O homem está de volta. E o chão treme.
Apenas dois dias depois de deixar uma prisão federal em Curitiba, sul do Brasil, graças a decisão apertada (6 votos a favor, 5 contra) na Suprema Corte, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva fez discurso inflamado, de 45 minutos, em frente à sede do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de São Bernardo, arredores de São Paulo, e, mobilizando seu capital político impressionante, convocou todos os brasileiros a se envolver em nada menos que uma revolução social.
Quando meus colegas Mauro Lopes, Paulo Leite e eu entrevistamos Lula na prisão federal, era seu 502º dia numa cela. Em agosto, era impossível prever que seria libertado 72 dias depois, no início de novembro.
O primeiro discurso à nação depois da saga da prisão – que está longe de concluída – não poderia ser solene; de fato, prometeu outra fala, detalhada, para futuro próximo. O que fez ali, no estilo coloquial que é sua marca registrada, foi partir imediatamente para a ofensiva, mirando logo uma longa lista de inimigos sempre possíveis e ativos: todos os que lançaram o Brasil numa “agenda antipovo.” Em termos de discurso político apaixonado, totalmente improvisado, a fala de Lula já é material antológico.
Lula detalhou as atuais “terríveis condições” para os trabalhadores brasileiros. Reduziu a frangalhos o programa econômico – basicamente, liquidação monstro – assinado pelo ministro das Finanças Paulo Guedes, Chicago boy e pinochetista, que aplica no Brasil o mesmo programa neoliberal hardcore falido que hoje é denunciado e apedrejado todos os dias nas ruas do Chile.
Detalhou como a direita brasileira aposta abertamente no neofascismo, que é o formato que o neoliberalismo assumiu recentemente no Brasil. Falou contra a mídia mainstream, sob a forma do até aqui todo-poderoso e ultra reacionário império Globo. Num estalo de gênio semiótico, Lula apontou para o helicóptero da Globo que sobrevoava as massas reunidas para ouvi-lo falar: organização tão covarde que não tem coragem de enfrentá-lo no chão.
E, significativamente, atacou logo diretamente o coração do problema Bolsonaro: as milícias. O povo brasileiro bem informado sabe que o clã Bolsonaro com origem no Veneto, atua como uma espécie de cópia barata, nua, crua, escatológica, dos Sopranos, comandando um sistema erguido sobre milícias e apoiado por militares brasileiros. Lula descreveu o presidente de uma das principais nações do Sul Global como nada menos que um líder de milícias. É diagnóstico difícil de desgrudar da pele do atual presidente, e que correrá mundo.
Longe vão os anos de “Lula paz e amor”, um dos títulos de que o ex-presidente mais gostava. Nada mais de conciliação. Bolsonaro agora tem pela frente oposição sólida, real, feroz, e não poderá continuar a fugir do debate público.
A jornada na prisão, para Lula, foi extraordinária experiência de libertação – que converteu um estadista duramente agredido em estadista guerreiro sem medo, mistura de Tao e Lobo da Estepe (como esboçado no livro de Herman Hesse). É hoje mais livre do que jamais antes – e disse isso, explicitamente. A questão é como conseguirá congregar o trabalho de organização, o método – e encontrar tempo suficiente para mudar as terríveis condições e que se debate a oposição democrática no Brasil. Todo o Sul Global está atento a Lula.
Pelo menos, afinal, os dados estão jogados – e é clara a oposição: social-democracia contra neofascismo. Programas socialmente inclusivos, sociedade civil envolvida em criar e operar políticas públicas, a luta por igualdade, versus autocracia, instituições do Estado ligadas a milícias e milicianos, racismo e ódio contra todas as minorias. Diga-se a favor de Bernie Sanders e Jeremy Corbyn, que ambos ofereceram apoio incondicional a Lula. Diferente deles, Steve Bannon perde noites de sono. Para ele, Lula volta como “garoto dos cartazes da esquerda globalista” em todo o mundo.
