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O Ocidente perdeu - indubitavelmente - a Rússia, e está a perder também a Eurásia

A mais importante dinâmica geopolítica em curso centra-se na Eurásia. O seu objectivo imediato é uma nova arquitectura de segurança, que ponha fim a séculos de ingerência e agressão externa. E, “a simples lógica de inverter o paradigma militar da NATO para produzir um sistema de segurança euro-asiático “Outro” pareceria, apenas por força da lógica, defender que se o paradigma de segurança deve ser invertido, então a hegemonia financeira e comercial ocidental também deve ser invertida.» É esse o processo em curso.

por Alastair Crooke (PT) | Strategic Culture Foundation

ODiario.info - 4 de junho, 2024

https://www.odiario.info/o-ocidente-perdeu-indubitavelmente-a-russia/

Não é agora claro o objectivo da visita do Presidente Putin à Coreia do Norte e ao Vietname no contexto do projecto da arquitectura de segurança euro-asiática?

Talvez tenha havido esta semana um momentâneo encolher de ombros em Washington quando leram o relato da diligência de Sergei Lavrov perante o embaixador dos EUA em Moscovo: A Rússia estava a dizer aos EUA - “Já não estamos em paz”!

Não apenas “já não estamos em paz”, a Rússia estava a responsabilizar os EUA pelo “ataque com bomba de fragmentação” numa praia da Crimeia no feriado de Pentecostes do passado domingo, que matou várias pessoas (incluindo crianças) e feriu muitas outras. Os EUA “tornaram-se assim parte” da guerra por procuração na Ucrânia (era uma ATACM fornecida pelos EUA, programada por especialistas norte-americanos e orientada por dados dos EUA), lê-se na declaração da Rússia; “Seguir-se-ão certamente medidas de retaliação”.

Evidentemente, algures, uma luz âmbar fez piscar tons de rosa e vermelho. O Pentágono apercebeu-se de que algo tinha acontecido - “Não há volta a dar; isto pode escalar gravemente”. O Secretário da Defesa dos EUA (depois de uma pausa desde Março de 2023) agarrou no telefone para ligar ao seu homólogo russo: “Os EUA lamentavam a morte de civis; os ucranianos tinham total liberdade de escolha do alvo”.

O público russo, porém, está furioso.

O artifício diplomático da “existência actual de um estado intermédio; nem guerra, nem paz” é apenas “metade da história”.

O Ocidente ‘perdeu’ a Rússia de forma muito mais profunda do que se pensa.

O Presidente Putin - na sua declaração ao Conselho do Ministério dos Negócios Estrangeiros na sequência do agitar de espadas do G7 - descreveu em pormenor a forma como chegámos a este momento crucial (de inevitável escalada). Putin indicou que a gravidade da situação exigia a oferta de uma “última oportunidade” ao Ocidente, oferta que Putin afirmou enfaticamente não ser “um cessar-fogo temporário para Kiev preparar uma nova ofensiva, nem um congelamento do conflito, mas sim a conclusão final da guerra”.

Tem sido amplamente entendido que a única forma credível de acabar com a guerra na Ucrânia seria um acordo de “paz” que surgisse através de negociações entre a Rússia e os EUA.

Isto, no entanto, está enraizado na familiar visão centrada nos EUA - “À espera de Washington…”.

Lavrov comentou jocosamente (em paráfrase) que se alguém imagina que estamos “à espera de Godot” e “andaremos a correr atrás disso”, está enganado.

Moscovo tem em mente algo muito mais radical - algo que chocará o Ocidente.

Moscovo (e a China) não estão simplesmente à espera dos caprichos do Ocidente, mas planeiam inverter completamente o paradigma da arquitectura de segurança: criar uma arquitectura “Outra” para o “vasto espaço” da Eurásia, nada menos.

O objectivo é sair do actual confronto de soma zero entre blocos. Não prevê um novo confronto; no entanto, a nova arquitectura destina-se a forçar “actores externos” a reduzir a sua hegemonia no continente.

No seu discurso no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Putin anteviu explicitamente o colapso do sistema de segurança euro-atlântico e a emergência de uma nova arquitectura: “O mundo não voltará a ser o mesmo”, afirmou.

Que queria ele dizer?

