O falecido Anthony Bourdain escreveu (link is external) em 2001 que "depois de se ter estado no Camboja, nunca mais se deixa de querer espancar Henry Kissinger até à morte com as próprias mãos".
Por mais que muitas pessoas tenham querido fazer isso ao longo das décadas, Kissinger continua connosco. Hoje é o seu centésimo aniversário. E continua a ser tratado como um respeitado estadista veterano. Isso deve dizer-vos tudo o que precisam de saber sobre o império global da América.
Ao menos gosta de desporto
As homenagens ao Dr. Kissinger têm-se sucedido ao longo da semana. Na CNN, o correspondente internacional David Andelman entusiasma-se (link is external) com o facto de que "aos 100 anos, Henry Kissinger continua a ensinar-nos o valor do 'Weltanschaüng'". (Weltanschaüng traduz-se aproximadamente por "visão do mundo", e aqui significa algo como "uma compreensão abrangente de como o mundo funciona"). No site do Comité Olímpico Internacional, o presidente do COI, Thomas Bach, chama (link is external) a Kissinger um "grande estadista" e "génio político" que é também um "grande entusiasta do desporto" e que há muito está envolvido nos Jogos Olímpicos.
Ninguém se preocupou em mencionar os seus vários crimes.
Enquanto conselheiro de segurança nacional de Richard Nixon - e depois Secretário de Estado, função que assumiu sem renunciar ao seu cargo original - Kissinger supervisionou pessoalmente uma campanha de bombardeamento (link is external) que matou 150.000 civis no Camboja. E, entre muitas outras atrocidades de que foi cúmplice, ajudou a derrubar Salvador Allende (link is external), o presidente socialista democraticamente eleito do Chile. Kissinger disse (link is external) publicamente que não via "porque é que temos de ficar a ver um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu povo".
As provas destes crimes nunca foram postas em causa. Está tudo registado publicamente. Então porque é que o "Dr. K" nunca viu o interior de uma cela de prisão?
A verdade mais feia sobre Kissinger é que ele não é um monstro único. É um representante invulgarmente franco de um sistema monstruoso de hegemonia global dos EUA.
Kissinger e Nixon
Nixon não viveu para ver o seu próprio centésimo aniversário. Morreu com 81 anos em 1994. Mas uma celebração póstuma do centenário foi realizada em 2013 para o ex-presidente caído em desgraça. Kissinger discursou nesse evento, terminando as suas observações (link is external) propondo um brinde a Nixon como "patriota, presidente e, acima de tudo, pacificador".
É verdade que Nixon estava disposto a procurar acordos pragmáticos com as superpotências rivais dos Estados Unidos, a China e a União Soviética. Mas quando vi o vídeo do brinde "pacificador" de Kissinger, só consegui pensar num trecho infame da conversa de 1970 (link is external) entre Kissinger e o seu adjunto Alexander Haig, em que Kissinger transmite as instruções de Nixon para o bombardeamento do Camboja. Kissinger sabia que alguns membros da administração poderiam ter dúvidas sobre a extensão da guerra a um país neutro, mas deixou claro que o comandante supremo não queria ouvir isso:
K: Segundo, ele quer uma campanha de bombardeamento maciço no Camboja. Não quer ouvir nada. É uma ordem, tem de ser feita. Qualquer coisa que voe sobre qualquer coisa que se mova. Percebeu?
H: (Não se conseguia ouvir, mas parecia que Haig se estava a rir).
Alguns anos mais tarde, Nixon e Kissinger iriam polir as suas credenciais de "pacificadores" ao atirarem finalmente a toalha ao chão depois de vários anos a aumentar o derramamento de sangue no Vietname, Laos e Camboja. Talvez fosse este o feito que Kissinger estava a recordar com carinho quando brindou à memória do seu antigo chefe.
Se assim foi, Kissinger estava convenientemente a esquecer-se de que ele e Nixon tinham estado a rejeitar essencialmente o mesmo acordo durante todo o tempo em que estiveram a escalar a guerra. De facto, mesmo antes de Nixon chegar à Casa Branca, ele tinha trabalhado para sabotar as conversações de paz de Paris do seu antecessor Lyndon Johnson - encorajando a delegação sul-vietnamita a bloquear na esperança de conseguir um acordo melhor quando Nixon assumisse o cargo.
Isso ninguém se dá ao trabalho de negar. Há alguma controvérsia sobre a extensão do papel do Dr. Kissinger. No seu tributo à CNN, David Andelman defende Kissinger argumentando que, embora "alguns tenham sugerido que foi Kissinger que procurou abrandar o processo para a paz durante a campanha presidencial de Nixon", as provas das cassetes da Casa Branca apontam para H. R. Haldeman como o principal cúmplice de Nixon na "manipulação" das conversações. Mas até Adelman admite que o Dr. Kissinger "pode muito bem ter informado a equipa de campanha de Nixon sobre as ideias de Johnson".
