israel e depois fui para o leste, seguindo a chamada Linha
Azul, a qual é patrulhada pela Força Interina das
Nações Unidas no Líbano (UNIFIL), em dezenas de
quilómetros.
Os israelenses já ergueram um muro em quase todo o caminho desde o Mar
Mediterrâneo até as Alturas de Golan a fronteira libanesa.
Mais de um ano atrás, o governo do Líbano afirmou que
"construir o muro equivaleria a um acto de guerra". Israel não
se importou. Construiu uma enorme estrutura de concreto bem em frente ao
Exército libanês, ao Hezbollah e à UNIFIL.
"Em muitas ocasiões, os israelenses realmente cruzaram a fronteira,
pelo menos alguns metros ou centímetros, enquanto erigiam o muro",
contaram-me vários agricultores locais na aldeia de Markaba. E nada
aconteceu.
Na cidade de Kfarchouba, conhecida como fortaleza do Hezbollah, ao lado de uma
parede sinistra decorada com desenhos infantis, pessoas disseram-me que
estão
"prontas para um conflito; prontas para morrer... se
necessário".
Kfarshouba é onde os israelenses "descobriram túneis do
Hezbollah", os quais foram uma justificativa oficial para a
construção das muralhas.
"Asneira",
disseram-me os locais.
"Os túneis estavam lá há décadas, e os
israelenses sempre souberam deles. Eles estiveram totalmente barricados durante
muitos anos
e não representavam perigo para Israel".
Bem em frente à horrenda nova muralha israelense, três bandeiras
balouçam ao vento as da Palestina, do Líbano e do
Hezbollah. Ao lado delas, três veículos blindados da UNIFIL
estão estacionados. Soldados indonésios descansam, tirando
selfies.
"Vão actuar se Israel cruzar a linha?",
pergunto-lhes.
Eles sorriem para mim. Nenhuma resposta coerente é dada.
As Alturas de Golan, ocupadas por Israel, ficam a apenas 10 km deste ponto. E
várias aldeias e cidades israelenses estão logo atrás da
muralha.
Com o poder de fogo que o Hezbollah tem, elas podiam ser arrasadas em apenas um
minuto.
Embora o Hezbollah aparentemente esteja em "alerta máximo",
até agora, a conversa sobre "retaliação"
é apenas conversa.
"Inércia é como morte lenta no Líbano"
A fim de bombardear alvos dentro do Iraque, jactos israelenses tiveram de
sobrevoar ou o território de seu antigo aliado, a Turquia, ou a
Arábia Saudita. Conforme
informado
pela Al-Jazeera:
"Israel e os sauditas não têm relações
diplomáticas formais, mas acredita-se terem estabelecido uma
aliança nos bastidores na base da sua hostilidade compartilhada para com
o Irão".
Israel estará a tentar provocar vários países árabes
do Médio Oriente para mais uma guerra?
Ou será apenas mais uma "humilhação"?
Será que Beirute, Damasco e Bagdad vão apenas contar pancadas e
permanecer ociosos? Irão citar repetidamente as resoluções
da ONU, enquanto Israel bombardeia continuamente suas cidades e campos, com
total impunidade e com a aprovação do Ocidente?
É uma decisão muito difícil a tomar. Se o Líbano ou
o Hezbollah decidirem retaliar ou simplesmente proteger seu país,
milhares morrerão. Talvez de imediato.
Se não retaliarem, novas muralhas serão erguidas e as campanhas
de bombardeio "discretas" dos israelenses continuarão, muito
provavelmente, durante os muitos anos vindouros. Em consequência, toda a
região continuará a estar paralisada.
Meu colega local foi mais expressivo:
"Esta inércia é como uma morte lenta para todo o
Líbano".
28/Agosto/2019
Andre Vltchek é
Filósofo, romancista, cineasta e jornalista investigativo,
andrevltchek.weebly.com