Tudo isso vai bem além de Populismo de Esquerda – como Slavoj Zizek e Chantal Mouffe, dentre outros, têm tentado demonstrar. Lula, assumindo-se que possa continuar em liberdade, está agora pronto para ser o catalisador supremo de uma Nova Esquerda Global “pró-povo”, integrada e progressista.
O Evangelistão de Cocaína
Agora, as faces realmente macabras da realidade.
Ouvi o discurso de Lula tarde da noite, no fundo de uma tempestade de neve que sacudia Nur-Sultan, capital do Cazaquistão, no coração das estepes, terra cruzada e trespassada incontáveis vezes pelos maiores impérios nômades de toda a história. Tentação, ali, foi pintar Lula como um leopardo das neves que nada teme e percorre as terras urbanas desertificadas de estepes devastadas.
Porque o leopardo das neves é espécie muito crucialmente ameaçada de extinção.
Depois do discurso, tive conversas sérias com dois de meus interlocutores top: o analista Romulus Maya, que tem base em Berna, Suíça; e o antropólogo Piero Leirner, craque, especialista em militares brasileiros. Pintaram quadro realista sombrio. Em síntese, é isso.
Quando visitei Brasília em agosto passada, várias fontes bem informadas confirmaram que a maioria dos ministros da Suprema Corte no Brasil são comprados. Afinal de contas, são agentes que legitimaram de facto e oficialmente todos os piores absurdos que se cometem no Brasil desde 2014. Esses absurdos são parte da guerra híbrida em curso, hiper complexa, em câmera lenta, acobertada por um simulacro de investigação de corrupção, que levou ao desmantelamento de indústrias nacionais gigantes, como a Petrobrás; ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff sem crime, sob acusações sem provas; e à prisão de Lula – serviço do juiz, júri e carrasco Sergio Moro, hoje ministro da Justiça de Bolsonaro, mesmo depois de já ter sido completamente desmascarado pelas revelações de The Intercept.
Os militares brasileiros pairam sobre a Suprema Corte (e têm assento também lá dentro!). Lembremos que a libertação de Lula resultou de votação apertada, com vitória de seis votos contra cinco juízes que não queriam Lula livre. Legalmente, já era impossível mantê-lo preso, sem desmoralizar completamente a Constituição do Brasil. A Suprema Corte apenas mandou fazer o que a Constituição sempre ordenou, mas não estava sendo feito. E cinco juízes votaram a favor de que o país continuasse a desrespeitar a Constituição…
Mas não se vê qualquer mudança estrutural no horizonte. O projeto de liquidar o Brasil prossegue – combinado a uma mal disfarçada ditadura militar. O Brasil permanece como colônia rebaixada dos EUA. Implica dizer que Lula só está fora da prisão, por licença e autorização, essencialmente, desse sistema autoritário.
Os militares obedecem à abissal incompetência de Bolsonaro, porque não lhe permitem sequer ir à privada sem autorização especial do general Heleno, presidente do Gabinete de Segurança Institucional, versão brasileira do Conselho de Segurança Nacional. No sábado, um Bolsonaro assustado pediu ajuda aos altos generais, para que o salvassem, depois de Lula ser posto em liberdade. Num tuíto, Bolsonaro referiu-se a Lula como “um canalha”, “momentaneamente” em liberdade.
Esse “momentaneamente” deixa entrever toda a jogada. A difícil situação ‘jurídica’ de Lula está longe de decidida. Num cenário de curto prazo, estreito mas perfeitamente plausível, Lula pode, sim, ter de voltar à prisão – mas dessa vez em isolamento, em prisão federal de segurança máxima ou, até, em algum quartel militar; afinal, como presidente, foi comandante-em-chefe das Forças Armadas.
Toda a defesa de Lula trabalha agora para que Moro seja declarado suspeito [de parcialidade] no julgamento que condenou o ex-presidente. Qualquer pessoa com cérebro que tenha lido as revelações de The Intercept rapidamente identifica e encontra como provar a corrupção de Moro. Se acontecer assim – e é um ‘se’ tamanho gigante –, as condenações que já pesam sobre Lula serão declaradas viciadas e anuladas. E além dos processos em que já há sentença, há outros processos; no total, são oito. Território absolutamente escancarado para lawfare.