Yuri Ushakov, o principal conselheiro de Putin em matéria de política externa (no Fórum de Leituras Primakov), esclareceu a alusão “esparsa” de Putin:

Ushakov terá dito que a Rússia está cada vez mais convencida de que não vai haver uma reformulação a longo prazo do sistema de segurança na Europa. E sem qualquer reformulação importante, não haverá “conclusão final” (palavras de Putin) para o conflito na Ucrânia.

Ushakov explicou que este sistema de segurança unificado e indivisível na Eurásia deve substituir os modelos euro-atlântico e eurocêntrico que estão agora a retroceder a caminho do esquecimento.

“Este discurso [de Putin no Ministério dos Negócios Estrangeiros russo], diria, define o vector das actividades futuras do nosso país na cena internacional, incluindo a construção de um sistema de segurança único e indivisível na Eurásia”, disse Ushakov.

Os perigos da propaganda excessiva ficaram patentes num episódio anterior em que um grande Estado se viu encurralado pela sua própria demonização dos adversários: A arquitectura de segurança da África do Sul para Angola e para o Sudoeste Africano (actual Namíbia) também se tinha desmoronado em 1980 - (eu estava lá na altura). As Forças de Defesa Sul-Africanas ainda mantinham um resíduo de imensa capacidade destrutiva no norte da África do Sul, mas o uso dessa força não estava a produzir qualquer solução ou melhoria política. Pelo contrário, estava a levar a África do Sul para o esquecimento (tal como Ushakov descreveu o modelo euro-atlântico actual). Pretória queria mudança; estava disposta (em princípio) a fazer um acordo com a SWAPO, mas a tentativa de implementar um cessar-fogo caiu por terra no início de 1981.

O maior problema foi o facto de o governo do apartheid sul-africano ter sido tão bem sucedido com a sua propaganda e demonização da SWAPO como sendo simultaneamente “marxista e terrorista” que o seu público retrocedeu perante qualquer acordo, e passaria mais uma década (e seria necessária uma revolução geo-estratégica) antes de ser finalmente possível um acordo.

Actualmente, a “elite” de segurança dos EUA e da UE tem sido tão “bem sucedida” com a sua propaganda anti-russa igualmente exagerada que também eles estão encurralados por ela. Mesmo que o quisessem (e não querem), uma arquitectura de segurança de substituição pode simplesmente revelar-se “inegociável” nos anos vindouros.

Assim, como Lavrov sublinhou, os países euro-asiáticos chegaram à conclusão de que a segurança no continente deve ser construída a partir de dentro - livre e longe da influência norte-americana. Nesta conceptualização, o princípio da indivisibilidade da segurança - uma qualidade não implementada no projecto euro-atlântico - pode e deve tornar-se a noção chave em torno da qual a estrutura euro-asiática pode ser construída, especificou Lavrov.

É aqui, nesta “indivisibilidade”, que se encontra a aplicação efectiva, e não a nominal, das disposições da Carta das Nações Unidas, incluindo o princípio da igualdade soberana.

Os países da Eurásia estão a unir esforços para contrariar conjuntamente as pretensões dos EUA à hegemonia global e a interferência do Ocidente nos assuntos de outros Estados, disse Lavrov no Primakov Readings Forum, na quarta-feira.

Os EUA e outros países ocidentais “estão a tentar interferir nos assuntos” da Eurásia, transferindo infra-estrutura da NATO para a Ásia, realizando exercícios conjuntos e criando novos pactos. Lavrov previu:

“Esta é uma luta geopolítica. Sempre foi assim e talvez se prolongue por muito tempo - e talvez não cheguemos a ver um fim para este processo. No entanto, é um facto que a tendência para controlar a partir do oceano tudo o que acontece em todo o lado é agora contrariada pela tendência para unir os esforços dos países da Eurásia”.

O início das consultas sobre uma nova estrutura de segurança ainda não indica a criação de uma aliança político-militar semelhante à NATO; “Inicialmente, pode muito bem existir sob a forma de um fórum ou mecanismo de consulta dos países interessados, não sobrecarregado com obrigações organizacionais e institucionais excessivas”, escreve Ivan Timofeev.

