Motim europeu na ordem iliberal
O motim surgiu porque muitos no Ocidente vêem muito claramente que a estrutura dominante ocidental é um “sistema de controle” mecânico e iliberal.
por Alastair Crooke (pt-BR) | Strategic Culture Foundation
sakerlatam.blog - 17 de junho, 2024
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Venho escrevendo há algum tempo que a Europa (e os EUA) estão num período alternativo de revolução e guerra civil. A História alerta-nos que tais conflitos tendem a ser prolongados, com episódios culminantes que são revolucionários (à medida que o paradigma prevalecente se rompe pela primeira vez); mas que, na realidade, são apenas modos alternativos do mesmo – uma “alternância” entre picos revolucionários e o lento “trabalho árduo” de uma intensa guerra cultural.
Estamos, acredito, numa época assim.
Também sugeri que uma contrarrevolução nascente estava lentamente se formando – uma contrarrevolução desafiadoramente relutante em renunciar aos valores morais tradicionalistas, nem preparada para se submeter a uma revolução opressiva iliberal de ordem internacional posando como liberal.
O que eu não esperava era que a “primeira ficha a cair” ocorresse na Europa – que seria a França a primeira a quebrar o molde iliberal. (Eu pensei que iria estourar primeiro nos EUA.)
O resultado das eleições europeias para o Parlamento Europeu pode ser visto como o “primeiro gole” que sinaliza uma mudança substantiva no clima. Haverá eleições antecipadas na Grã-Bretanha e na França, e a Alemanha (e também grande parte da Europa) está num estado de desordem política.
Não tenha ilusões! A fria realidade é que as “Estruturas de Poder” ocidentais detêm a riqueza, as principais instituições da sociedade e as alavancas de aplicação. Para ser claro: elas detêm as “alturas de comando”. Como irão gerir um Ocidente que se aproxima do colapso moral, político e possivelmente financeiro? Provavelmente dobrando a aposta, sem compromisso.
E essa previsível “duplicação” não se limitará necessariamente às lutas na arena do “Coliseu”. Irá certamente interferir em políticas geopolíticas de alto risco.
Sem dúvida, as “estruturas” dos EUA terão ficado profundamente desconcertadas com o presságio eleitoral europeu. O que implica o motim anti-sistema europeu para as estruturas dirigentes em Washington, especialmente numa altura em que todo o mundo vê Joe Biden visivelmente oscilante?
Como é que nos vão distrair desta primeira fenda no seu Edifício Estrutural internacional?
Já existe uma escalada militar liderada pelos EUA – aparentemente ligada à Ucrânia – mas cujo objetivo é claramente provocar a retaliação da Rússia. Ao aumentar progressivamente as violações da OTAN das “linhas vermelhas” estratégicas da Rússia, parece que os falcões dos EUA procuram obter a vantagem crescente sobre Moscou, relegando a Moscou o dilema de até que ponto retaliar. As elites ocidentais não acreditam totalmente nos avisos de Moscou.
Esta manobra de provocação pode concebivelmente oferecer uma imagem elaborada da “vitória” dos EUA (“olhando para Putin”) ou, alternativamente, fornecer um pretexto para adiar as eleições presidenciais dos EUA (à medida que as tensões globais aumentam) – dando assim tempo ao estado permanente para “enfileirar os seus patos” para gerir uma sucessão precoce de Biden.
Este cálculo, no entanto, depende da rapidez com que a Ucrânia implode, seja militarmente, seja politicamente.
Uma implosão da Ucrânia mais cedo do que o esperado poderá tornar-se o palco para um pivô dos EUA na “frente” de Taiwan – uma contingência que já está sendo preparada.
Por que a Europa está em motim?
O motim surgiu porque muitos no Ocidente veem agora com muita clareza que a estrutura dominante ocidental não é um projeto liberal per se, mas sim um “sistema de controle” mecânico declaradamente iliberal (tecnocracia gerencial) – que fraudulentamente se apresenta como liberalismo.
É evidente que muitos na Europa estão alienados do sistema. As causas podem ser múltiplas – Ucrânia, imigração ou queda dos padrões de vida – mas todos os europeus estão familiarizados com a narrativa de que a História se curvou para o longo arco do liberalismo (no período pós-Guerra Fria).