O trunfo que os militares sempre podem jogar é a acusação de “terrorismo” – associada a Lula e ao Partido dos Trabalhadores. Se Lula, se se confirmar o pior cenário, for mandado de volta a uma prisão federal, pode acontecer de ficar em Brasília, cidade cujas prisões federais, não por acaso, abrigam todos os líderes do “Primeiro Comando da Capital”, PCC – a maior organização criminosa do país.
Maya e Leirner já demonstraram como o PCC está aliado aos militares e ao Estado Profundo dos EUA – e Moro é o elo de conexão entre todos –, para estabelecer não alguma Pax Brasilica,mas o que descreveram como um “Evangelistão da Cocaína” complementado com ataques de terrorismo sob falsa bandeira que seriam atribuídos a Lula, como ‘cérebro’ ou organizador.
Leirner estudou exaustivamente os modos pelos quais os generais, já por mais de uma década, no website que mantêm na internet, tentam incansavelmente associar o PCC e o Partido dos Trabalhadores. E a ‘associação’ inclui também as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o Hezbollah e os bolivianos. Sim, sim! Tudo isso saído diretamente das páginas do manual da “Voz do Dono”.
Lula, Putin e Xi
Com os militares apostando numa estratégia de caos, aumentado pela imensa base social de Lula em todo o Brasil, que absolutamente não admite que o ex-presidente volte à prisão, e pela possibilidade real de que a bolha financeira finalmente estoure, o que empobrecerá ainda mais as classes médias, aí estaria o cenário ideal para o mais tóxico dos coquetéis: “comoção social” aliada a “terrorismo” associado com o “crime organizado”.
É tudo de que precisariam os militares golpistas para lançar operação extensiva para restaurar “a ordem” e finalmente forçar o Congresso a aprovar uma versão à brasileira do Patriot Act (quatro projetos de lei e um decreto que já estão tramitando separadamente no Congresso [a saber: PL2418-2019, PL443-2019, PL3389-2019, PL1595-2019 e Decreto 10.046-2019. Todos esses documentos são acessíveis pela internet (NTs)].
Não é teoria da conspiração. É simples amostra de o quanto o Brasil vive momento de alto risco para incêndios, e a mídia ‘ocidental’ mainstream não fez nem fará esforço algum para explicar essa trama suja, enroladíssima, para públicos globais.
Leirner vai direto ao coração da matéria, quando diz que o atual sistema não tem motivo algum para recuar, porque o lado deles está vencendo. Não os assusta a possibilidade de o Brasil virar um Chile. E ainda que isso acabe por acontecer, eles já têm um culpado à espera de algum crime: Lula. A mídia-empresa brasileira dominante já está, até, lançando balões de ensaio – Lula já foi declarado culpado pelo salto na cotação do dólar e pelo aumento da inflação.
Lula e a esquerda brasileira bem fariam se investissem em ofensiva de pleno espectro.
Essa semana acontece no Brasil a 9ª reunião de cúpula dos BRICS. Contragolpe máster seria organizar encontro off-the-record, discrição extrema, segurança total, no qual se reúnam Lula, Putin e Xi Jinping, talvez em alguma embaixada em Brasília. Putin e Xi são aliados reais de Lula no palco global. Estão literalmente à espera de Lula de volta ao palco principal, como diplomatas dizem e confirmam em conversas comigo, muitas e muitas vezes.
Se Lula seguir roteiro limitado de apenas reorganizar a esquerda no Brasil, na América Latina ou mesmo no Sul Global, o sistema militar atualmente ativado o engolirá, mais uma vez, mais várias vezes. Em todos os lugares a esquerda já foi infiltrada. Agora é guerra total. Assumindo-se que Lula permaneça livre, dificilmente será autorizado a concorrer à presidência em 2022. Mas não há problema. Lula terá de ser extraforte – e será. Que ninguém se meta a besta com o Lobo da Estepe.
Traduzido por Coletivo de tradutores Vila Mandinga
Pepe Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres, Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos 1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central, escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central, EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como “The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e colaborador das redes Russia Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Red Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge e Obama does Globalistan..
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