No entanto, os “parâmetros” deste sistema, explicou Maria Zakharova,

“…não só garantirão uma paz duradoura, como também evitarão grandes convulsões geopolíticas devido à crise da globalização, construída de acordo com os padrões ocidentais. Criará garantias político-militares fiáveis para a protecção da Federação Russa e de outros países da macro-região contra ameaças externas, criará um espaço livre de conflitos e favorável ao desenvolvimento - eliminando a influência desestabilizadora de actores extra-regionais nos processos euro-asiáticos. No futuro, isto significará a redução da presença militar de potências externas na Eurásia”.

O Presidente Honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, Sergei Karaganov, (numa entrevista recente) insere, no entanto, a sua análise mais sóbria:

“Infelizmente, estamos a caminhar para uma verdadeira guerra mundial, uma guerra total. Os alicerces do velho sistema mundial estão a rebentar pelas costuras e os conflitos vão rebentar. É necessário bloquear o caminho que conduz a essa guerra… os conflitos já estão a surgir e a ter lugar em todos os domínios”.

“A ONU é uma espécie em vias de extinção, ligada ao aparelho ocidental e, por conseguinte, irreformável. Pois bem, que permaneça. Mas temos de construir estruturas paralelas… Penso que devemos construir sistemas paralelos, expandindo os BRICS e a SCO, desenvolvendo a sua interacção com a ASEAN, a Liga dos Estados Árabes, a Organização da Unidade Africana, o Mercosul latino-americano, etc.”.

“Em geral, estamos interessados em estabelecer um sistema multilateral de dissuasão nuclear no mundo. Por isso, pessoalmente, não estou preocupado com a emergência de novas potências nucleares e o reforço das antigas, simplesmente porque confiar na razão das pessoas não funciona. Tem de haver medo. Tem de haver um maior apoio numa “dissuasão nuclear-temente, inspirando sobriedade”.

O aspecto da política nuclear é actualmente uma questão complexa e controversa na Rússia. Alguns defendem que uma doutrina nuclear russa abertamente restritiva pode ser perigosa, se levar os adversários a tornarem-se demasiado auto-convencidos; isto é, se os adversários ficarem pouco impressionados ou indiferentes ao efeito de dissuasão, de modo a rejeitarem a sua realidade.

Outros preferem uma postura de último recurso extremo. Todos concordam, no entanto, que existem muitas etapas de escalada disponíveis a uma arquitectura de segurança euro-asiática, para além do nuclear.

No entanto, a capacidade de um “bloqueio de segurança” nuclear à escala continental contra uma NATO equipada com armas nucleares é evidente: A Rússia, a China, a Índia, o Paquistão - e agora a Coreia do Norte - são todos Estados com armas nucleares, pelo que um certo grau de potencial de dissuasão está já incorporado.

Outros “degraus de escalada” estarão, sem dúvida, no centro dos debates na cimeira dos BRICS de Khazan, em Outubro próximo. Porque uma arquitectura de segurança não é conceptualmente apenas “militar”. A agenda inclui questões comerciais, financeiras e de sanções.

A simples lógica de inverter o paradigma militar da NATO para produzir um sistema de segurança euro-asiático “Outro” pareceria, apenas por força da lógica, defender que se o paradigma de segurança deve ser invertido, então a hegemonia financeira e comercial ocidental também deve ser invertida.

A desdolarização, evidentemente, já está na ordem do dia, com mecanismos tangíveis provavelmente a revelar em Outubro. Mas se o Ocidente se sente agora livre para sancionar a Eurásia a seu bel-prazer, existe também a possibilidade de a Eurásia sancionar reciprocamente os EUA ou a Europa - ou ambos.

Sim. Nós “perdemos” a Rússia (não para sempre). E podemos perder muito mais. Não é agora claro o objectivo do Presidente Putin ao visitar a Coreia do Norte e o Vietname no contexto do projecto da arquitectura de segurança euro-asiática? Eles fazem parte dela.

E para parafrasear o célebre poema de Konstantínos Kaváfis:

Porquê esta súbita perplexidade, esta confusão? (Como os rostos das pessoas se tornaram sérios).
Porque a noite caiu, e os [russos] não vieram.
E alguns dos nossos homens que acabaram de chegar da fronteira dizem
que já não há [russos]…
“O que é que nos vai agora acontecer sem [os russos]”?
“Eles eram uma espécie de solução”.

Alastair Crooke (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islão político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003).

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