No entanto, isso se revelou ilusório. A realidade tem sido o controle, a vigilância, a censura, a tecnocracia, os confinamentos e a emergência climática. Em resumo, iliberalismo, até mesmo quase totalitarismo. (von der Leyen levou as coisas mais longe recentemente, discutindo que “Se você pensa na manipulação de informações como um vírus, em vez de tratar uma infecção depois que ela se instala… é muito melhor se vacinar para que o corpo fique inoculado”).
Quando então o liberalismo tradicional (na definição mais vaga) se tornou iliberal?
A “reviravolta” ocorreu na década de 1970.
Em 1970, Zbig Brzezinski (que se tornaria Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Carter) publicou um livro intitulado: Entre duas idades: o papel da América na era tecnetrônica. Nele, Brzezinski argumentou:
“A era tecnetrônica envolve o aparecimento gradual de uma sociedade mais controlada. Tal sociedade… dominada por uma elite, desenfreada pelos valores tradicionais… [e praticando] vigilância contínua sobre cada cidadão… [juntamente com] manipulação do comportamento e funcionamento intelectual de todas as pessoas… [se tornaria a nova norma].”
Em outro lugar ele argumentou que “o Estado-nação, como unidade fundamental da vida organizada do homem, deixou de ser a principal força criativa: os bancos internacionais e as empresas multinacionais estão agindo e planejando em termos que estão muito à frente dos conceitos políticos do Estado-nação”. (Ou seja, o cosmopolitismo empresarial como o futuro.)
David Rockefeller e os poderosos que o rodeiam – juntamente com o seu grupo Bilderberg – aproveitaram a visão de Brzezinski para representar a terceira etapa para garantir que o s[eculo 21 seria de fato o “Século Americano”. As outras duas pernas eram o controle dos recursos petrolíferos e a hegemonia do dólar.
Em seguida, seguiu-se um relatório importante, Limites ao crescimento, (1971, Clube de Roma (novamente uma criação de Rockefeller), que forneceu a base “científica” profundamente falha a Brzezinski: Previu o fim da civilização, devido ao crescimento populacional, combinado com o esgotamento dos recursos (incluindo, e especialmente, o esgotamento dos recursos de energia).
Esta terrível previsão foi imputada para dizer que apenas especialistas económicos e em tecnologia, líderes de empresas multinacionais e bancos tinham a visão e a compreensão tecnológica para gerir a sociedade – sujeita à complexidade de Limites ao crescimento.
Limites ao crescimento foi um erro. Tinha falhas, mas isso não importava: o conselheiro do Presidente Clinton na Conferência da ONU no Rio, Tim Wirth, admitiu o erro, mas acrescentou alegremente: “Temos que lidar com a questão do aquecimento global. Mesmo que a teoria esteja errada, estaremos fazendo a ‘coisa certa’ em termos de política econômica”.
A proposta estava errada – mas a política estava certa! A política econômica foi derrubada, com base em análises erradas.
O “padrinho” do pivô adicional para o totalitarismo (além de David Rockefeller), foi o seu protegido (e mais tarde, o “conselheiro indispensável” de Klaus Schwab), Maurice Strong. William Engdahl tem escrito como “círculos diretamente ligados a David Rockefeller e Strong na década de 1970 deram origem a uma gama deslumbrante de organizações de elite (convite privado) e think tanks”.
“Estes incluíam o Clube neo-Malthusiano de Roma; o estudo de autoria do MIT: ‘Limits to Growth’, e a Comissão Trilateral”.
A Comissão Trilateral, no entanto, era o coração secreto da matriz. “Quando Carter assumiu o cargo em janeiro de 1976, o seu gabinete era composto quase inteiramente pelas fileiras da Comissão Trilateral de Rockefeller – num grau tão surpreendente que alguns membros de Washington o chamaram de ‘Presidência Rockefeller’”, escreve Engdahl.
Craig Karpel, em 1977, também escreveu:
“A presidência dos EUA e os principais departamentos do governo federal foram assumidos por uma organização privada dedicada à subordinação dos interesses internos dos Estados Unidos aos interesses internacionais dos bancos e corporações multinacionais. Seria injusto dizer que a Comissão Trilateral domina a Administração Carter. A Comissão Trilateral é a Administração Carter”.