Um pequeno detalhe, talvez, para contrapor a um importante estadista que usa palavras como Weltanschaüng.
Uma história de continuidade
Quando o Congresso apresentou os artigos de impugnação contra Nixon por corrupção e obstrução à justiça, o representante democrata do Michigan, John Conyers, propôs a inclusão de um artigo sobre o bombardeamento ilegal do Camboja - que inicialmente tinha sido mantido em segredo para o público norte-americano. A proposta foi derrotada por 26 votos a favor e 12 contra. Como Conyers referiu num artigo (link is external) publicado mais tarde nesse ano, isto pode ter acontecido porque levantar a questão dos crimes de guerra no Sudeste Asiático teria posto em causa "administrações anteriores" e a incapacidade do próprio Congresso de limitar o poder presidencial de fazer guerra.
Quando Nixon deixou o cargo, Kissinger ficou, continuando a desempenhar o seu papel duplo altamente invulgar de conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado do sucessor de Nixon, Gerald Ford. E cada um dos presidentes entre Ford e Joe Biden - tanto democratas como republicanos - fizeram em algum momento um convite ao Dr. K para ir à Casa Branca discutir assuntos de guerra e diplomacia.
Algumas dessas visitas podem até ter proporcionado a Kissinger a oportunidade de se encontrar com velhos amigos. Aquele patife que se ria baixinho do outro lado da linha quando Kissinger transmitia as instruções de Nixon para o assassínio indiscriminado em massa de civis cambojanos, Alexander Haig? Foi comandante do Comando Europeu dos EUA e comandante supremo aliado da NATO durante a maior parte da presidência de Jimmy Carter. Ronald Reagan nomeou-o secretário de Estado.
Kissinger não é o único Kissinger
Curiosamente, Kissinger não esteve na Casa Branca de Biden, ou pelo menos ainda não esteve. Gostaria de acreditar que o atual presidente está perturbado com a longa história de envolvimento de Kissinger em crimes contra a humanidade passíveis de serem julgados. Mas o historial de Biden aponta no sentido contrário.
Incomoda Biden o facto de Kissinger ter matado muitos civis no Camboja? O Senador Biden não demonstrou qualquer escrúpulo relativamente ao bombardeamento "choque e pavor" do Iraque quando apoiou essa guerra em 2003.
Incomoda Biden o facto de Kissinger ter planeado golpes de Estado contra esquerdistas eleitos na América Latina? O vice-presidente Biden não parece ter emitido um pio de protesto quando o presidente Barack Obama e a secretária de Estado Hilary Clinton apoiaram o golpe contra o presidente hondurenho Manuel Zelaya.
E já que falamos de Hilary Clinton, vale a pena recordar que ela apregoou a sua relação com Henry Kissinger - a quem chamou amigo e conselheiro de confiança - quando se candidatou à presidência em 2016. Quando o seu adversário nas primárias, Bernie Sanders, respondeu (link is external) falando de Salvador Allende, a resposta de Clinton e do moderador poderia muito bem ter sido: "Salvador quem?".
Kissinger nunca se dignou a esconder a sua cumplicidade em violações claras do direito norte-americano e internacional que mataram um grande número de pessoas inocentes. O facto de ter chegado aos cem anos como homem livre não é um lapso; é um sintoma de uma patologia muito mais profunda.
A vontade de desvirtuar as regras globais - ordenar um assassínio aqui, massacrar uns aldeões ali, depor um ou dois esquerdistas eleitos em países que, vá lá, também não interessam - era parte integrante da forma como os Estados Unidos geriam as suas esferas de influência em todo o mundo muito antes de Henry Kissinger entrar em cena.
Não é que Dwight Eisenhower tenha precisado de conselhos de Henry Kissinger, que na altura estava a terminar a pós-graduação, quando decidiu proteger os interesses da United Fruit Company derrubando (link is external) o governo da Guatemala em 1954. E a Secretária Clinton pode ou não ter pegado num telefone para consultar um Dr. K muito idoso sobre como lidar com a crise nas Honduras.
Ben Burgis é colunista da Jacobin, professor adjunto de filosofia na Universidade Rutgers e apresentador do programa do YouTube e do podcast Give Them An Argument. É autor de vários livros, sendo o mais recente Christopher Hitchens: What He Got Right, How He Went Wrong, and Why He Still Matters. Artigo publicado na Jacobin (link is external) a 27 de maio de 2023. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.
https://www.esquerda.net/artigo/henry-kissinger-e-um-criminoso-de-guerra-repugnante/86527