“Todos os principais cargos de política externa e econômica do governo dos EUA, desde Carter, têm sido ocupados por um grupo trilateral.”, escreve Engdahl. E assim continua – uma matriz de membros sobrepostos que é pouco visível para o público e que, de forma muito vaga, pode ser considerada como tendo constituído o “estado permanente”.
Existiu na Europa? Sim, filiais em toda a Europa.
Aqui reside a raiz do “motim” europeu do fim de semana passado: muitos europeus recusam o conceito de um universo controlado. Muitos não estão claramente dispostos a renunciar aos seus modos de vida tradicionais ou às suas lealdades nacionais.
A barganha Faustiana de Rockefeller da década de 1970 fez com que um segmento estreito do quadro dirigente americano se separasse da nação americana para ocupar uma realidade separada, na qual desmontaram uma economia orgânica em benefício da oligarquia, com a “compensação” vindo apenas da sua adoção de políticas de identidade e a rotação “justa” de alguma diversidade em suítes executivas corporativas.
Visto desta forma, o acordo Rockefeller pode ser visto como um paralelo ao “acordo” sul-africano que pôs fim ao Apartheid: as elites anglo-americanas mantiveram os recursos econômicos e o poder, enquanto o ANC, do outro lado da equação, obteve uma fachada Potemkin da tomada do poder político.
Para os europeus, este “arranjo” faustiano degrada os Humanos à unidades de identidade que ocupam os espaços entre os mercados, em vez de os mercados serem o acessório de uma economia orgânica centrada no ser humano, como Karl Polanyi escreveu há cerca de 80 anos em A Grande Transformação.
Ele atribuiu a turbulência da sua época a uma causa: a crença de que a sociedade pode, e deve, ser organizada através de mercados auto-regulados. Para ele, isto representou nada menos do que uma ruptura ontológica com grande parte da história humana. Antes do século XIX, insistiu ele, a economia humana sempre esteve “incorporada” na sociedade: estava subordinada à política, aos costumes, à religião e às relações sociais locais.
O inverso (o paradigma tecnocrático iliberal e de identidade de Rockefeller) leva à atenuação dos laços sociais; a atomização da comunidade; à falta de conteúdo metafísico e, portanto, à ausência de propósito e significado existencial.
O iliberalismo é insatisfatório. Diz: você não conta. Você não pertence. É evidente que muitos europeus agora entendem isso.
O que de alguma forma nos leva de volta à questão de como as camadas ocidentais irão reagir ao motim nascente contra a Ordem Internacional que tem acelerado em todo o mundo – e que agora emergiu na Europa, embora com diversas colorações e alguma bagagem ideológica.
Não é provável – por agora – que os estratos dominantes cheguem a compromissos. Aqueles que dominam tendem a temer existencialmente: ou continuam dominando ou perdem tudo. Eles veem apenas um jogo de soma zero. O status de cada lado fica congelado. Cada vez mais as pessoas se encontram apenas como “adversários”. Os concidadãos tornam-se ameaças perigosas, às quais deve-se combater.
Portanto, consideremos o conflito israelo-palestino. Os líderes das camadas dominantes dos EUA incluem muitos apoiantes zelosos de uma Israel sionista. À medida que a Ordem Internacional começa a ruir, é provável que este segmento do poder estrutural nos EUA também seja intransigente, temendo um resultado de soma zero.
Há uma narrativa israelense para a guerra e uma “narrativa do resto do mundo” – e na verdade não se encontram. Como organizar as coisas? O efeito transformador de ver os “outros” de forma diferente – israelenses e palestinos – não está atualmente em questão.
Esse conflito tem potencial para piorar muito – e por mais tempo.
Será que os “estratos dominantes” – desesperados por um certo resultado – tentarão dobrar (e tentar esconder) os horrores desta luta da Ásia Ocidental no âmbito de uma guerra geoestratégica mais ampla? Um cenário em que multidões maiores sejam deslocadas (o que diminui o horror regional)?
by Lady Bharani
Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).
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